MATEIROS Z x B
Quando um mateiro sai das sombras
da floresta, pode ser reconhecido de longe quando chega na cidade, calçando
sapatos desconfortáveis novos ou emprestados, caminha vacilante pelas ruas,
visivelmente admirado com tudo que há muito tempo não via. Acostumado a comprar
mantimentos, munição e cachaça a peso de ouro na mata e sem saber o preço real de
nada no comércio da cidade, acaba sempre pagando mais caro a conta e o dinheiro
apurado com a venda do ouro pouco - que já foi comprado barato pelos
atravessadores - é repartido sem miséria entre as mulheres dos bordeis, diárias
de hotéis, bares, taxis e restaurantes. Em poucas semanas, se tiver separado e
guardado o ouro do avião, o mateiro blefado estará de volta ao garimpo,
contando vantagens e novidades dos dias passados na cidade. Repetindo o nome,
aparência e gostos das mulheres com quem afirmara ter tranzado nos últimos dias,
espalhando boatos de outros garimpos novos recém descobertos em outras regiões
da floresta, dizendo quem ficou rico nos últimos tempos, quem tornou a ficar
pobre, o nome daqueles conhecidos que morreram recentemente e dos que mataram, resultados
da última eleição, o nome da nova novela das oito e as notícias do país e do mundo
que assistiu pela televisão no saguão do hotel .
Eu estava há muito tempo sem sair da mata, quando
ouvi um garimpeiro recém chegado da cidade contando, entre outras novidades, que os
americanos tinham capturado alguns alienígenas, que caíram com sua nave em algum
local no Novo México. Pedi ao homem mais detalhes da notícia e ele disse que
passou na televisão, onde viu tudo no jornal e era verdade, pois todos assistiram
os médicos abrindo com suas ferramentas o peito dos extraterrestres, que
morreram na queda da aeronave. Depois de eu ter comentado eufórico, a novidade
da chegada de extraterrestres com uns quatro ou cinco companheiros, que nem ao
menos sabiam direito o que era um alienígena, me dei conta de que ali no
garimpo, eu era o único que lamentava não estar na cidade, para dar boas vindas
aos recém chegados das estrelas.
Eu ainda era menino quando vi pela televisão os americanos afirmando
terem pisado pela primeira vez na lua, enquanto objetos não identificados eram
avistados voando pelos céus do mundo todo e, nesta época, até mesmo as minhas
tias viram um disco voador passando lá por perto de casa. Novas tecnologias
surgiam todos os dias naqueles tempos, sacolas plásticas, energia nuclear, satélites
artificiais, raio lazer e computadores. Um piloto comercial aposentado, amigo
da família, relatava estranhos avistamentos de óvnis durante os anos em que voou pelos céus do
Brasil e do mundo. Livros sobre discos voadores, aparições misteriosas e deuses
astronautas, surgiam todos os dias nas livrarias, enquanto especialistas
confirmavam, autoridades negavam as aparições e assim alguns da minha geração
cresceram esperando a qualquer momento
um contato imediato.
Sentado num tronco caído ao lado da pequena e isolada aldeia ianomâmi, sendo
observado de longe pelas crianças curiosas, o estranho recém chegado, que era
bem mais alto do que os índios da aldeia, tinha a pele branca, o rosto peludo e
os olhos não eram castanhos como os de todo mundo, eram azuis e a arma que o
estranho possuía, matava de longe, com o estrondo do trovão. Sentado naquele tronco, eu comia as bananas
verdes assadas oferecidas por uma índia
que possivelmente seria viúva, pois as jovens solteiras e as mulheres casadas
nunca se aproximavam muito de estranhos. Os meus dois companheiros garimpeiros
e os índios de outra aldeia que nos acompanhavam estavam numa das casas falando
com o chefe, quando as crianças curiosas que me olhavam de longe se
aproximavam, eu fazia um movimento brusco assustando-as, elas corriam então aos
gritos para mais longe de mim, para depois voltarem cautelosas, rindo e se
empurrando, esperando que eu as assuntasse novamente, já gostando da
brincadeira com o recém chegado.
Mais tarde, quando partimos, atravessamos o igarapé que corria ao lado
da aldeia numa canoa emprestada e seguimos viagem entrando mata adentro, eu
olhando para as crianças sorridentes, que ficaram na outra margem, falando e
apontando em nossa direção, sabia que elas nunca mais nos esqueceriam e
provavelmente se tivessem a sorte de continuarem isolados e protegidos pela floresta
do contato com os civilizados, um dia no futuro contariam aos seus filhos do
encontro que tiveram com estranhos homens de pele branca e olhos azuis, vindos
de muito longe, talvez de algum lugar distante onde não existissem florestas, pois os forasteiros
andavam pela mata muito desajeitados, escavando o chão da floresta com suas
ferramentas estranhas em busca de um
metal amarelo, que aparentemente não tinha utilidade alguma.
Quando um mateiro volta a olhar uma cidade grande depois de ter vivido
por anos e anos na floresta, sem chefes, sem relógios, sem muros, sem prédios,
sem portas e sem chaves, pode, talvez, ficar perplexo, como se estivesse
voltando ao ponto de partida e vendo-o pela primeira vez. Cercado pelo acúmulo do desnecessário, barulhento, insano e desordenado , perceberia contrariado que
as cidades costumam crescer do rabo para trás, caminhando cambaleante e às cegas, sempre na direção oposta dos
olhos e do sustentável, pisoteando a própria cauda, distanciando-se para sempre
da pequena vila que fora um dia, quando teria
surgido num passado nem tão distante, pequena e tranquila em torno do porto, à beira
de um rio de águas cristalinas, onde suas crianças felizes se banhavam ao
entardecer, assim como fazem até hoje as
sorridentes crianças índias nas aldeias da floresta amazônica, as mesmas que ao
verem pela primeira vês um civilizado, olham com espanto, como se fossemos recém
chegados de um outro mundo.
Os antigos caminhos da selva, que seguem pelas montanhas em direção ao
norte, são ocasionalmente encontrados pelos mateiros que passam abrindo picadas
no coração da floresta. Velhas estradas abandonadas há muitos séculos, onde a
vegetação exuberante cresceu escondendo dos olhares desapercebidos os últimos
vestígios do poderoso império Inca, que estendia seus tentáculos também em
direção ao sul, até muito além de seus domínios.
Das grandes cidades de pedra do norte, vinham os soldados dos
imperadores buscarem nas terras
distantes, tudo aquilo que já não dispunham mais em abundancia nas cercanias de
suas cidades barulhentas e populosas. As pequenas e aparentemente frágeis
aldeias do sul - que por certo foram também naqueles tempos massacradas,
escravizadas e afugentadas para longe dos caminhos do império - depois de
séculos ainda continuam existindo até hoje, como sempre foram, um pequeno
agrupamento de pessoas livres, vivendo em perfeita harmonia com a floresta.
Em contrapartida, do grande e poderoso império Inca, existente num
passado nem tão distante, sobraram apenas ruínas de pedras, testemunhas
silenciosas de um passado sem glória, onde os pobres e oprimidos construíam
palácios e templos desnecessários, escravizados pela elite poderosa e
inconseqüente, cuja ganância cega e insaciável fechara os olhos para o futuro
insustentável e desastroso, onde o desfecho único e inevitável se repete sempre,
resultando na queda iminente de todos os impérios e no seu total esquecimento, cujo
exemplo explícito pode se espelhar nas inúteis e silenciosas sombras das ruínas
dos antigos templos e palácios
espalhados pelo mundo.
Quando um homem que viveu na mata por
muito tempo retorna e vê a cidade grande de novo, tendo que atravessar as ruas
barulhentas e repletas de carros, correndo com seus sapatos desconfortáveis,
novos ou emprestados, para não ser atropelado, desviando-se a todo o momento
dos pedestres que passam com olhares sem expressão, espremendo-se pelas
calçadas sujas, mais parecendo zumbis desprovidos de propósitos, caminhando à
esmo. Sente medo, não medo de cobra, de onça ou de índios, mas sim o mesmo medo
que as cobras, as onças e os índios sentem dos homens civilizados
..muito legal, então já se sentiu um alienígena..kkk
ResponderExcluir..para voltando à cidade encontrar homens de plástico com Inteligencia Artificial...
..muito bom Mauro...
Uma leitura interessante, incomum dos tempos modernos e, num linguajar próprio de matutos garimpeiros. Gente fora do tempo, que conseguem brincar com alienígenas e artefactos virtuais tipo assombrações ou hologramas, gente desconhecedora do evangelho. As alegações da teoria pseudo-científica são de que a lua da Terra pode ser uma nave alienígena. Para um garimpeiro tanto lhe faz ser assim como assado; O olho dele está no metal amarelo. Um dia também suruquei com esta gente só para saber como era esse outro lado do rio, da vida.
ResponderExcluirGostei muito. Viajei neste teu conto, como eu viajava nas estórias que meus avós contavam para eu dormir... Extremamente descritiva sua narrativa nos leva mesmo a sentir o cheiro da mata, dos rios, da natureza. Muito lindo. Gostei de verdade. Devia escrever mais.
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