sexta-feira, 25 de maio de 2012

História de Onça - Parte XVIII


                                                                          AÇAI
                                                
              Naquele anoitecer, depois dos garimpeiros terem ido embora, quem não passou muito bem foi o Oliveira e no outro dia depois do almoço, quando eu o Pedro e o velho voltamos a escavar o barranco, ele ficou lavando as panelas no acampamento, se sentindo meio desanimado e foi quando gritou desesperado pela segunda vez naquela viagem. Desci correndo a encosta da montanha e fui o primeiro a chegar ao barraco, encontrando o Oliveira caído e esverdeado, fazendo vômitos, tinha sofrido um ataque repentino de malária. O velho entrou mata adentro em busca de raízes de açaí para fazer chá, enquanto o Oliveira, tomando um punhado de comprimidos de quinino de uma só vez, foi pra rede, onde passou uns dois dias, comendo pouco e bebendo muito chá de raiz de açaí. Eu, o velho e o Pedro continuamos o trabalho, quase sem dar conta das abelhas do Oliveira que se somaram as nossas, naqueles dois ou três dias em que ele passou na rede se recuperando.  
         Quando o Oliveira voltou ao trabalho recuperado, eu já vinha sentindo-me também cansado de mais, há alguns dias. O trabalho era muito forçado, pois,ou se estava cavando a terra dura com a picareta, ou jogando pazadas de terra para cima, num movimento constante e cansativo. Naquele entardecer, Pedro e eu, por algum motivo, estávamos trabalhando sós, aproveitando ao máximo a luz do dia no final fresco da tarde, e como eu sentia dores fortes entre o tórax e o abdômen, me queixei, dizendo achar que também tinha contraído malaria.
           O Pedro era um homem de uma brutalidade extrema, herdada dos primeiros colonizadores que os portugueses conseguiram se livrar, jogando-os o mais longe possível de Portugal, nos confins dos sertões do novo mundo, e que pode ser confirmada com a seguinte historinha, que me foi cantada certa vez por  um outro maranhense, que ao contrário do Pedro Maranhão, era uma pessoa muito amável. ( O pai maranhense, mandou o filho maranhense, pegar a mula maranhense, para ir buscar dois sacos de farinha de mandioca na casa de um vizinho. Na volta, a mula desembestando, rasgou um dos sacos de farinha no arame enfarpado da cerca. O filho, com raiva, sacando a faca e furou também o outro saco de farinha. Chegando em casa, com os dois sacos de farinha rasgados e vazios, foi indagado pelo pai sobre o motivo. Respondeu que a mula rasgou um e ele com raiva rasgara o outro. Seu pai, depois de ouvir a explicação, balançou a cabeça afirmativamente, dizendo que ele tinha feito muito bem, do contrário, não seria bem homem.)
          Assim era o maranhense Pedro, embrutecido, parecendo mais com uma fera sem raciocínio do que com um homem, daqueles de boa vontade é claro.  - Dor de brabo ! Foi a resposta que ele me deu naquele entardecer, quando me queixei das dores fortes que sentia por dentro do corpo e que estavam quase me impedindo de trabalhar. Dor de brabo, dor que sentem aqueles que não têm costume de trabalhar pesado. Sentindo enjôo do cheiro da comida e da fumaça, não jantei naquela primeira noite de malaria. Sobraram uns comprimidos de quinino que comecei a tomar a contra gosto, porque até a água da cacimba parecia ter gosto amargo. Enquanto os outros dormiam roncando, passei acordado a noite toda, indo da rede para o mato e do mato para a rede incontáveis vezes, com uma diarréia quente, que parecia estar me cozinhando por dentro. Uma febre forte chegou sem aviso, fazendo-me tremer de frio e quando o dia amanheceu meu corpo estava coberto de um suor pegajoso e mal cheiroso, minha boca estava seca, a língua parecia inchada, o desânimo e uma fraqueza repentinos tiravam minhas forças, enquanto a diarréia esverdeada não dava trégua, me fazendo levantar da rede e correr para o mato de dez em dez minutos.
       Depois do café da manhã o Oliveira entrou na mata atrás de mais raízes de açaí. Quando voltou preparou uma panelada de chá forte que eu passei bebendo durante toda a manhã,foi  quando tomei o último comprimido de quinino que sobrara, sem apresentar melhoras. Enquanto os três trabalhavam no barranco, eu sentindo hora frio, hora calor e fortes dores internas, como se meus órgãos estivessem fervendo numa panela de água quente, me debatia na rede espantando os insetos, ou corria baixando as calças em direção a mata, que parecia estar cada vês mais distante.         Ao meio dia o Oliveira insistiu para eu comer um pouco, mas o cheiro da comida me causava vômitos e até mesmo o chá de açaí não descia mais em minha garganta inchada. Quando chegou a noite eu não tinha mais forças para sair da rede e a diarreia contínua, em forma de um líquido verde, já sem aquele cheiro característico de fezes, molhava o fundo de minha rede de tempos em tempos.
        Tudo acontecera tão de repente, que eu me recusava a aceitar a minha cruel realidade. Estávamos na selva depois de tanto trabalho, o ouro da montanha já estava quase no picuá, o Pedro e o Oliveira tinham melhorado da malária com os comprimidos de quinino, o velho nem sentia o menor cansaço e só eu, que em apenas dois dias, já não podia mais levantar-me da rede. Maldizia minha sorte enquanto olhava os outros dormindo em suas redes, recusando-me a acreditar que não estaria melhor na manhã seguinte, mesmo sentindo meu corpo e minha mente se deteriorando, meus olhos ressequidos vendo na mata escuras, coisas que a razão não confirmava , meu cérebro confuso devido a febre alta, criava imagens que os olhos não viam, pensamentos confusos atemporais, lembranças, lugares, imagens e vozes de pessoas distantes se misturavam a realidade, confundido meus pensamentos, aumentando ainda mais a angústia, o desespero, o frio e a dor insuportável, causada por aquilo que estava me corroendo por dentro e consumindo minhas entranhas, meu sangue e minhas forças.
                  O mais longe que se pode ir, é de onde não se pode mais voltar e quem anda pela selva corre sempre o risco de ficar por lá mesmo, para sempre. Basta se perder, ser picado por uma surucucu, pisar num sapo flecha com os pés escoriados, ser abraçado por uma sucuri na beira do lago, contrair um malária maligna ou se acidentar quebrando uma perna, como aconteceu com um garimpeiro que varava pela selva com um companheiro, seguindo em direção a um garimpo recém descoberto, onde tinha sido descoberto  muito ouro. O terreno era montanhoso, onde até a pista de pouso clandestina tinha sido construída na beira de um penhasco. Da pista para o garimpo a varação de muitos dias pelas montanhas era muito perigosa, principalmente para quem varava com o jamanxim carregado com ferramentas e alimentos, como aconteceu com um dos homens, que era gordo e caiu do penhasco quebrando uma perna. Seu companheiro não podia carregá-lo pelas trilhas das montanhas, com fratura exposta, o ferido não podia nem ao menos se mexer. Isolados na mata, sem remédios e sem saber cuidar do ferimento, montaram acampamento no local do acidente, esperando por ajuda, que nunca chegou. Os gritos de dor do garimpeiro, com a perna inchada, apodrecida e sendo devorada por vermes, ecoavam pelas encostas das montanhas, sem que ninguém mais além do seu companheiro ouvisse.
            Na última noite em que o ferido tornou a pedir para que seu companheiro o matasse, ele assim o fez, dando um tiro com a espingarda na cabeça do amigo, que foi enterrado à sombra do grotão, ao lado da picada, onde alguns dos garimpeiros que passavam depois, com os picuás cheios de ouro, voltando para casa, acendiam velas agradecendo em silêncio por não ter tido a mesma sorte do desafortunado dono da cruz.

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