sábado, 9 de junho de 2012

História de onça - Parte XIX


           
    BALÇAS DE GARIMPO

       
          Quando amanheceu o dia, o Oliveira me ofereceu café, chá de açaí e alguma coisa para comer que eu recusei mal humorado. Falou entre outras coisas que eu não iria me recuperar, minha malaria era falcíparum e o quinino não combatia, teria que voltar para a cidade, falaria com os outros para combinar o que deveriam fazer. Eu sabia que exceto o Oliveira, os outros dois garimpeiros não estavam nem preocupados com a minha sorte, pois o pior do trabalho já estava feito e quanto menos sócios para repartir o ouro no final , melhor seria.
               O combustível do motor de popa que nos restara  era pouco, colocar a canoa no rio e ligar o motor de para seguir em direção a cidade, poderia denunciar a nossa presença e se fossem descobertos, os garimpeiros que ficassem trabalhando, talvez tivessem que fugir, deixando para traz o ouro da montanha. Então quase sem poder falar, com minha língua cada vês mais inchada, pedi para o Oliveira esperar mais uns dias, para ver se talvez por sorte eu melhorasse um pouco.                Depois do café, os três foram trabalhar e eu fiquei na rede tremendo de frio, já sem forças para me debater e espantar as abelhas e os outros insetos vindos da mata, pousando no meu corpo suado e mal cheiroso. Minha respiração se tornara ofegante, minha língua seca parecia não caber dentro da boca amarga, enquanto meu fígado aumentava de tamanho, me sufocando. Ouvindo os homens que trabalhavam, conversando e rindo, eu sentia raiva, como se alguém tivesse culpa do meu estado, enquanto maldizia minha sorte, vendo todos os meus planos queimando de febre.
             A malária é uma enfermidade cruel que pega o caboclo de surpresa. Outro dia, eu estava esperando carona, para ir em direção a um garimpo no Pico da Neblina na serra do Imeri, quando um garimpeiro rodado, que estava também esperando carona no mesmo posto de gasolina, depois de me olhar  por algum tempo, perguntou se eu estava com malária, me achando esverdeado. Sem sentir nada anormal eu não acreditei no desconhecido, seguindo viagem. Desmaiei alguns dias depois no caminho, tendo que voltar para um hospital em Manaus.
          Alguns tipos de malárias são lentos e vão aos poucos enfraquecendo as vítimas, que vão esverdeando, enquanto a febre pontual chega sempre na hora certa, debilitando cada dia mais o malariento, que vai acostumando com a fraqueza constante e com a febre que vem e vai, deixando o “bucho do caboclo cada dia mais quebrado”, as pernas mais finas e os olhos mais amarelados. Nas famílias de beiradeiros malarientos do interior, às vezes a febre chega ao mesmo tempo em todos, sem que ninguém fique de pé, que possa buscar ao menos água para os outros. Outras malarias são mais rápidas, pegando as vitimas de surpresa, como aconteceu com aquele garimpeiro que na mesma semana que contraiu, malaria voltou de avião para a cidade. Chegando numa sexta-feira e ainda se sentido bem, resolveu primeiro beber umas durante o fim de semana, planejando começar o tratamento na segunda feira e vindo a morrer de malária domingo de manhã.
          Num outro garimpo do norte do Pará, um garimpeiro voltava só pela mata, em direção  a pista de pouso, onde pegaria um avião para ir  tratar-se da malaria na cidade. Sofrendo um desmaio e perdendo os sentidos caiu na picada, onde passou a noite desacordado, quando despertou no outro dia pela manhã, soube que nunca mais poderia fechar a boca , as formigas tracuás que gostam de sal, tinham comido seus lábios e desfigurado seu rosto.
            Nas margens do rio Urariquera, na década de oitenta, muitas pistas de pouso clandestinas foram construídas pelos garimpeiros, que riscavam a floresta abrindo inúmeras picadas que se cruzavam em meio à mata, atravessando os grotões que eram esburacados pelas picaretas dos pesquisadores de ouro. Uma árvore enorme foi derrubada durante a construção de uma dessas pistas, ficando caída ao lado da clareira, sem que pudesse ter sido removida e seu diâmetro chamava a atenção dos recém chegados, que nunca puderam passar por cima dela, cujo tamanho descomunal acabou dando o nome para a pista, que se chamava pista do Pau grosso. 
          Na cabeceira da pista, dentro de uma clareira arredondada, um helicóptero barulhento fazia todos os dias muita poeira, pairando baixo sobre motores, bombas e outros equipamentos, que eram colocados dentro de uma rede e levados pendurados no helicóptero para diversos garimpos espalhados pela floresta. Enquanto durante todo o dia, o helicóptero ia e voltava, fazendo as chamadas pernas, dezenas de aviões pousavam e decolavam na pista poeirenta, levando e trazendo da cidade garimpeiros, mulheres, alimentos, ferramentas e motores desmontados, que eram descarregados na beira da pista e de onde eram retirados e transportados pelos diaristas recém chegados¨, que trabalhavam por um grama de ouro ao dia, enquanto não encontravam trabalho fixo nos garimpos. 
         Em meio ao tumulto formado por centenas de pessoas chegando e saindo da pista, nos aviões, das lanchas no rio, ou a pé vindos da mata, bebendo nas cantinas, escutando músicas muito bregas a todo volume, disparando as armas irresponsavelmente em qualquer direção, bêbados e drogados, voadeiras aceleravam seus motores no porto, aviões aquecendo os motores aceleravam também forte na cabeceira da pista, antes de decolarem, enquanto outros sobrevoavam a clareira, esperando desocuparem a pista. para poder pousarem também e na confusão ensurdecedora que se formava, não eram incomuns os atropelamentos de pessoas por aviões. Quando eu estava por lá vi, um piloto norte americano, que pousava seu avião, atropelar dois carregadores, que atravessavam a pista levando um compressor nas costas, um deles morreu na hora, tendo o rosto partido em dois na altura da boca, o outro foi levado de avião muito ferido para a cidade. O piloto gringo, chamado Bill, passou uma semana dormindo e comendo no meu barraco, enquanto remendava seu avião com latas velhas de azeite. Um dia acelerou ao máximo seu avião remendado e mesmo sem rádio, decolou quase batendo na copa das árvores no início da pista, enquanto nós observávamos ele partindo, vencendo com dificuldade o penhasco íngreme da primeira montanha, seguindo voando em direção à cidade. Nunca soube se ele chegou lá, talvez tenha conseguido voltar, o que não aconteceu com muitos dos aviões e helicópteros que por lá voavam. Não longe dali entre as ilhas, um mergulhador de uma balsa encontrou uma corda no fundo do rio, seguindo pela corda encontrou um helicóptero que tinha desaparecido há tempos, onde o cinto de segurança  vazio do banco do piloto, continuava fechado.
              Tendo como pagar, chegar ao garimpo sempre era mais fácil do que sair, porque as pistas de pouso são geralmente muito pequenas, sendo sempre mais fácil descer do que subir. A peso de ouro os motores desmontados na cidade, eram trazidos para o garimpo em partes, junto com passageiros fumantes, sentados no assoalho dos pequenos aviões, entre os galões de combustíveis, alimentos e as peças dos equipamentos. Lá em baixo das nuvens , na mata fechada, sumindo de horizonte a horizonte em qualquer direção, cobrindo cadeias de montanhas, rios e alagados, não há espaço para nenhum avião com pane pousar inteiro. Mesmo assim eu sempre olhava para o sol de dentro dos aviões, queria sempre saber para onde voltar varando, se fosse necessário. Nos garimpos do centro da mata, aonde tudo chegava e saía nas asas do avião, nada custava menos que um grama de ouro e as balsas, compressores, motores e todos os tipos de coisas e equipamentos trazidos da cidade, que tornaram mais ricos ou mais pobres seus proprietários, mais cedo ou mais tarde, inevitavelmente seriam abandonados na floresta, era inviável levá-los de volta à cidade.
           O garimpeiro conhecido pelo apelido de Queimado, foi o único sobrevivente daquele vôo trágico, em que o piloto concordou em levar um motor de volta para a cidade. Quando os aviões decolavam nas pistas pequenas em meio as árvores, na decolagem todos os passageiros se agrupavam junto ao banco do piloto, para equilibrar o peso. Mas naquela decolagem fatal, quando o piloto acelerou e o avião ganhou velocidade na pista, o motor que estava solto no assoalho escorregou para a cauda. Sem poder interromper a decolagem, o piloto acelerou ainda mais, na tentativa de ganhar altura suficiente antes da mata no final da pista, sem sucesso. Quando a cauda chocou-se com as primeiras árvores, o avião partiu-se ao meio incendiando-se e jogando um dos passageiros da mata, que sem nenhum fio de cabelo no corpo e todo franzido, como um maracujá de gaveta, foi o Queimado único sobrevivente. 
           Naquele tempo os helicópteros, velhos e com manutenção precária que voavam como besouros sobre selva, eram verdadeiras bombas relógio, que para sofrer uma pane era só uma questão de tempo. Mesmo assim, alguns garimpeiros costumavam pegar carona agarrados a rede que levava motores e bombas de água, pendurados por um cabo ao helicóptero, embora soubessem que em caso de pane, o cabo que prende a rede é o primeiro a ser solto. Outros garimpeiros eram jogados sem pára-quedas dos aviões por vários motivos. Um destes que saltou sem pára-quedas, tinha ficado milionário poucos dias antes da queda fatal, era ele um pesquisador que encontrou, descobriu uma das grotas mais ricas daquela região.
      Quando um garimpeiro tem a sorte de encontrar muito ouro na mata, duas coisas surpreendentes acontecem ao mesmo tempo. O garimpeiro pobre e todos os problemas relativos ao pobre desaparecem num passe de mágica, surgindo então um milionário sem passado e com futuro inserto. O garimpeiro que saltou sem pára-quedas tinha esquecido do passado, quando saindo da mata, após ter descoberto o ouro, não procurou os velhos e sofridos companheiros de garimpo em quem deveria ter confiado, para garimpar em paz e em sigilo o ouro encontrado por ele. Preferindo vender a grota rica, para um dos poderosos que voavam de helicópteros por cima das arvores da floresta, protegidos por guarda costas armados de metralhadoras, buscando no final da semana nos seus garimpos ricos ,o ouro que um só homem não podia carregar para o avião..
         Depois de negociar a venda de seu ouro recém descoberto, o pesquisador foi mostrar o local, onde cavou algumas “pranchetas”, para comprovar que o ouro era mesmo muito. Comprovado o achado beberam alguns litros de uísque na mata, comemorando a descoberta, que tornaria da noite para o dia, um pobre rico e um rico ainda mais rico. No retorno para a cidade, no meio da selva, o pesquisador  que feliz fazia planos milionários para o futuro, saltou do helicóptero sem pára-quedas e o homem rico, sendo agora o único a saber onde estava o ouro descoberto pelo pobre morto, ficou mais rico ainda. 
        Se repetem sempre essas histórias de onça, onde o rico sempre fica mais rico e o pobre mais pobre, até mesmo nos garimpos que deveria ser diferente, a sorte não é como se pensa, o fator principal. Há muitos interesses escusos por trás de tudo que brilha e quase sempre quando corre a notícia de que um garimpo que causava danos ao meio ambiente foi fechado, é porque já não produzia o suficiente para pagar a todos os interessados. Tratando-se de diamantes, sabe-se que quanto menos melhor e nenhum gringo que tenha investido suas economias nas pedrinhas que brilham no escuro, quer ver um caboclo de Rondônia - onde estão mantidos em segredo uns dos mais ricos depósitos diamantíferos do mundo - com os bolsos cheios de diamantes mais baratos que o preço do mercado internacional.

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