sábado, 31 de março de 2012

História de Onça - Parte X


                          
          História de onça
                     Num sonolento crepúsculo, adormeceu o tempo, fechando os olhos verdes sobre a vastidão da floresta Amazônica. As horas velhas caídas como folhas mortas, acumularam-se desordenadas sobre a capa do lacrau, por onde rasteja sem pressa a surucucu pico de jaca

         O Lázaro, um leproso que vivia num batelão no rio Juruá, me falou certa vez que nunca se deve confiar num homem de barriga vazia. Naquele tempo eu viajava num barco pesqueiro de lago em lago pescando tambaquis e conheci o Lázaro numa tarde quando ancoramos nosso barco num flutuante na foz do rio Juruá, onde iríamos passar a noite.
           Eu tinha ganhado um sagüi que um carpinteiro do rio Tefé capturou ainda jovem e que depois de adulto ficara bravo e mordia os filhos do carpinteiro e outras crianças da redondeza. A contra gosto aceitei o pequenino animal maltratado que o carpinteiro queria livrar-se, trazendo-o amarrado pela cintura por uma tira de pano. Fui mordido nas mãos várias vezes enquanto cortava com uma faca a tira de pano suja e apertada na barriga vazia do bichinho, soltando-o depois no flutuante onde eu estava morando. Por vários dias ele ficou escondido nos cantos da casa, aparecendo somente quando eu oferecia alimentos, insetos e frutas. Com o tempo passou a comer na minha mão e em poucas semanas nos tornamos amigos e ele passava boa parte do dia dentro do bolso da minha camisa, mas continuava a me morder sempre que discordava de alguma coisa, principalmente quando tinha que tomar banho. Quando começamos a pescar tambaquis no pequeno barco peixeiro, ele fazia parte da tripulação e eu sempre tinha que incluir bananas na lista de compras quando saíamos para pescar no pequeno barco, onde seis ou sete pescadores se apertavam noite e dia. O sagüi Chiquinho era o único que possuía o seu próprio camarote, uma caixa de madeira pintada de marrom, parafusada ao teto, onde ele se escondia quando estava aborrecido, do contrário ficava pulando de um lado para outro tentando capturar borboletas, gafanhotos e outros insetos que entravam no barco durante as viagens.  Algumas vezes chegava a cair dentro do rio saltando atrás de alguma borboleta que passava voando perto do barco e depois de resgatado ele ficava horas trancado em seu camarote, tremendo de medo das piranhas.     Durante as viagens, cada um dos pescadores tinha um determinado tempo da noite ou do dia para pilotar o barco, inclusive o cozinheiro que era eu, auxiliado quase sempre pelo co-piloto Chiquinho que ficava pulando de um lado para outro em cima do leme. 
       Numa tarde quando descíamos o rio Juruá, demos carona a dois pescadores desconhecidos que tinham sido abandonados pelo capitão do barco em que trabalhavam numa das ilhas. Mais tarde  ao cair  da noite chegou a minha vez de pilotar o barco, estávamos perto da foz do Japurá, era verão e muitos paus emergiam no leito do rio, exigindo muita atenção do piloto. A noite chegou enquanto eu ainda estava pilotando e ouvindo os gritos do Chiquinho que estava sendo importunado pelos dois homens estranhos que sopravam fumaça de cigarros em sua direção. Não imaginei que eles pudessem fazer algum mal ao animalzinho indefeso e mantive minha atenção no rio... Mas me enganei. Chegando na foz do rio, aportamos no flutuante ao lado do barco do Lázaro e de outros barcos que ali se encontravam. Imaginando que o Chiquinho estivesse dormindo fui olhar dentro de sua caixa, mas estava vazia, imediatamente procurei por todo o barco chamando seu nome e imaginando que tivesse caído no rio. Convidei então o Jabuti, um menino pescador que viajava conosco e voltamos remando subindo o rio numa canoa, alumiando as árvores da barranca e chamando pelo nome do sagüi que em outras ocasiões respondia aos chamados com silvos agudos e fortes.  Mas desta vez remamos até muito longe, depois voltamos pelo outro lado do rio chamando, mas não o encontramos. Voltando ao nosso barco, percebi que os outros pescadores estavam mais calados que o normal. Os dois pescadores estranhos que trouxemos de carona já tinham partido em outro barco que deixara o flutuante há algumas horas. Como de costume naquela noite preparei o jantar da tripulação e depois subi no toldo do barco, onde me deitei olhando as estrelas enormes do límpido céu amazonense. Mais tarde descendo para banhar-me e me acomodar para dormir, encontrei o meu amigo pequenino morto dentro das dobras do meu cobertor. Num ataque repentino de raiava eu quebrei com as mãos o pequeno camarote marrom do meu amigo Chiquinho e joguei no rio, junto com todas as bananas que tínhamos a bordo e por ultimo joguei seu corpinho magrelo para as piranhas nas águas do rio Juruá. 
                Na manhã seguinte antes de zarparmos fui até o barco do Lázaro comprar cigarros, ele me ofereceu o último que tinha, o qual estava fumando , eu aceitei o cigarro babado para não ofendê-lo, depois contei o que tinha acontecido no nosso barco na noite passada. Foi então que depois de dizer que não se deve confiar em quem já passou fome, ele me contou um pouco de sua vida de vendedor de mercadorias pelos rios da Amazônia. 
      Contava ele que quando procurou ajuda, a hanseníase já estava muito adiantada, o que dificultou o processo de cicatrização causando deformações na face e nas mãos, desde então tinha uma vida solitária viajando pelos afluentes do rio Solimões, vendendo mercadorias para os beiradeiros no seu batelão.
              Ele, de subida fazia as vendas e de descida voltava cobrando as mercadorias vendidas,. quando um beiradeiro escutava ao longe o motor do batelão subindo o rio e trazendo as mercadorias necessitadas, café, açúcar, sal, etc. Gritava contente avisando a família. - Lá vem o Lázaro !  Mas depois de alguns dias quando tornava a escutar o motor do barco que descia o rio cobrando as mercadorias vendidas, Gritava descontente. - Já vem voltando aquele leproso! 
            Quando a hanseníase ainda não tinha cura, havia muitos leprosos naquela região da Amazônia. Era comum encontrar pessoas com mãos e faces deformadas muitos anos depois da descoberta da cura, na época em que lá vivi. Muitas histórias eram contadas sobre os leprosos e seus sofrimentos, como o triste destino de um jovem morador de uma cidade ribeirinha que era noivo de uma linda jovem de cabelos muito longos e negros. Poucas semanas antes do casamento o noivo descobriu que tinha contraído hanseníase, a contagiosa e terrível enfermidade que não deixava alternativa para o seu portador, além do isolamento e da morte lenta e solitária.    
       Uma escadaria com muitos degraus descia da praça até o rio, onde pela manhã as mulheres da cidadezinha lavavam suas roupas, enquanto seus filhos se banhavam nas águas correntes e límpidas. Da praça, nos bancos de pedra, á sombra de árvores centenárias circundadas por pequenos muros caiados de branco, dava para ver toda a grande ilha verde abrindo o rio em dois, bem em frente à cidade, onde todas as tardes o sol depois de dourar as águas do rio, se deitava sobre o macio colchão verde da floresta e os pescadores voltando pra casa, amarravam suas canoas no porto e subiam a escadaria levando numa das mãos o remo e na outra os peixes frescos para o jantar.
              E foi num desses entardeceres dourados pelo sol que uma das canoas não voltou e nunca mais voltaria ao porto da escadaria, onde a jovem de longos cabelos negros sentava todas as noites que se seguiram, esperando o seu noivo. Seu vestido branco, destacando-se na escuridão da noite, podia ser visto de longe por aqueles pescadores que voltavam atrasados para casa.  Passaram-se os anos sem que ninguém soubesse do destino do jovem noivo leproso, então certo dia quando alguns moradores da cidade estavam caçando, encontraram-se  por acaso com um homem deformado pela hanseníase fugindo pela mata. Um dos caçadores que estava atrasado do grupo reconheceu o fugitivo como sendo o jovem noivo da mulher de branco. Voltando a cidade os caçadores reuniram-se com os outros moradores e decidiram construir um abrigo na mata, próximo ao local onde o jovem fora encontrado, e assim fizeram. No abrigo construído depositaram fósforos, roupas e alimentos. Nas semanas seguintes voltaram várias vezes ao local do abrigo, que em alguns anos foi tomado pela mata, sem que ninguém tivesse usado ou consumido nenhum dos alimentos ali deixados.


 

                                  IGARAPÉ
      
               
                 Quase sempre quando o Bernardo estava concentrado em alguma tarefa, fazendo algum cabo de ferramenta ou bateando pacientemente em busca de alguma fagulha dourada, costumava cantarolar baixinho uma musica falando de morte. “- Só tenho raiva da morte, não é amigo ? Matou o pai, do pai, do papai. A gente mata e vai preso, não é amigo? A morte mata e não vai...”
                Cantava ele a mesma morte que o chamou pelo radio, naquela noite quente do verão roraimense, poucos minutos após eu zangado ter trocado de local a minha rede, saindo de perto dele, aborrecido com o alto volume do rádio em que ele escutava um programa muito chato, que transmitia recados dos familiares dos garimpeiros.  O radialista antipático transmitiu o recado que chegara do estado do Pará, onde a mulher do Bernardo pedia para que ele voltasse imediatamente por algum motivo que não lembro bem, talvez seu filho estivesse doente.
              Por vários dias, sob o sol escaldante caminhávamos pelo lavrado, levando no jamanchim mais de quarenta quilos de ferramentas e alimentos, suportando penosamente as picadas dos piuns e das mutucas enquanto seguíamos em direção a mata das cabeceiras do rio Tacu tu, onde iríamos procurar por ouro e diamantes. Nós quatro tínhamos saído a duas semanas da selva, blefados, sem ouro.  Sem alternativa resolvemos seguir em direção a Guiana, onde se pode chegar por terra, destino dos garimpeiros que não podem fretar um avião e entrar para regiões da selva ainda inexploradas.
             Numa das noites que passamos no território ianomâmi, o Bernardo contou o motivo dele ter saído de um velho garimpo que teve no Pará e ido para a selva Roraimense, onde teve boa sorte assim que chegou, encontrando uma grota rica e garimpado alguns quilos de ouro rapidamente. Comprou então um terreno com três  casa na cidade e trouxe sua mulher e seu filho de quatro ou cinco anos para Boa Vista. Quando o ouro da grota que ele encontrara acabou, continuou procurando por outras grotas em várias regiões da selva, sem sucesso e quando eu o conheci, já havia gastado todo o ouro da grota rica em ferramentas, alimentos e aluguéis de aviões, procurando o que não perdera nos grotões das encostas de serras esquecidas, nos confins da floresta. Foi por esta época que sua mulher e filho voltaram para a casa da mãe no Pará, levando metade do dinheiro conseguido com a venda das casas da cidade.
                 O Bernardo não pregou os olhos naquela noite em que recebeu o chamado da mulher pelo rádio e antes do dia amanhecer completamente tinha desatado a rede que colocou dentro de um saco junto com uns punhados de farinha de mandioca, preparando-se para voltar só para a cidade, sem nem mesmo suspeitar que se apressasse em direção à morte inevitável.
              Sempre é bom prestar muita atenção nas histórias contadas pelos companheiros de garimpo, pois às vezes pequenas mentiras escondem algumas grandes verdades, que podem ser muito úteis para se conhecer um pouco da personalidade dos companheiros com passado desconhecido.  Quando o Bernardo contou que depois de ser expulso por pistoleiros do seu antigo garimpo, planejou sua vingança por várias semanas, fiquei pensando se era ou não verdadeiro o seu relato. Ele conhecia bem a selva naquela região que trabalhava há muito tempo,  onde passou escondido alguns dias, observando as atividades dos homens que tomaram seu garimpo. Num final de tarde de domingo quando seus inimigos voltavam de barco da corrutela onde tinham ido para beber e fazer compras, foram pegos de surpresa pelos disparos da espingarda calibre vinte quando desciam do barco. Sem que tivessem tempo de reagir usando suas armas, meia dúzia de homens feridos se debatiam na lama do igarapé, atingidos pelos tiros certeiros, enquanto o Bernardo fugia rápido pela mata.  
               Quando o dia amanhece no lavrado, os famintos piuns chegam junto com o sol abrasador, aos milhares, sugando o sangue e a paciência de qualquer um que se aventure naquela região pedregosa e semidesértica, onde a cascavel busca abrigo nas sombras dos rochedos e o tamanduá bandeira, com seu andar lento e cambaleante, vagueia procurando alimento entre os enormes formigueiros, ressequidos do sol e pelo  calor insuportável do território Uapixana. 
      O Bernardo voltou só para a cidade naquela manhã e agora eram quatro jamanxins para três garimpeiros levarem até a boca da mata, distante três dias do local onde passamos a ultima noite. Sabíamos que existia uma aldeia indígena a um dia de caminhada, próximo a aldeia morava um homem que possuía uma carreta de bois e que talvez, mediante a algum pagamento pudesse buscar o nosso rancho e ferramentas. Caminhei boa parte do dia e quando cheguei na casa do tal homem dos bois, já era mais de meia tarde.
            Ao lado da casa, com varanda na frente, se encontrava a carreta com as rodas muito grandes feita toda de madeira maciça. Na varanda deitados em redes de couro de boi trançado, quatro homens aparentando mais de sessenta anos conversavam. Um deles, o dono da casa, era negro alto e extraordinariamente forte com cabelos totalmente brancos, foi ele que me mandou entrar quando me aproximei pedindo licença, buscou água e um banco de três pés trançados, com assento também de couro.  Enquanto contava minha história, observa os quatro homens velhos me olhando desconfiados e quando no final falei que necessitava fretar a carreta do dono da casa, ele respondeu francamente que não tinha problema, se eu tivesse com o que pagá-lo. Ele aceitou como pagamento o rádio do Bernardo, dizendo que na manhã seguinte voltaria comigo para buscar nossa carga e que a levaria junto com a carga dos três homens que estavam na sua casa, até a boca da mata, do outro lado da aldeia uapixana.
             Os três homens que pareciam ser velhos demais para o que se propunham, iriam entrar para a selva em busca de um ouro que acreditavam saber onde se encontrava, enquanto eu e os outros dois companheiros que estavam esperando pelo carro de boi no caminho, sem saber nem ao menos onde ficava a tal boca da mata, amanhã seguiríamos a esmo na mesma direção. Estava anoitecendo quando o jantar tão esperado por mim, que não tinha comido nada durante todo o dia, foi servido. Uma mesa grande na sala da casa sobre a qual foi colocado dois pratos com carne de sol, alguns limões, uma panela com leite fervido no centro da mesa e uma vasilha de farinha de mandioca, pra quem tinha imaginado que comeria depois de muitos dias arroz, batatas, macarrão e um bife, não foi uma surpresa muito agradável, antes de descobrir, a contra gosto, que leite com carne, farinha, limão e fome, combinam muito bem. Depois do jantar, sentados na varanda da casa, nós quatro escutávamos o anfitrião contando suas histórias de onça, enquanto uma lua cheia gigantesca nascia no horizonte dourando a mata rala e retorcida do cerrado, formando uma paisagem de um colorido quase irreal, de onde eu tirava os olhos apenas quando uma jovem negra de cabelos lisos, que talvez fosse filha do dono da casa, passava em frente à janela enquanto retirava os pratos da mesa.
             O homem grande disse ser filho de um dos soldados do marechal Rondon que casou com uma índia e ficou morando perto da aldeia, onde construiu a casa, iniciando uma criação de gado. Naquele tempo se abateu sobre a região uma grande seca que durou muitos meses, foi quando alguns índios vieram pedir para que seu pai, o único na região que possuía arma de fogo, fosse com eles até um lago existente nas cabeceiras do rio Tacu tu para matar um animal gigantesco, que saíra do lago seco e seguia em direção ao rio. Quando seu pai chegou no local o animal desconhecido já havia sumido no rio, deixando em sua passagem pegadas enormes ao lado de um sulco aberto na terra, tombando inclusive algumas árvores menores durante sua passagem. Não tinha sido essa a primeira história que eu escutara por La, de encontro de caboclos com grandes animais desconhecidos e nem seria ultima, a própria Amazônia é um gigante desconhecido que poucos tiveram a oportunidade de ver bem de perto.
                    Quando amanhecia o novo dia, eu e o homem negro já estávamos cansados de sacolejar pelo caminho pedregoso, dentro do carro de boi. Assim que chegamos carregamos nossas coisas e antes do anoitecer estávamos de volta a casa do homem, trazendo nossos mantimentos, onde passamos a noite, e pela manhã seguimos viagem novamente, em direção a boca da mata.
                  Os três garimpeiros velhos e os meus dois companheiros seguiam a pé ao lado da carreta, que rangendo as rodas de madeira, levava vagarosamente nossas coisas por entre as pedras, cupins e a vegetação escassa do lavrado, dirigida pelo gigante negro sentado no assoalho com as pernas penduradas para fora próximas aos traseiros dos bois. Eu seguia o grupo montado num cavalo, que o dono dos bois resolvera de ultima hora levar junto, e de cima eu podia ver melhor as distantes montanhas rochosas, que enfileiradas formavam um vale, por onde provavelmente algum outro rio, talvez o rio Cachorro, corresse em direção ao sul, levando suas águas para juntar-se as do rio Maú, rio Tacu tu e rio Urariquera, formando muito abaixo, no encontro das águas em meio à floresta, o rio grande Branco. 
         Verdes buritizais, estendendo-se por quilômetros nas baixadas, entre as colinas pedregosas indicavam os locais das nascentes e leitos de igarapés, que na estação das chuvas correm generosos pelo lavrado, levando suas águas límpidas em direção aos rios mais próximos que cortam o território Wapixana. Ao largo dos buritizais, onde uma cacimba rasa garante água límpida com fartura, os índios constroem suas casas, geralmente distantes centenas de metros umas das outras e quem vem andando pelo lavrado, pode ver de muito longe, por trás das colinas, as pipas coloridas empinadas nos dias de vento, pelos curumins das aldeias e encontrar mulheres e crianças queimadas pelo sol, levando nas costas enormes feixes de lenha, trazidos não se sabe de onde, seguindo de vagar em direção às suas moradas, que de tão distante não se pode nem ver onde ficam em meio aquele deserto desabitado, que se estende de horizonte a horizonte.




                                PASSARÃO

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