sábado, 14 de julho de 2012

História de Onça - Parte XXII


    MATEIROS  Z x B
       
       Quando um mateiro sai das sombras da floresta, pode ser reconhecido de longe quando chega na cidade, calçando sapatos desconfortáveis novos ou emprestados, caminha vacilante pelas ruas, visivelmente admirado com tudo que há muito tempo não via. Acostumado a comprar mantimentos, munição e cachaça a peso de ouro na mata e sem saber o preço real de nada no comércio da cidade, acaba sempre pagando mais caro a conta e o dinheiro apurado com a venda do ouro pouco - que já foi comprado barato pelos atravessadores - é repartido sem miséria entre as mulheres dos bordeis, diárias de hotéis, bares, taxis e restaurantes. Em poucas semanas, se tiver separado e guardado o ouro do avião, o mateiro blefado estará de volta ao garimpo, contando vantagens e novidades dos dias passados na cidade. Repetindo o nome, aparência e gostos das mulheres com quem afirmara ter tranzado nos últimos dias, espalhando boatos de outros garimpos novos recém descobertos em outras regiões da floresta, dizendo quem ficou rico nos últimos tempos, quem tornou a ficar pobre, o nome daqueles conhecidos que morreram recentemente e dos que mataram, resultados da última eleição, o nome da nova novela das oito e as notícias do país e do mundo que assistiu  pela televisão  no saguão do hotel .
       Eu estava há muito tempo sem sair da mata, quando ouvi um garimpeiro recém chegado da cidade  contando, entre outras novidades, que os americanos tinham capturado alguns alienígenas, que caíram com sua nave em algum local no Novo México. Pedi ao homem mais detalhes da notícia e ele disse que passou na televisão, onde viu tudo no jornal e era verdade, pois todos assistiram os médicos abrindo com suas ferramentas o peito dos extraterrestres, que morreram na queda da aeronave. Depois de eu ter comentado eufórico, a novidade da chegada de extraterrestres com uns quatro ou cinco companheiros, que nem ao menos sabiam direito o que era um alienígena, me dei conta de que ali no garimpo, eu era o único que lamentava não estar na cidade, para dar boas vindas aos recém chegados das estrelas.
       Eu ainda era menino quando vi pela televisão os americanos afirmando terem pisado pela primeira vez na lua, enquanto objetos não identificados eram avistados voando pelos céus do mundo todo e, nesta época, até mesmo as minhas tias viram um disco voador passando lá por perto de casa. Novas tecnologias surgiam todos os dias naqueles tempos, sacolas plásticas, energia nuclear, satélites artificiais, raio lazer e computadores. Um piloto comercial aposentado, amigo da família, relatava estranhos avistamentos de óvnis  durante os anos em que voou pelos céus do Brasil e do mundo. Livros sobre discos voadores, aparições misteriosas e deuses astronautas, surgiam todos os dias nas livrarias, enquanto especialistas confirmavam, autoridades negavam as aparições e assim alguns da minha geração cresceram  esperando a qualquer momento um contato imediato.
      Sentado num tronco caído ao lado da pequena e isolada aldeia ianomâmi, sendo observado de longe pelas crianças curiosas, o estranho recém chegado, que era bem mais alto do que os índios da aldeia, tinha a pele branca, o rosto peludo e os olhos não eram castanhos como os de todo mundo, eram azuis e a arma que o estranho possuía, matava de longe, com o estrondo do trovão.  Sentado naquele tronco, eu comia as bananas verdes assadas  oferecidas por uma índia que possivelmente seria viúva, pois as jovens solteiras e as mulheres casadas nunca se aproximavam muito de estranhos. Os meus dois companheiros garimpeiros e os índios de outra aldeia que nos acompanhavam estavam numa das casas falando com o chefe, quando as crianças curiosas que me olhavam de longe se aproximavam, eu fazia um movimento brusco assustando-as, elas corriam então aos gritos para mais longe de mim, para depois voltarem cautelosas, rindo e se empurrando, esperando que eu as assuntasse novamente, já gostando da brincadeira com o recém chegado.
         Mais tarde, quando partimos, atravessamos o igarapé que corria ao lado da aldeia numa canoa emprestada e seguimos viagem entrando mata adentro, eu olhando para as crianças sorridentes, que ficaram na outra margem, falando e apontando em nossa direção, sabia que elas nunca mais nos esqueceriam e provavelmente se tivessem a sorte de continuarem isolados e protegidos pela floresta do contato com os civilizados, um dia no futuro contariam aos seus filhos do encontro que tiveram com estranhos homens de pele branca e olhos azuis, vindos de muito longe, talvez de algum lugar distante onde não existissem florestas, pois os forasteiros andavam pela mata muito desajeitados, escavando o chão da floresta com suas ferramentas estranhas  em busca de um metal amarelo, que aparentemente não tinha utilidade alguma.
       Quando um mateiro volta a olhar uma cidade grande depois de ter vivido por anos e anos na floresta, sem chefes, sem relógios, sem muros, sem prédios, sem portas e sem chaves, pode, talvez, ficar perplexo, como se estivesse voltando ao ponto de partida e vendo-o pela primeira vez. Cercado pelo acúmulo do desnecessário, barulhento, insano e desordenado , perceberia contrariado que as cidades costumam crescer do rabo para trás, caminhando cambaleante  e às cegas, sempre na direção oposta dos olhos e do sustentável, pisoteando a própria cauda, distanciando-se para sempre da pequena vila que fora um dia,  quando teria surgido num passado nem tão distante, pequena e tranquila em torno do porto, à beira de um rio de águas cristalinas, onde suas crianças felizes se banhavam ao entardecer, assim  como fazem até hoje as sorridentes crianças índias nas aldeias da floresta amazônica, as mesmas que ao verem pela primeira vês um civilizado, olham com espanto, como se fossemos recém chegados de um outro mundo.
         Os antigos caminhos da selva, que seguem pelas montanhas em direção ao norte, são ocasionalmente encontrados pelos mateiros que passam abrindo picadas no coração da floresta. Velhas estradas abandonadas há muitos séculos, onde a vegetação exuberante cresceu escondendo dos olhares desapercebidos os últimos vestígios do poderoso império Inca, que estendia seus tentáculos também em direção ao sul, até muito além de seus domínios.
        Das grandes cidades de pedra do norte, vinham os soldados dos imperadores buscarem  nas terras distantes, tudo aquilo que já não dispunham mais em abundancia nas cercanias de suas cidades barulhentas e populosas. As pequenas e aparentemente frágeis aldeias do sul - que por certo foram também naqueles tempos massacradas, escravizadas e afugentadas para longe dos caminhos do império - depois de séculos ainda continuam existindo até hoje, como sempre foram, um pequeno agrupamento de pessoas livres, vivendo em perfeita harmonia com a floresta.
        Em contrapartida, do grande e poderoso império Inca, existente num passado nem tão distante, sobraram apenas ruínas de pedras, testemunhas silenciosas de um passado sem glória, onde os pobres e oprimidos construíam palácios e templos desnecessários, escravizados pela elite poderosa e inconseqüente, cuja ganância cega e insaciável fechara os olhos para o futuro insustentável e desastroso, onde o desfecho único e inevitável se repete sempre, resultando na queda iminente de todos os impérios e no seu total esquecimento, cujo exemplo explícito pode se espelhar nas inúteis e silenciosas sombras das ruínas  dos antigos templos e palácios espalhados pelo mundo.
        Quando um homem que viveu na mata por muito tempo retorna e vê a cidade grande de novo, tendo que atravessar as ruas barulhentas e repletas de carros, correndo com seus sapatos desconfortáveis, novos ou emprestados, para não ser atropelado, desviando-se a todo o momento dos pedestres que passam com olhares sem expressão, espremendo-se pelas calçadas sujas, mais parecendo zumbis desprovidos de propósitos, caminhando à esmo. Sente medo, não medo de cobra, de onça ou de índios, mas sim o mesmo medo que as cobras, as onças e os índios sentem dos homens civilizados

3 comentários:

  1. ..muito legal, então já se sentiu um alienígena..kkk
    ..para voltando à cidade encontrar homens de plástico com Inteligencia Artificial...
    ..muito bom Mauro...

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  2. Uma leitura interessante, incomum dos tempos modernos e, num linguajar próprio de matutos garimpeiros. Gente fora do tempo, que conseguem brincar com alienígenas e artefactos virtuais tipo assombrações ou hologramas, gente desconhecedora do evangelho. As alegações da teoria pseudo-científica são de que a lua da Terra pode ser uma nave alienígena. Para um garimpeiro tanto lhe faz ser assim como assado; O olho dele está no metal amarelo. Um dia também suruquei com esta gente só para saber como era esse outro lado do rio, da vida.

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  3. Gostei muito. Viajei neste teu conto, como eu viajava nas estórias que meus avós contavam para eu dormir... Extremamente descritiva sua narrativa nos leva mesmo a sentir o cheiro da mata, dos rios, da natureza. Muito lindo. Gostei de verdade. Devia escrever mais.

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