GARIMPEIROS
A mais longa das noites se fora, e era
ensurdecedor o canto da passarada ao amanhecer quando o Oliveira foi buscar
água na cacimba, para preparar o café. O cheiro forte da fumaça da fogueira
recém acesa, da sobra de comida requentada e do café me causava náuseas. Com os
olhos fixos na mata, não escutava e nem queria escutar nada, nem mesmo sobre o que
os três homens falavam durante o café da manhã e quando o Oliveira se aproximou
dizendo que resolveram levar-me até o garimpo Santa Rosa, não respondi, nem
discordei, sem me importar com nada mais além da dor que sentia no meu abdômen, cada vez mais inchado, continuei olhando a mata recém a amanhecida, cercando o
nosso acampamento, parecendo uma muralha sombria que a noite passada deixara
para trás, separando-nos do resto mundo.
Quando que se chega ao final da
picada, sem rancho e sem ouro, quando o jamanchim vazio já não incomoda mais, o
fardo mais pesado no caminho de volta, e que nunca se pode deixar para trás é a
desilusão. Nestas horas quando os sonhos batem asas como um bando de jacamins
em fuga, a desilusão pesando como azougue nas costas do mateiro, estica as alças
do jamanxim, o cansaço e a desesperança tornam o caminho de volta mais longo e
sem nenhum propósito para quem regressa da mata, de mãos, bolsos e sonhos vazios.
O Bernardo que gostava de
brincar, quando alguém se lamentava de algum infortúnio dizendo, que quando as
coisas parecem não estar bem, se deve olhar melhor, para então perceber que na
realidade, estão sempre muito pior do que a gente pensa, falou para o goiano que se
lamentava da nossa sorte naquele dia, quando retornávamos pela mata sem ouro, que no
futuro ainda sentiríamos saudades até dos piores dias em que passamos na selva.
Fiquei pensando no que o Bernado falara, enquanto lembrava do que me disse certa vez,
um velho chamado Garcia, que o homem sempre vê o passado melhor do que foi, o
presente pior do que é, e o futuro melhor do que será. Sim, o Bernardo tinha
razão, pois quanto mais nos distanciamos do passado, mais valorizamos o que no
futuro jamais teremos novamente.
Resignados ou não, no final da
trilha, teremos que fazer como fez o caboclo, que na curva do caminho, bem em
frente a uma grande pedra retangular, parecendo um altar, se deparou com uma
onça pintada. Quando a onça franzindo a testa se preparou para atacar, o
caboclo que trazia apenas um pequeno canivete, pronunciou sem querer a palavra
virgem, nesse momento a virgem Maria se materializou sobre a pedra retangular. Sem
tirar os olhos dos olhos da onça, o caboclo desconfiado aproveitou para fazer
três pedidos para a Virgem Aparecida, que se mantinha lá calada sem se manifestar:
- Se você está do meu lado, faça com que eu mate essa onça na primeira
canivetada, se por acaso você está do
lado da onça, faça com que ela me mate também na primeira patada para que eu
não sofra, mas se você não estiver nem do meu lado e nem do lado da onça, senta
aí, pra ver a porrada que vai sair aqui e agora !
Todos os caminhos, se cruzando ou não levam sempre ao mesmo lugar, onde
inevitavelmente a realidade da onça, despida de qualquer ilusão terá que ser
enfrentada um dia, sem que o caboclo jamais saiba de que lado está, o que nunca
pareceu estar, nem do lado da caça e tão pouco do lado do caçador.
Já era quase meia tarde quando
o Oliveira, saindo com os outros dois homens de dentro da escavação no pé da
montanha, sacudiu a minha rede, dizendo que me levariam até a beira do rio.
Ajudado pelo Oliveira, joguei os pés para fora da rede me levantando vagarosamente
e sem olhar para trás segui pela trilha em direção ao rio, sem esperar pelos
outros que me chamavam para que os esperassem. Enquanto o Oliveira desarmava as
redes e preparava as coisas para a viagem, eu, raivoso e desorientado seguia cambaleante
pela mata alta e silenciosa, sem saber e nem me preocupar se chegaria ou não ao
rio, pois as dores no meu abdome, a febre, a falta de ar, a diarréia quente e
fina escorrendo perna abaixo, me deixava quase inconsciente. O regresso, a
distância e o tempo, já não faziam nenhum sentido no meu estado delirante. Sempre depois
de subir alguma elevação pelo caminho, eu me jogava no chão completamente
exausto e ficava imóvel, então andava um pouco mais, até cair novamente e ficar
olhando para cima vendo as árvores dançando sob o fundo azul do céu silencioso da
floresta.
Na beira do rio, os três homens,
forraram o chão com folhas verdes onde me deitaram, enquanto levavam a canoa, o
combustível e o motor para a água. Me colocaram depois deitado sobre uma lona
plástica no fundo da canoa e o Oliveira seguiu remando rio abaixo em direção ao
Santa Rosa, enquanto o Pedro e o velho voltavam para o acampamento no sopé da
montanha.
O sol forte, que amolecera a lona plástica no assoalho da canoa e queimava a minha pele suada, não me aquecia, tremendo de frio eu quase não entendia o que o Oliveira falava enquanto remava e quando eu tentava responder alguma pergunta sua, minha língua inchada e a boca seca não me deixava falar e tudo se tornava distante de mais, enquanto a conoa descia silenciosa o rio Pacacibi.
O sol forte, que amolecera a lona plástica no assoalho da canoa e queimava a minha pele suada, não me aquecia, tremendo de frio eu quase não entendia o que o Oliveira falava enquanto remava e quando eu tentava responder alguma pergunta sua, minha língua inchada e a boca seca não me deixava falar e tudo se tornava distante de mais, enquanto a conoa descia silenciosa o rio Pacacibi.
Mais tarde quando sol poente dourou as águas do rio e a noite chegou
silenciosa e estrelas enormes surgiram no horizonte distante por cima da mata,
no final do estirão, o Oliveira ligou o motor de popa acelerando a voadeira, que
com pouco peso ganhou velocidade rio abaixo. A proa da canoa, quebrando o
banzeiro, respingava a água quente do rio sobre mim, mais parecendo pedras de
granizo derretendo gelo sobre meu corpo febril, então o Oliveira percebendo, me cobriu com
a lona plástica que agora era gelada e eu fiquei tremendo em silêncio, olhando para o
céu estrelado sem poder dormir e nem acordar, assim como acontecia há muitas
noites, me sentindo nem vivo, nem morto, e sem poder controlar meus pensamentos
confusos que viajavam desordenadamente no tempo, trazendo lembranças distantes,
como naquela manhã quando me sentei na laje de pedra, ao lado do homem de
calção vermelho que não parecia estar morto.
Ele tinha sido colocado ali, ao nascer do sol sobre a laje, na mesma
posição em que fora encontrado no fundo do igarapé, de bruços apoiado no
cotovelo direito e no braço esquerdo estendido com a mão aberta, sustentando
sua cabeça e parte do tórax que curvado não tocava o chão, numa posição de quem
está tentando se levantar, para depois sair andando normalmente.
De quando em quando, algumas gotas de
água com sangue, saindo de suas narinas, pingavam sobre a laje, enquanto eu
olhava impotente para o homem morto, vendo a mim mesmo no futuro. Não resisti a
tentação de convidá-lo a levantar-se quando me retirei, antes que outros
curiosos aparecessem, quase acreditando que ele realmente pudesse, pois para
tanto, parecia não faltar-lhe mais nada além de um leve sopro de vida. Palavra
que até hoje eu não sei definir e da qual nos recusamos definitivamente a
aceitar que seja finita, fechando nossos olhos para tudo que não seja aquilo
que desejaríamos ver, acreditando sem contestação em todas as histórias de onça
que prometam ultrapassar a barreira do inevitável. Como acreditava aquele
garimpeiro que viajava ao meu lado no banco da voadeira, quando voltávamos da
mata para a cidade, dizendo que ainda devia um ouro a outro garimpeiro que
tinha sido morto por aqueles dias no garimpo e como acreditava que dá azar
ficar devendo ouro para as almas, o homem com medo da morte, pretendia pagar
sua dívida comprando velas com as gramas de ouro do falecido, que acenderia
durante a noite para iluminar o caminho ao paraíso.
Durante a viagem, me esforcei ao
máximo na tentativa de conseguir transformar em doces para as crianças, aquelas velas
desnecessárias que o garimpeiro pretendia comprar quando chegássemos na
cidadezinha. Outro dia andando pela cidade, eu que até já tinha me esquecido das
velas do falecido, encontrei pelas ruas dezenas de crianças pobres sorridentes,
que saiam de uma escola, com as mãos cheias de guloseimas, o garimpeiro
supersticioso tinha pagado sua dívida e aquele tinha sido um dia de sorte para
as crianças, porque é tarefa difícil abrir os olhos da alma para a realidade.
O Oliveira me sacudindo com a
ponta do pé, enquanto dirigia a voadeira, gritou que estávamos chegando ao
garimpo Santa Rosa e já podia ver ao longe as luzes da corrutela. Custei a
entender oque ele dizia, meus lábios estavam secos e rachados da febre e o
atrito do assoalho da canoa com o banzeiro do rio, me causava horríveis dores nos rins. Sentindo-me
muito fraco percebi que estava quase entrando em coma e lembrando que não
trazia documentos, me preocupei com a possibilidade de chegar na cidade
inconsciente e sem identidade ou números de telefones. Chamei o Oliveira, que
parecia não ouvir a minha voz soando fraca e sendo abafada pelo ruído do motor
da voadeira deslizando sobre as águas do Pacacibi, cujo meus olhos confusos viam
correr desniveladas, como se uma das margens do rio fosse bem mais alta e a
canoa pudesse virar a qualquer momento.
No porto da corrutela, os curiosos me levaram até a cantina onde armaram
minha rede nos caibros do telhado de ubim, enquanto perguntavam para o Oliveira
quem eu era, davam seus diagnósticos e opiniões, dizendo entre outras coisas que
ovelha não é pra mato e que pelo meu estado a Rosinha irmã do Oliveira provavelmente ficaria
viúva pela segunda vez.
Mais tarde, o Oliveira, conseguiu
com algum garimpeiro, dois comprimidos de prima quina e dentro de algumas horas
a febre diminuiu consideravelmente, sentido melhora me sentei na rede olhando
ao meu redor. A cantina estava vazia, os garimpeiros estavam espalhados
procurando sombras pelos outros barracos localizados na beira da mata, de onde
eu podia escutar suas vozes. Percebendo o meu estado desagradável e a sujeira
de minha roupa, resolvi ir até o rio banhar-me. Desci devagar a barranca e
entrei na água quente que para mim parecia gelo, estava me lavando quando o
Oliveira chegou no porto perguntando se eu tinha melhorado.
O Oliveira era um caboclo alto e forte, sempre sorridente e simpático,
bebia durante o dia todo, quase todos os dias, mas não demonstrava nenhum sinal
de embriaguez, sendo traído apenas por seus cabelos lisos, que depois de muitas
doses costumavam cair, com mais freqüência, sobre seus olhos amendoados e
travessos. Enquanto eu mentia que estava me sentindo bem melhor, ele que já
estava com os cabelos nos olhos, disse não ter conseguido mais nenhum remédio
contra falcíparum, mas falara com o Chaguinha, um piloto de voadeira conhecido,
que voltaria na manhã seguinte para a cidade e prometera me levar junto.
Já estava quase anoitecendo quando
o Oliveira, depois de beber quase todas, voltou para a montanha do Pedro
Maranhão. Fiquei sentado no porto, olhando a voadeira sumindo na curva do rio,
deixando para trás, soando por cima do tapete verde da floresta o ronco do
motor de popa, que em pouco tempo também não se ouviria mais.
Quando não ouvi mais o som distante do
motor da voadeira, ainda fiquei sentado um tempo, olhando o rio correndo sem parar, silencioso
em meio à floresta. Depois voltei devagar para a minha rede na corrutela,
pensando na música que o Oliveira costumava cantar para a Corina sua avó sempre
que se despedia. “Adeus Corina que eu já vou embora, levo pena e trago pena,
nas asas da siricora...”
A Corina, a bisavó do Oliveira, era uma índia peruana, como ela mesmo me contou no dia em que a conheci, morando numa casa da periferia da capital. Seus cabelos lisos e brancos caíam escorridos, sobre o bronze envelhecido de sua pele centenária e em suas orelhas brilhavam dois brincos de ouro peruano, onde duas pedras de esmeraldas jogavam lampejos esverdeados, nos fios de cabelos brancos mais próximos.
A Corina, a bisavó do Oliveira, era uma índia peruana, como ela mesmo me contou no dia em que a conheci, morando numa casa da periferia da capital. Seus cabelos lisos e brancos caíam escorridos, sobre o bronze envelhecido de sua pele centenária e em suas orelhas brilhavam dois brincos de ouro peruano, onde duas pedras de esmeraldas jogavam lampejos esverdeados, nos fios de cabelos brancos mais próximos.
Naquele dia enquanto conversávamos, chegou um ancião vindo da rua, que
sem dar muita atenção para as visitas se deitou rapidamente na rede, que estava
armada na varanda. Percebi que o velho de cabelos brancos, curtos e espetados,
tinha o braço esquerdo defeituoso, sendo pequeno como o braço de uma criança.
Pensei que fosse o marido da Corina e estranhei quando ele pediu café para ela
chamando-a de mamãezinha. Depois que a velha peruana serviu o café com biscoito
como quem cuida de uma criança, voltou a sentar-se ao meu lado e então me
contou como foi o nascimento dele, seu filho, que já estava dormindo na rede
depois de ter tomado o café e devolvido a xícara para a mãe guardar. Foi um
parto difícil me disse ela, era ainda muito jovem quando engravidou e durante o
parto tiveram que puxar a criança pelos braços O recém nascido chorava muito e
logo a mãe percebeu que ele não movimentava um dos bracinhos. O pai da Corina
então mandou que ela fosse procurar ajuda de um curandeiro que vivia a alguns
dias de viagem, rio a cima. Se não me engano, foi no rio Javari que a Corina
remou sem parar, até encontrar o tal curandeiro, mas quando ele fez a criança
gritar desesperadamente de dor, a Corina sem pensar duas vezes, tomou seu filho
dos braços do curandeiro e voltou pra casa chorando também.
O tempo passou e o menino cresceu normal como todos os outros meninos da aldeia, com exceção do seu braço esquerdo que ainda continuava assim pequenino, quando eu o conheci, com oitenta e seis anos. A última vez que vi os brincos de esmeralda da Corina foi num hospital onde ambos estávamos internados, ela saindo com dificuldade de seu leito foi até o quarto onde eu estava, se aproximou da minha cama e colocou sua mão magra sobre a minha perguntado se eu estava melhor. A luz amarelada do sol da manhã, entrando pela janela envidraçada, iluminava as costas magras da Corina, cujos cabelos brancos e sua pele de bronze brilhavam mais que seus brincos de esmeraldas. “Adeus Corina que eu já vou embora, levo pena e trago pena, nas asas da siricora...”
O tempo passou e o menino cresceu normal como todos os outros meninos da aldeia, com exceção do seu braço esquerdo que ainda continuava assim pequenino, quando eu o conheci, com oitenta e seis anos. A última vez que vi os brincos de esmeralda da Corina foi num hospital onde ambos estávamos internados, ela saindo com dificuldade de seu leito foi até o quarto onde eu estava, se aproximou da minha cama e colocou sua mão magra sobre a minha perguntado se eu estava melhor. A luz amarelada do sol da manhã, entrando pela janela envidraçada, iluminava as costas magras da Corina, cujos cabelos brancos e sua pele de bronze brilhavam mais que seus brincos de esmeraldas. “Adeus Corina que eu já vou embora, levo pena e trago pena, nas asas da siricora...”
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