sábado, 18 de fevereiro de 2012

História de Onça - Parte IV


LIBÉLULA
           
            Deixei a aldeia no clarear do dia na manhã seguinte, seguindo por uma trilha usada pelos índios fui em direção às montanhas que podiam ser avistadas da pista de pouso, andando de vagar evitando fazer barulho, na esperança de surpreender alguma caça. Libélulas maiores que uma mão aberta, confundiam seus predadores num bailado hipnotizante, esvoaçando entre as árvores vertiginosamente, evidenciando os quatros círculos coloridos localizados nas extremidades de suas quatro grandes asas transparentes, numa seqüência interminável de movimentos frenéticos , sumindo e reaparecendo nas sombras da floresta. Os quatro círculos coloridos hipnotizantes, localizados propositalmente nas extremidades de cada uma das quatro asas do inseto, tornavam a grande libélula praticamente invisíveis aos olhos de seus predadores. 
       A floresta é um mundo magnífico, onde a magia é realidade e a realidade é a própria mágica que pode surgir a qualquer momento e em qualquer lugar, basta sentar-se sobre uma árvore caída e esperar imóvel e em silêncio até que se refaça a normalidade. Em pouco tempo a selva esquece o estranho recém chegado e tudo volta à rotina, os pequenos pássaros coloridos que denunciavam a chegada do intruso com seus cantos estridentes foram cansando e se afastaram, o bando de araras recomeça a algazarra na copa da sumaúma, expondo sua plumagem, azul, amarelo, vermelho,verde e branco, então a pequena e sorrateira cutia corre com seus pés ligeiros sobre as folhas caídas até a castanheira mais próxima para roer com seu dentes fortes e afiados as castanhas maduras que caíram na noite passada. Em poucos minutos a mata está repleta de criaturas de todas as cores, de todos os tamanhos e de todas as formas e dezenas de borboletas azuis pousam nas areias brancas que a última chuva depositou na curva do igarapé.



           
          
               Depois de andar por horas naquela manhã e ter errado um tiro na única caça que encontrei, decidi voltar para aldeia, com fome, mas resignado com a possibilidade de ter sido aquele, o dia da caça. No caminho de volta, ao lado de uma árvore podre caída sobre a picada encontrei os restos de um verme gigante desconhecido, que teria sido morto talvez pelos índios, ou por algum predador, o animal tinha o diâmetro do meu braço, o corpo era anelado como são algumas minhocas e vermes, a cabeça e a cauda não estavam no local, mas pelas partes que se encontravam por perto da árvore, calculei que inteiro teria em torno de um metro de comprimento. O animal desconhecido lembrou-me então da pequena cobra colorida em anéis azuis, vermelhos, amarelos e pretos, semelhante à cobra coral, que aproximou-se do acampamento saindo da mata serpenteando lateralmente e quando eu a mostrei para um índio velho que estava por perto, ele fazendo sinais estressados mandou que a matasse imediatamente, fazendo-se entender por mímicas que a cobra era mortal, observando-a depois de morta, constatei que não era uma cobra coral comum, mais parecia uma minhoca colorida, uma salamandra sem pernas, cobra de vidro, cobra sega, sei lá.                      
         Mesmos os velhos caboclos amazonenses nativos, aqueles nascidos nos tapiris assoalhados com paxiúba, construídos dependurados na barranca de algum rio embrenhado na mata, se deparam às vezes com animais desconhecidos, caboclos como o velho Raimundo que quando ainda jovem teve o pé mastigado por um jacaré, depois de cair dentro do curral que estava despescando. O curral, um cercado construído com longas varas cravadas no leito barrento do rio durante o período da estiagem, amarradas umas as outras com cipós as varas formam uma armadilha para os peixes, que depois de entrarem, não conseguem mais sair. Todos os dias o caboclo rema contra a correnteza, muitas vezes por horas para despescar o curral. Empoleirado sobre as varas, algumas já estando velhas e apodrecidas, o caboclo utilizando o arpão ou a zagaia flecha os peixes aprisionados no cercado. No dia em que uma das varas quebrou, o Raimundo caiu dentro do curral e o jacaré que estava preso e ferido com o arpão abocanhou o seu pé. Sendo naquele tempo jovem e forte o caboclo Raimundo não soltou as mãos do cercado e mantendo-se fora da água, girava o corpo alternado as mãos fortes nas varas do jirau, acompanhando os movimentos giratórios que o jacaré fazia tentando arrancar seu pé. Depois de muito tempo lutando contra a morte certa, por algum motivo o jacaré abriu a boca, e o Raimundo já quase sem sangue voltou para a canoa que desceu na bubuia rio a baixo, sem que ele tivesse forças para remar.
    Já estava quase anoitecendo quando foi encontrado por outro pescador conhecido que o levou de volta para casa, onde passou meses sem poder andar.  O velho Raimundo, que nasceu e viveu a vida toda na floresta, pescando de lago em lago desde menino, não soube dizer qual peixe era aquele que eu pesquei um dia quando estava tarrafeando no lago onde o velho morava. Ninguém nem mesmo os mais velhos mateiros conhecem todos os habitantes da grande floresta.    Quando eu descrevi como era o bicho que subindo á um palmo da superfície do rio me olhou nos olhos, ele respondeu apontando com o nariz para o lago e dizendo que tem muito bicho por aí que a gente nunca viu.                                    
               Foi no rio Urariquera que eu vi o que nunca soube o que era, numa pista de pouso perto da ilha de Maracá, onde passei uns quatro ou cinco dias esperando a chegada de um avião para ir até a cidade fazer compras. Na barranca do rio havia uma pequena balsa de garimpo abandonada e bem ao lado do local onde a balsa estava atracada, o declive suave da barranca favorecia o acesso ao rio, por onde todas as tardes nós descíamos para tomar banho . Numa manhã eu estava pescando piranhas na balsa, quando observei bolhas de ar subindo á superfície, imaginei que poderia ser um poraquê, pirarucu, uma sucuri ou algum outro animal aquático que estivesse subindo ou descendo o rio, continuei pescando quando percebi uma sombra emergindo lentamente em direção à superfície, parando a mais ou menos um palmo de profundidade , dois olhos enormes me observaram por alguns segundos antes de mergulhar e desaparecer nas águas do Urariquera.  Havia escamas ou placas como as de um casco de tartaruga, na cabeça grande do animal, que deveria ser talvez do tamanho de uma melancia, a partir daquela manhã, resolvi sempre tomar banho de balde, com os pés bem seguros em cima da balsa abandonada.

   

                                                             SUCURIJU
           
              Quando regressei à aldeia Ianomâmi naquela manhã, estava sendo esperado para ir com os demais a aldeia Maiogom, onde seria realizada uma festa, boa notícia para quem estava com fome e não tinha caçado nada. Aconteciam com freqüência festas nas aldeias indígenas, por não saber falar o idioma ianomâmi, nunca soube ao certo os motivos das festas, a não ser de uma a qual fomos convidados, que aconteceu na aldeia do Roberto e que soube que se repetia todos os anos em memória aos familiares mortos. Eu estava enfermo e debilitado demais para acompanhar os outros ao local do evento e quando os meus companheiros voltaram, relataram que os índios tinham triturado os ossos dos seus parentes mortos. que foram retirados de algum lugar onde estavam depositados há muito tempo na mata, depois que de reduzidos a pó, os ossos foram adicionados aos ingredientes que estavam sendo cozidos em uma grande panela, formando uma espécie de sopa que foi consumida por todos os índios presentes durante a cerimônia alegre, onde a ressurreição prometida por tantos religiosos, era a mais evidente realidade.
            A festança Maiongong. realizou-se num grande barracão com paredes de barro, cujo telhado de palha era sustentado por uma complexa e perfeita estrutura de madeira unidas por cipós que causaria admiração a qualquer engenheiro civilizado.  Sobre duas ou três mesas grandes foram colocados os alimentos em recipientes contendo uma grande variedade de carnes, peixes e beijus de mandioca. Algumas das carnes servidas podiam ser facilmente identificadas, como por exemplo a de paca que apresenta uma fina e tenra camada externa de gordura e a de macacos que geralmente a cabeça é servida junto com as outras partes do corpo, a carne de anta é semelhante à de gado, e quem souber identificar pode escolher o que for de sua preferência e apreciar o sabor original de cada alimento sem nenhum tempero e insosso, pois os índios não utilizam sal nas suas alimentações. Para nós foi colocado sobre a mesa um recipiente contendo sal cristalizado, extraído talvez de algum lambedouro, existente nas cercanias da aldeia. O lambedouro é local onde por décadas  os animais vão suprir a carência deste mineral, lambendo o chão e escavando o barranco da grota que no decorrer do tempo às vezes se transforma numa gruta, onde predadores de duas ou mais pernas costumam armar suas emboscadas na calada da noite.
            O caxiri já estava sendo bebido à vontade muito antes de sermos convidados á mesa, e como é normal em todas as festas da mata ou da cidade, muitos já estavam mareados, bêbados, conversando todos ao mesmo tempo, em meio a gritos e gargalhadas. A algazarra era tão grande que acredito que assim como eu, eles também já não estavam entendendo nenhuma palavra do que diziam. Um índio Maiogom apontando para mim, perguntou se eu era o tuxaua do grupo, respondi apontando para o Bernardo que estava próximo, repetindo  a palavra tuxaua,indicando que ele era o chefe. Então quando fomos convidados para comer, fomos posicionados em volta da mesa conforme a nossa posição dentro de cada grupo. O tuxaua Paulo no centro, no seu lado direito o Roberto o filho de outro tuxaua, em seguida o Bernardo eu e o velho Branco. Do lado esquerdo do tuxaua Paulo o chefe dos Maiogons, quem eu soube mais tarde que não era considerado tuxaua, pois os Maiogons tinham sua aldeia localizada dentro do território Ianomâmi e seriam submissos ao tuxaua Ianomâmi Paulo, fato que me causou estranheza, considerando que há inimizade entre os próprios grupos de Ianomâmi, que costumam roubar mulheres de aldeias inimigas, e existem confrontos ocasionais entre aldeias,como o que aconteceu causando a morte de um índio morador da aldeia em que eu estava na época. Ele teria sido flechado na mata por ianomâmi roximi, mau, como me falou um dos índios da aldeia. Nesta mesma aldeia onde passei alguns dias, tive oportunidade de presenciar outros acontecimentos, como a tentativa frustrada do sequestro de uma índia que remava sua canoa em frente à aldeia na outra margem do rio, quando um Ianomâmi inimigo que estava à espreita na mata, saltou da barranca sobre a canoa tentado capturar a jovem índia, que se desvencilhando do atacante nadou aos gritos em direção à aldeia. A revolta foi geral quando ouvimos os gritos desesperados da jovem, muita correria desordenada e enquanto uns corriam buscando suas armas, sem saber ao certo o que estava ocorrendo, outros seguiam em direção ao rio, alguns dos índios nossos conhecidos nos procuraram pedindo ajuda, falando em seu idioma coisas que nós não podíamos compreender e que somente mais tarde depois do acontecido, foi que ficamos sabendo do que se tratava e que era normal acontecer de mulheres serem capturadas por guerreiros de tribos inimigas. Este costume primitivo, por mais cruel que possa parecer, é na realidade uma forma pela qual a natureza fortalece a espécie, as mulheres capturadas por guerreiros desconhecidos, vindos de regiões distantes, deverão gerar filhos mais saldáveis, a natureza é sábia e sempre alcança seus objetivos, filhos saudáveis, pais felizes.
            Nesta mesma aldeia, numa noite em que eu o velho Branco e o Bernardo dormíamos na choupana de um índio conhecido, outro acontecimento quebrou a rotina. A casa em que estávamos tinha dois cômodos, no primeiro dormiam o casal de índios, nós os três hospedes dormíamos em nossas redes no segundo cômodo, uma abertura sem porta separava os dois compartimentos e foi por esta abertura que uma mulher gritando alucinada entrou correndo inesperadamente, agarrando-se a minha rede como se estivesse pedindo socorro. Eu estava doente naqueles dias, meu estômago estava paralisado por conseqüência da ultima alimentação. Havíamos passado muitos dias sem alimentos na mata e no caminho de volta encontramos alguns índios conhecidos que tinham acabado de caçar uma anta, ganhamos um grande pedaço de carne que eu cozinhei apenas com água e sal. Estava morrendo de fome e antes da carne estar cozida comi um grande pedaço, quase sem mastigar, na manhã seguinte o meu estômago já tinha dobrado de tamanho e ficou assim inchado por muitos dias, o mal estar me tirava o sono e durante as noites enquanto os outros dormiam, eu observava as inúmeras baratas que saíam das fendas existentes nas paredes de barro da casa do índio, em busca de alimentos e se fartavam comendo a massa de mandioca ralada que na manhã seguinte seria o nosso desjejum depois de preparado o ichêm. Foi numa destas noites que uma índia entrou na casa gritando desesperada, agarrando-se a minha rede, falando sem parar palavras que eu não podia entender e antes que tivéssemos tempo de sair das redes, um índio que a perseguia entrou correndo e pegando a pobre mulher pelos cabelos puxou-a com tamanha violência que ela depois de bater com a cabeça no portal foi cair no chão já fora do barraco.  Antes que pudéssemos interferir, pois o índio continuava batendo na mulher caida, surgiram de repente meia dúzia ou mais de velhas índias armadas com grandes cassetetes e numa gritaria ensurdecedora puseram-se a bater sem trégua nas costas e na cabeça do agressor, que sem alternativas foi obrigado desistir da agressão e fugir correndo para a mata. Depois de passado algum tempo, pouco a pouco as conversas foram diminuindo e a aldeia adormeceu novamente. Fiquei imaginando o que teria acontecido, acreditando que na manhã seguinte haveria alguma repercussão em relação ao fato ocorrido na noite passada. Quando amanheceu foi como se nada tivesse acontecido, tudo normal, tudo em paz na ensolarada manhã da aldeia Ianomâmi. Passado alguns dias soube que tratava-se de um caso de adultério e fui aos poucos percebendo que quanto mais eu aprendia sobre os índios, mais encontrava semelhanças com os não índios.
            Já na aldeia Maiogom, o que quebrou a rotina, naquele dia de festa durante o almoço, foi o índio que chegou gritando e apontando para o mato e imediatamente terminou a festa. Os índios numa correria louca buscaram suas armas e se embrenharam na mata, sem que nós soubéssemos o que estava acontecendo. Eu segui os índios até o rio, onde alguns ainda estavam aguardando o retorno da canoa para atravessar e junto com eles se encontrava o Roberto, que me falou que uma vara muito grande de porcos queixada estava passando perto da aldeia.  Pensei em ir junto com eles na caçada, mas quando a canoa retornou eu percebi que não era bem vindo, talvez porque sendo um estranho poderia atrapalhar mais do que ajudar. Só retornei a aldeia, onde além de nós os três visitantes, haviam ficado apenas mulheres, crianças e alguns velhos que já não podiam correr atrás dos porcos pela floresta e a festa já dos índios tinha acabado. 
       Eu tinha comprado na cidade um mapa geográfico daquela região do Aurís onde nós estávamos, mas quando o nosso papel de fazer cigarros terminou, de pedacinho em pedacinho acabamos fumando todo o nosso mapa e há dias também tinha acabado também o nosso fumo, foi então que nesta tarde ganhamos dos índios velhos da aldeia Maiogom, folhas de fumo secas e uma película fina parecida com papel, que é retirada da parte interna da casca de uma árvore e voltamos para a aldeia ianomâmi fumando folhas de tabaco enroladas em cascas de árvores e tossindo muito. Na manhã seguinte partimos em direção as cabeceiras do Auris, levando na canoa grande as ferramentas, alguns quilos de feijão velho, que o tuxaua encontrou na casa dos estrangeiros e raízes de macaxeira, trocadas com os Maiogons por uma faca e uma lanterna.
      Era muito bonito o rio de águas claras serpenteando em meio às árvores da floresta, lembrando um imenso espelho que refletia todas as cores, do céu e da terra, por onde a canoa silenciosa passava, deslizando suavemente pela estrada de vidro que atravessa aquele mundo verde, onde o tempo sonolento adormeceu no início, e não se fez meio nem fim. O cigarro feito com folhas de fumo e casca de árvore, causava uma cuspideira doida, assim como o fumo mascado pelos Ianomâmi, que é uma espécie de chiclete que passa de boca em boca. Um índio masca o fumo por algum tempo, coloca em algum lugar visível, onde outro quando encontrar sairá mascando e cuspindo. O velho Branco entre nós era o único que não fumava, remando calado o amazonense olhava o rio passando, mergulhado talvez em suas lembranças, o velho carpinteiro parecia às vezes nem estar escutando o que os outros falavam, só levantava a cabeça quando estávamos nos aproximando de alguma aldeia localizada rio acima e os índios batiam com o remo no casco da canoa, o som se propagando pelo rio avisava os moradores que estávamos nos aproximando. Então enquanto passávamos pela aldeia todos corriam até a barranca do rio, mulheres homens e crianças, que talvez nunca antes tivessem visto um homem branco.  O velho carpinteiro era deveras branco de mais para um amazonense, embora seus cabelos lisos e seus traços caboclos não escondessem suas origens, tendo um pé no velho mundo e outro na aldeia. Vivia o velho de garimpo em garimpo com suas ferramentas, serrando taboas para construir as caixas onde o cascalho é lavado durante o processo de extração do minério. Geralmente um garimpo surge a partir do momento em que o pesquisador encontra ouro em quantidade suficiente que viabilize o processo de extração, a dificuldade de acesso e a distância destes locais inviabilizam qualquer outro processo de mineração que não seja manual. Utilizando pás e picaretas os garimpeiros escavam o solo até encontrarem o cascalho aurífero, que depois de retirado e depositado ao lado da escavação será lavado numa espécie de peneira, que separa as pedras maiores, chamada de ralo, que é posicionada sobre a parte superior da caixa de madeira, esta é forrada com carpetes ou sacos de estopas e inclinada num ângulo que permita que apenas os minerais mais pesados fiquem retidos, enquanto os minerais mais leves passam através da caixa levados pela água que é despejada com cuidado, de balde em balde, pois todo o trabalho de semanas pode se perder nesta última etapa que exige perícia, paciência e um bom carpinteiro especialista em construir caixas de lavar cascalhos, utilizando apenas as ferramentas disponíveis para transformar uma árvore em taboas.  Esta era a especialidade do velho Branco, que por ironia do destino morava numa casa de papelão construída sobre uma vala de esgoto num bairro pobre da cidade de Boa Vista. Morei com o velho por duas semanas na sua casa de papel, eram tempos difíceis aqueles e tínhamos que contar as moedas para comprar pão e ovos, que durante aquelas duas semanas eram só o que nosso dinheiro podia pagar. Numa das noites que passamos juntos no casebre de papelão, o velho que era de pouca conversa resolveu falar de seu passado, contou-me que antes de se tornar garimpeiro era proprietário de um sítio não muito distante de Manaus, na margem do rio Amazonas. Lá ele plantava e colhia tudo que necessitava e o que sobrava ele levava na canoa para vender na cidade, também pescava e armazenava os peixes capturados em uma gaiola de arames dentro do rio, onde permaneciam vivos até chegar o dia de serem levados para vender a cidade. Com o dinheiro apurado com a venda dos peixes das frutas e da farinha de mandioca, o velho Branco voltava para casa trazendo na canoa, café, açúcar, farinha de trigo, de milho, sal, sabão, roupas, etc. Enfim, voltava trazendo tudo que necessitava para passar mais uma temporada no seu sítio. Naquela época o Brasil passava por mudanças políticas e uma inflação descontrolada aumentava os juros das cadernetas de poupança e muitos pequenos agricultores vendiam suas terras e mudavam-se para as grandes cidades, iludidos pelos falsos rendimentos mensais e foi o que o velho Branco fez. Por insistência de sua ex mulher e da filha, contrariado, o velho comprou uma casa na cidade depois de vender o sítio, e em pouco tempo a inflação galopante devorou o dinheiro que tinha sido depositado no banco, a cidade grande e feroz também devorou a ingenuidade de sua mulher e da filha. Sem ter mais família, sítio e dignidade, o velho foi para o garimpo na esperança de um dia encontrar ouro, na ilusão de poder comprar de volta algum um dia, o que ainda nem sabia que já não existia mais. 
     O velho que remava de cabaça baixa, talvez percebendo que eu o estava observando, parou de remar e colocando o remo sobre os joelhos, olhou para mim e perguntou se eu sabia como o caboclo gostaria que o rio fosse, como eu não sabia, ele respondeu apontando com o remo para o meio do rio dizendo. - Que metade do rio corresse para baixo, a outra metade para cima, e no meio corresse cachaça.
                  Depois de um longo estirão o rio fazia uma curva para a esquerda e na margem direita no início da curva, os índios da aldeia que ali existia, tinham corrido  até a margem do rio para nos ver passar.  Até já tínhamos passado uns cinquenta metros da aldeia, quando um de nossos companheiros índios, depois de responder os gritos dos outros que chegavam na barranca do rio, deram meia volta na canoa e voltamos sem saber por que fomos chamados. Quando encostamos a canoa no pequeno porto da aldeia, percebemos que os índios estavam agitados, falando todos ao mesmo tempo e apontando para a aldeia, notamos que alguma coisa anormal deveria estar acontecendo por lá, e foi o Taiquiú que depois de se certificar com o tuxaua, nos fez entender o que estava acontecendo, pronunciando a palavra demônio em português e falando em ianomâmi a palavra matar, que se não me engano em ianomâmi é cebalí, ao mesmo tempo apontava para nossa espingarda, para nos fazer entender que os índios da aldeia queriam que nós matássemos algum demônio.
        


                                                       CAPELOBO
                                                      

          Na floresta, pode-se encontrar, andando por territórios indígenas, alguns sinais que são deixados propositalmente ou não em algum local visível, indicando que existe alguma aldeia nas proximidades. Flechas ou lanças cravadas em algum cupim localizado em alguma árvore, lenhas de velhas fogueiras empilhadas ao largo da picada e marcas de ferramentas cortantes nos troncos de árvores, arbustos quebrados na altura das mãos de uma pessoa, pequenas clareiras abertas na mata para o cultivo de algum alimento, e outros sinais da presença humana, que alertam o mateiro manso, que por experiência, sabe que é preciso ficar alerta e redobrar os cuidados, pois a presença de estranhos nas redondezas nem sempre é bem vinda. Além disso o perigo de que num encontro inesperado, quando a surpresa possa causar uma reação defensiva, violenta, até curiosidade excessiva, medo e estranheza pode ser fatal. Até mesmo a presença de índios inimigos no território da aldeia próxima, como aconteceu num dia em que eu e Taiquiú estávamos caçando e nós dois tínhamos andado por horas pela mata sem encontrar nenhuma caça, estávamos longe da aldeia e a mata estava muito silenciosa naquele dia, eu seguia o caçador ianomâmi em silêncio quando ele parando de repente, se pós a escutar preocupado a floresta silenciosa. Depois de algum tempo o Taiquiú virou-se para mim perguntando se o que ele estava ouvindo eram vozes de ianomâmi roxime, ianomâmi mau, inimigos. Eu não tinha escutado nada, pois os ouvidos sensíveis de Taiquiú escutavam muito longe, então ele depois de ter escutado melhor, virou-se novamente para mim e falou já tranquilizado por ter identificado as vozes longínquas.- Garimpeiros!
                                                       

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