sábado, 11 de fevereiro de 2012

História de Onça - Parte III

                 
       A imensidão verde da floresta Amazônica tem seus segredos e mistérios bem guardados, seja na aparente calmaria das águas límpidas dos grandes lagos desconhecidos, perdidos em meio aos igapozais intransponíveis, morada do o jacaré-açu e onde vive a cobra grande sucuriju, que faz o chão tremer quando esturra antes de cair à chuva ao entardecer, ou nas profundezas das águas barrentas dos rios que dessem as cordilheiras, quebrando barreiras, arrastando as árvores das barrancas, escavando cavernas no leito rochoso onde dorme o peixe fera, que abocanha sem piedade os imprudentes e incautos que não respeitem seus domínios. Até mesmo na sombria imensidão das terras firmes, bem lá no centro da mata, além do igapozal alagado, onde o misterioso mapinguari deixa seu rastro arredondado na terra vermelha da encosta da montanha, quebrando ao passar as árvores menores que atrapalhem seu caminho. Talvez por isso então no silêncio da noite, quando a rede se torna pequena e não se encontra jeito para tornar a dormir depois ouvir ou pensar ter ouvido algo, o pensamento do mateiro viaja longe com a saudade e as lembranças, ou até mesmo pegando carona no som distante do motor de um avião que passa la no céu, seguindo talvez para o Caribe, Europa...Sabe-se lá para onde vai, e quando o dia amanhecer já estará  chegando a outro lugar distante, aonde pessoas de roupas limpas e sapatos secos chegarão aos seus destinos, sem nunca imaginar que la embaixo dentro da mata que sobrevoaram , um caboclo sem sono, sem ouro, sem sorte e sem nada, os escutava passado lá por cima das nuvens. 
       Dormindo entre milhões de árvores, o mateiro escuta durante a noite o som que fazem ao cair às árvores velhas apodrecidas, algumas muito longe, outras nem tanto. Entrelaçadas por cipós, uma ao cair derruba a copa da outra, que derruba outra e mais outra. O caboclo chama este efeito de “macaco” e quando uma árvore cai por perto é prudente se afastar rápido, antes que caia na sua cabeça a próxima.  Assim como as árvores fazendo barulho, tem noites que é a onça pintada que fica rugindo alto, ás vezes também muito longe em algum grotão de serra, outras vezes  perto de mais, ou então é uma anta gorda que passa, fazendo barulho no ubinzal, quebrando galhos secos e revolvendo as folhas caídas que forram o chão úmido da floresta.  Quem está na rede, escutando em meio à escuridão, sem nem mesmo enxergar as próprias mãos, ás vezes imagina coisas, ou surgem lembranças de outros acontecimentos, outros lugares, outras histórias, como a do pescador de tambaqui que desceu da canoa e entrou na mata para ver passar o bicho que ele pensou tratar-se de uma anta que vinha andando pela floresta em sua direção.
            Nesta época eu estava morando em um flutuante num lago do rio Tefé, o meu vizinho mais próximo tinha comércio no seu flutuante. Comprava dos caboclos que traziam do interior, peixes secos, charque de pirarucu, castanhas, bananas e peixes lisos, sem escamas, que depois de congelados ficavam esperando na câmara fria pelo regresso do barco dos colombianos, que de tempos em tempos descia o Solimões, trazendo mercancias de la e na volta levando o nosso pescado para Letícia, que de la depois segue de avião até Bogotá na Colômbia.
        O flutuante do meu vizinho era bem grande, construído sobre as toras de açacu, que é a madeira mais leve da região, flutuava no lago suportando o peso da construção de madeira de dois andares, onde muitos dos barcos de pesca vindos de Manaus, Manacapuru e até mesmo de Belém do Pará costumavam atracar e passavam a noite esperando a vez de pegar gelo na fábrica, reabastecer ou fazer algum conserto no motor ou no casco da embarcação. Numa tarde eu estava escutando a conversa entre o dono do flutuante e o capitão de um barco pesqueiro de Manacapuru, quando o capitão falou que um de seus tripulantes tinha visto um homem muito grande caminhando pela mata, na beira de um lago localizado perto das barrancas do rio Japurá. Perguntei se o homem visto era loiro e magro, o capitão disse que não sabia ao certo como era o tal homem e me mandou perguntar ao pescador que o tinha avistado. Fui então até o barco para saber se o grandalhão que fora visto andando pela mata era o mesmo que eu conhecera em Roraima tempos atrás, quando trabalhamos juntos num garimpo ao norte do Pará, ele com mais de dois metros e vinte de altura era o garimpeiro mais alto de toda a Amazônia, e eu soube que estaria pesquisando ouro na região do rio Japurá, por isso quando o capitão falou no homem grande, pensei tratar-se daquele garimpeiro. Mas para minha surpresa o jovem caboclo pescador disse-me que não era loiro o homem grande que tinha visto, e sim peludo como um grande macaco. Fique curioso e pedi para o caboclo contar como foi esse encontro. Ele que estava atarefado remendando as malhadeiras furadas pelas mordidas de piranhas, trabalho que se repete sempre após cada pescaria , sem dar muita importância ao fato ocorrido e meio a contra gosto  me contou. Naquele dia depois de armar suas malhadeiras no lago, o tal caboclo ficou na canoa como de costume, repassando, revisando as redes, pois quando o tambaqui cai nas malhas se debate ferindo-se, o sangue atrai as piranhas que devoram rapidamente o peixe ferido junto com um bom pedaço de malhadeira, por isso o pescador atento rema silenciosamente de rede em rede, retirando os peixes recém capturados e que depois de sangrados, imobilizados com uma perfuração num local específico entre a cabeça e o corpo, são colocados na canoa, já sem risco de se debaterem e pularem para fora, tornando a voltar para o lago.. Enquanto remava de malhadeira  em malhadeira o caboclo escutou um bicho que se aproximava caminhando pela mata, curioso pensando tratar-se de uma anta o pescador remou silenciosamente até a beira do lago e descendo da canoa entrou na floresta escondendo-se atrás de alguns arbustos para ver o bicho passar. Estarrecido, espantado  o caboclo viu um homem grande despido e com o corpo coberto de pelos passar a poucos metros de onde estava escondido. Depois que o homem grande passou seguindo seu caminho, o pescador voltou correndo para a sua canoa e remou até o barco que estava apoitado na boca do lago, chamou os outros pescadores para mostrar o rastro que o homem peludo deixara ao passar pisando sobre o tronco podre de uma paxiúba caida.
            Quem vive na floresta raramente consegue ver o horizonte, sempre cercado de árvores o caboclo não enxerga longe. Mesmo quando está remando não sabe nunca o que encontrará depois da curva do rio. Quem anda na mata dia após dia, pode se surpreender  quando a chuva forte que escutou se aproximando, era na verdade o som da cachoeira de um rio desconhecido descendo de alguma serra, e outras vezes quando escuta o que imagina ser uma cachoeira é pego desprevenido pela chuvarada torrencial que chega sem aviso, ou até mesmo uma montanha ás vezes só é percebida quando se começa a subir, assim como um clarão na floresta pode ser uma clareira aberta por um vendaval ou o início de um alagado, a curva de um rio, ou as margem de um lago desconhecido. A sombra verde da floresta é um grande portal do inesperado, lendas, histórias e relatos de estranhos encontros se repetem com muitas semelhanças por toda a Amazônia, sem ninguém dar muita importância, talvez pelo fato do caboclo ser um pouco supersticioso, acreditando em curupiras, caboclos da mata, mapinguaris e até mesmo no demônio, como aquele que rondava uma aldeia e seus moradores nos chamaram para matá-lo.
             As primeiras três palavras que entendi o Taiquiú falar foram, “demônio, em português e sol e lua, em inglês”, na época achei estranho, um ianomâmi com medo do demônio e respondendo em inglês quando consegui me fazer entender que desejava saber quantos dias levaríamos para chegar, em resposta repetiu ele, sun e moon três vezes. Hoje em dia talvez seja melhor que nós caboclos caçadores de ouro, não possamos mais entrar na grande reserva ianomâmi, no vasto mundo verde do Taiquiú. Mas sempre me pergunto se aqueles que estavam lá muito antes de nós, sem nenhum embargo, falando inglês e supostamente caçando almas, utilizando-se do demônio para alcançar seus objetivos, os civilizados e gripados estrangeiros, teriam voltado também para suas casas?
            Naquela madrugada, logo que a mãe da lua parou de cantar o dia amanheceu ensolarado e nós seguimos viagem pela picada larga, no primeiro igarapé que atravessamos o Taiquiú caiu dentro, molhando a nossa farinha de mandioca que levava em seu jamaxim.  A farinha é o alimento principal do caboclo, pois além de ser leve e fácil de transportar, quando bem protegido da umidade se conserva boa para o consumo por muito tempo, e enquanto o mateiro tiver farinha e água, seguramente não morrerá de fome. A farinha misturada com suco de açaí, bacaba, buriti, patuá, ou adicionada ao leite do Amapá que é extraído da árvore que tem este nome, do mesmo modo como se extrai o látex da seringueira e que depois de bem batido e retirado toda a espuma, pode ser bebido puro ou com farinha e açúcar ,sem risco da língua ficar colada ao céu da boca. Também é usada a farinha de mandioca no saboroso arabu de ovos de tracajá, no sarapatel de fígado e ovos de jabuti, nas farofadas de carnes de caças ou mesmo consumida apenas com água e sal na ausência de outras coisas, refeição de emergência que é chamada pela caboclo de chibé. 
     Os ianomâmi fazem um beiju da mandioca que é chamado inchem e talvez pensando em aproveitar a farinha que tinha caído na água e que para nós não mais serviria o Taiquiú carregou o peso extra da farinha molhada por mais dois dias pela mata, até chegarmos à aldeia do tuxaua Paulo.                                                                                            
            Rasgando a densa vegetação por mais de quinhentos metros, uma pista de pouso muito grande, construída pelo exército perto da aldeia do tuxaua Paulo, deixava a mostra a distante cadeia montanhas verdes que se perdendo de vista em direção ao norte, parecia uma muralha existente entre a terra e as nuvens, dividindo as águas da chuva e das nascentes entre Brasil e a Venezuela. Enquanto caminhávamos pela pista seguindo em direção a aldeia, observávamos plantações de cana-de- açúcar, abacaxis e mandioca, que os índios cultivavam ao lado da pista aproveitando a clareira ensolarada que fazia doer os olhos que estavam acostumado com a sombra da floresta. O tuxaua tinha matado um macaco guariba naquela tarde e assim que chegamos ele me deu uma parte do bicho e num pequeno barraco onde passamos a noite, comemos a caça com a ultima poção de arroz que nos restava. No outro dia pela manhã, saímos para conhecer melhor os arredores da aldeia, logo nos chamou atenção uma casa civilizada construída nos arredores da aldeia, ficamos sabendo que pertencia a religiosos que estavam ausentes naqueles dias que coincidiam com a formação de um novo governo em Brasília.
            Ficamos alguns dias procurando ouro nos arredores da aldeia do tuxaua Paulo, abrindo pranchetas nas grotas, isto é, abrindo covas nos locais onde havia cascalhos, normalmente perto de córregos e igarapés em busca de ouro ou de outros minerais, que indicassem a presença de ouro nas redondezas. Estávamos otimistas no início do trabalho, encontrávamos em todas as escavações muito quartzo, muito ferro e algumas fagulhas grandes de ouro que eram recolhidas em um picuá pelos nossos guias o Taiquiú e seu amigo Auáide, quando voltávamos para a aldeia á tardinha o Bernardo sempre afirmava baseado em sua experiência que no dia seguinte encontraríamos a grota rica.
             Todos os dias pela manhã, eu o Bernardo e o velho Branco, deixávamos a aldeia e seguíamos para um novo local guiados pelos dois jovens índios em busca do ouro ianomâmi, numa manhã atravessamos o rio e depois de meia hora de caminhada encontramos outra aldeia, era uma aldeia maiongongue. Diferente das aldeias ianomâmis, essa era formada por casas grandes e muito bem construídas, parecendo uma vila no meio da floresta. Fomos muito bem recebidos na aldeia, os maiongongues ao contrário dos ianomâmi eram altos, as mulheres maiongongues usavam longos vestidos de algodão tingidos de azul e vermelho, e quando solicitadas por um dos índios da aldeia, serviram para os visitantes, dentro de cabaças limpas que traziam de suas casas a bebida feita de mandioca chamada de caxiri. Eram muitas mulheres, cada uma delas com sua cuia de caxiri e por gentileza nós bebemos uns goles de cada cuia da bebida oferecida, quando deixamos a aldeia depois de algum tempo andando pela mata, eu ainda me sentia meio tonto. Furamos umas grotas naquele dia perto da aldeia, sempre com o mesmo resultado, no fundo da bateia uma concentração de muitos minerais que indicam a provável existência de ouro na região e a presença de algumas fagulhas grandes douradas indicando que estávamos no caminho certo e que em algum lugar em meio aquelas montanhas, haveria uma concentração do metal amarelo que tem o poder de transformar quase tudo e quase todos. Nesta tarde encontramos algumas clareiras abertas já há alguns anos na mata, onde garimpeiros que utilizavam motores americanos , como se podia ver nas placas de identificação das carcaças abandonadas e em outros equipamentos estrangeiros, tinham garimpado antes de nós o ouro existente naqueles locais, mas as escavações pequenas e distantes umas das outras indicavam que o ouro extraído tinha sido pouco e que ainda não tinha sido encontrado a grota rica, o ouro daquelas montanhas perdidas ainda estava em algum lugar por la.
           Ao entardecer quando regressamos à aldeia do tuxaua Paulo, o Roberto, amigo do Bernardo efilho do tuxaua da primeira aldeia, estava nos esperando. Falou que veio para ir com os maiogons a um garimpo na Venezuela, onde de tempos em tempos eles buscavam ouro. Naquela noite combinamos com os índios que nós deveríamos subir o rio Auris, talvez mais perto das nascentes houvesse uma maior concentração de ouro, pois até aquele momento todo o nosso trabalho nos arredores da aldeia, não tinha produzido nenhum resultado, a não ser que as escavações nos deixaram convictos de que em algum grotão perdido em meio aquelas serras esquecidas pelo tempo, haveria ouro suficiente que daria para comprar os sonhos de cada um de nós.

LIBÉLULA


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