sábado, 14 de abril de 2012

História de Onça - Parte XI



                               PASSARÃO

           Ao anoitecer, passamos por uma aldeia e o homem negro mandou-me seguir a cavalo na frente, em direção a uma casa isolada, construída ao lado de um buritizal, onde provavelmente haveria uma cacimba de água e algumas árvores maiores que serviriam de abrigo e onde poderíamos armar nossas redes. Sem descer do cavalo chamei várias vezes sem obter resposta, a porta da casa estava aberta mas ninguém apareceu. Esperei os outros chegarem e fomos então até a casa, para verificar se era habitada, quando passamos pela porta da casa de um só cômodo, surpresos vimos uma mulher índia que chorava acocorada num canto e que se pôs a gritar desesperadamente, como se estivesse vendo o próprio demônio.
            Estava tão aterrorizada que seus olhos arregalados em nossa direção não nos viam e nem tão pouco ouvia o que o homem negro falava em seu idioma, tentando acalmá-la . Sem alternativa nos afastamos rápido, deixando em paz a pobre mulher amedrontada e quando finalmente acampamos em outro local distante daquela casa, já era noite. Depois de cavarmos às pressas uma pequena cacimba em meio ao buritizal, que logo se encheu de água. Armamos todas as nossas redes unindo as únicas três ou quatro árvores maiores que haviam perto do local ande ficara o carro e os bois.
         Cansados da viagem e com pressa para escapar das mordidas das formigas de fogo que agitadas atacavam impiedosamente os pés dos intrusos, nos deitamos, enquanto o dono da carreta que também tinha armado a sua rede nas mesmas árvores, dava água e acomodava seus dos bois. Quando tudo parecia estar resolvido, faltando apenas o sono chegar, o dono dos bois voltou deitando seu corpo grande e pesado na rede, vergando as árvores que não suportaram o nosso peso, encostando nossas redes no chão, cheio de formigas, obrigando-nos a sair no escuro em busca de outras árvores. Quando o dia amanheceu nossa aparência, não muito agradável, que apavorara a pobre índia no dia anterior, tinha piorado bastante com o desconforto da noite mal dormida. 
                  Como as folhas arrancadas de um velho livro, não lembro quando chegamos na boca da mata, nem onde fomos deixados pelo dono do carro de bois, antes de entramos na selva. Recordo de ter dormido uma noite na beira do rio Tacu tu com os meus dois companheiros, cujo leito rochoso formava um grande poço numa de suas curvas onde acampamos. Durante toda a noite os peixes se debatendo nos acordaram várias vezes, como se fossem enormes, talvez quem sabe fosse algum jacaré-açu, uma sucuriju, ou até mesmo o bicho desconhecido que saiu do lago seco. 
       Lembro também que por algum motivo discordei dos meus dois companheiros e voltei só pela selva, saindo outra vez no lavrado perto de uma aldeia Wapixana onde passei uma noite, antes de seguir a pé em direção a cidade, distante uns trezentos ou quatrocentos quilômetros talvez.
            Nesta aldeia os índios teciam algodão, confeccionando suas roupas e redes, cuja perfeição impressionava. Até mesmos os cães tinham suas próprias redes, pássaros selvagens domesticados voavam por entre as casas com suas penas coloridas, crianças alegres brincavam nos caminhos entre uma casa e outra, por onde passavam as mulheres usando seus vestidos de algodão, muito brancos, contrastando com seus cabelos negros. 
       Naquela tarde enquanto eu falava com o tuxaua perguntando qual o caminho que deveria seguir, de uma das casas localizada numa elevação, desceu correndo em nossa direção uma jovem índia, passando por nós e dirigindo-se á uma das casa próxima a do tuxaua. Talvez tenha sido essa a mais bela imagem de mulher que alguém pudesse ter visto. Os logos cabelos negros esvoaçando ao vento, seu corpo alto e esguio delineando os contornos do seu vestido branco, realçando seu rosto moreno e delicado, iluminado por seu alvo sorriso infantil.
                  Deixando pra trás a aldeia, segui pela trilha indicada pelos índios no início da manhã e logo nas primeiras horas, o sol forte do lavrado erguendo-se no céu, sem nuvens, prenunciava o calor das próximas horas. A passos largos pela trilha principal eu deixava para trás a mata e as montanhas que ficavam diminutas. Outras a minha frente cresciam enquanto eu me aproximava, para depois sumirem também no horizonte a minhas costas. A terra, a areia e as pedras em fogo aqueciam o solado de minha sandálias e em alguns momentos o sol forte, o calor insuportável e a sede me desorientavam fazendo-me errar a trilha por centenas de metros.
             Na tarde do segundo dia de caminhada, encontrei o local de uma antiga morada abandonada, com enormes pés de mangas, fazendo sombra na mata rasteira da beira de um igarapé. Eu trazia comigo arroz, farinha e anzol, fiz então algumas iscas com a farinha de mandioca e enquanto o arroz secava nas brasas da fogueira fui até o igarapé tentar pescar alguma piaba, refrescando o corpo deitado sobre a laje de pedra por onde a água fresca corria formando um poço mais abaixo, onde joguei o anzol várias vezes sem sucesso. Foi então que lembrando talvez da indiazinha, que vi na aldeia da boca da mata, me distraí comigo mesmo por algum tempo e quando percebi o barulho vindo do outro lado do poço já era tarde, uma índia velha e um menino que andavam pelo lavrado, me olhavam pasmos de espanto, seguindo depois apressados pelo caminho sem sequer olhar para trás.
                A trilha indicada pelo tuxaua na aldeia da boca da mata, levou-me até outra aldeia, onde havia uma escola. Dois homens e uma mulher branca vindos da cidade numa caminhoneta trocavam mercadorias por porcos, galinhas e outros animais com os índios e caboclos da região e com eles voltamos de carona para a cidade, eu e o professo da aldeia, um jovem caboclo que me presenteou durante a viagem com a cabeça de um cervo que os índios tinham caçado nos buritizais do lavrado. .
               Chegando na cidade encontrei o Bernardo preparando-se para voltar ao Pará. Ele tinha pedido emprestado um revólver que nunca devolveria ao dono, mostrando-o me convidou para ir com ele, dizendo que o seu velho garimpo não produzia muito ouro, mas que dava bem para se manter e que assaríamos primeiro na cidade onde estavam sua mulher e seu filho e que em pouca semanas estaríamos novamente na mata.
              Resolvi não ir com ele e viajei para o sul primeiro que o Bernardo para o Pará. Fazia muito tempo que eu não via meus filhos e me sentia cansado de andar pelas matas sem obter nenhum resultado. No sul, depois de algum tempo telefonei para um hotelzinho em Boa Vista, onde se hospedavam a maioria dos garimpeiros rodados naquele tempo, um deles chamado Silvestre que perdera uma das pernas numa queda de barreira no garimpo da serra pelada e que era nosso conhecido atendeu ao meu telefonema, quando perguntei se ele tinha alguma notícia do Bernardo, ele respondeu que tinham matado por aqueles dias o mateiro Bernardo, num garimpo do Pará. 
                 Eram tempos cruéis aqueles em que homens  rudes e mulheres desiludidas vindos de toda parte, se embrenhavam pela selva em busca de riqueza fácil, ou nem tanto.  Se embrutecendo ainda mais na convivência constante com outros gananciosos desajustados, onde a morte, o isolamento  e as adversidades de um mundo hostil,  rondavam constantemente os aventureiros sem leis e sem escrúpulos, estes que infelizmente fizeram os primeiros contatos com algumas aldeias indígenas outrora isoladas, levando até eles os reflexos negativos da nossa civilização, no comportamento dos homens incultos e selvagens que se matavam nos garimpos, em busca de ouro e diamantes,  enquanto isso nas grandes cidades, pacíficos cidadãos cultos e civilizados compram esses mesmos diamantes, trancando-os em seus cofres, ou ornamentando suas mulheres educadas e elegantes com jóias de ouro e brilhantes, alheios as milhares de bocas famintas das crianças das periferias. - Será que tem pão no céu? Perguntou para mãe a criança, antes de morrer de inanição

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