TERRITÓRIO IANOMAMI
Acreditando que ninguém possa partir e nem
regressar sem levar ou trazer penas nas asas da siricora, respondi a muitos
anos, quando um amigo, no leito de morte, me perguntou olhando nos olhos se eu
acreditava na existência Deus, que sim. Achei melhor dizer que sim, porque se
eu dissesse que tanto faz, não iria ajudar em nada, naquela hora, em que ele
teria que enfrentar a onça inevitavelmente, com ou sem Deus, levando junto as
penas da siricora, que nunca seriam esquecidas na beira do caminho que por
acaso houvesse e não faria diferença então existir, ou não, recompensa alguma
para quem deixasse o coração para trás ao partir, assim como ele teria infelizmente que fazer logo.
Assim, como o vento breve desliza
nas asas ligeiras da siricora, se faz quando urgem às horas, quando os sonhos e
as esperanças já não dispunham de tempo, é que se vê com clareza explícita a
plenitude, na magnífica simplicidade do lago, e de olhos arregalados ficamos saltando dentro da água, como fez o sapo que a bruxa falou outro dia, querendo ver
também onde estava o tal lago, cuja beleza incomparável ouviu dois pescadores
comentando, inconscientemente convictos de que não há nada do lado de fora de
nossas próprias recordações, de nosso próprio, único e finito lago.
Na cantina, pedi papel e lápis para
escrever os confusos números dos telefones de conhecidos da cidade, que naquelas
condições mal recordava e me deitei novamente na rede, preocupado com a demora
do Chaguinha, o piloto da voadeira que ainda não voltara dos garimpos da mata,
onde fora fazer algumas cobranças, antes de voltar para a cidade.
Quando escureceu e começaram a
chegar os primeiros fregueses, o cantineiro ligou o rádio á todo volume. Logo a
cantina estava novamente lotada e alguns garimpeiros jogavam baralho, á peso de
ouro, em meio a gritaria de homens e mulheres que tentavam se fazer ouvir,
enquanto bebiam escutando a música num volume exagerado. Mantendo os olhos
fechados, fingia não escutar os comentários que fazia cada garimpeiro que
entrava, vindo diretamente me olhar na rede antes de começar a beber.
Era terrivelmente angustiante aquela espera, em meio ao barulho
ensurdecedor da cantina, a falta de ar, a insônia e as dores insuportáveis,
mantendo incontroláveis meus pensamentos desordenados que não me davam trégua,
não me permitindo adormecer e nem tão pouco acordar em meio aquele horrível pesadelo.
Por fim, o dia amanheceu sem que eu percebesse e quando à noite chegou
novamente, alguém sacudindo a minha rede falou que o Chaguinha acabara de
voltar da mata e que partiríamos ao amanhecer. Foi essa a última lembrança
lúcida da corrutela do garimpo Santa Rosa.
Na madrugada seguinte antes de partirmos, quando fui carregado pelos
passageiros até a voadeira e deitado no assoalho sobre um pedaço de lona, eu já
estava quase em coma, despertando apenas quando sentia dores insuportáveis nas
costas, causadas por algum movimento brusco da canoa descendo as correntezas,
ou quando a água do rio, em alguma corredeira, respingava sobre o meu corpo
febril. Às vezes fazia silêncio e eu abrindo os olhos me via só na canoa, pois o Chaguinha parava em alguns pontos do rio e entrava na mata, seguindo pelas trilhas que levavam até aos garimpos, onde buscava outros passageiros que iriam com ele para a cidade ou para fazer a cobrança de algum ouro devido. Enquanto isso os
outros passageiros esperavam pelo Chaguinha na sombra da mata da beira do rio, enquanto eu
deitado no fundo da canoa sem poder levantar, já não podia suportar a dor e a
terrível falta de ar causada pela anemia profunda, que não oxigenava
suficientemente o meu sangue..
É difícil aceitar o que não se pode
mudar, demorei muito para acreditar que aquela malária tinha vindo mesmo para
ficar e quando contrariado, tive que aceitar a cruel realidade, primeiro senti
raiva, por ter que desistir radicalmente de todos os meus planos, depois piorando
mais e mais a cada dia, tive que começar a pensar na morte, como uma possibilidade
imediata. Então a raiva foi aos poucos cedendo lugar a uma tristeza
melancólica, cuja saudade dos amigos e familiares doía no início, muito mais que
a própria dor. Por fim quando a dor se tornou insuportável a ponto de sufocar
os últimos vestigios de esperanças, a desconhecida e sinistra morte, passou a ser a
última e única alternativa possível contra aquele insuportável sofrimento, o
último refúgio.
Na última vez em que abri os olhos
durante aquela viagem, a voadeira estava parada num remanso do rio. Eu estava
só, pois os passageiros tinham descido para esticarem as pernas, caminhando
pela mata. Tinham deixado uma espingarda encostada no banco da voadeira, quase
ao alcance da minha mão. Então de repente pensei em terminar ali aquele
sofrimento e até hoje ainda não sei se o teria feito, pois naquele momento uma
mulher desconhecida, da qual nunca vi o rosto, subiu na canoa, sentou ao meu
lado colocando minha cabeça no seu colo e me serviu delicadamente algumas
colheradas de mingau de farinha de trigo. Ainda lembro de sua voz dizendo
carinhosamente, que já estávamos quase chegando na boca da mata.
Na hora certa, até mesmo a morte se
faz necessária, como nessa historinha de onça que o sulista conversador me
contou, naquela noite em que passou com seu companheiro, na minha caverna na
barranca do rio Maú. Depois de comerem todo o trairão que fora assado por mim,
na noite anterior, nos sentamos na areia, ao lado da fogueira de frente para o
rio, vendo as águas recém caídas da cachoeira, passando com pressa pelo clarão
do fogo refletido no rio. Os dois de barrigas cheias, depois de dias de fome,
estavam eufóricos por terem saído são e salvos de um problemático garimpo de
diamante, em que estavam trabalhando. O homem moreno de bigode negro era um bom
contador de historias e uma das muitas que ele contou naquela noite, me fez rir
muito também. Iniciava com um fazendeiro com um revolver na cintura, sentado na varanda de sua casa grande, de frente para a estrada, por onde
passava naquele momento um andante desconhecido e o fazendeiro sem ter com quem
conversar, resolveu chamar o homem, oferecendo-lhe sombra e água fresca. O
desconhecido que aceitou prontamente o convite, olhou para dentro da casa antes
de sentar-se, e vendo pendurados nas paredes vários couros de animais caçados
pelo fazendeiro, imediatamente se pós a contar, sem parar, histórias de caçadas
impossíveis, fazendo com que o fazendeiro se arrependesse mil vezes de ter convidado
o mentiroso a entrar.
Quando o feijão com jabá começou a
cheirar na cozinha, o dono da casa que escutava calado as mentiras do
desconhecido, imaginava como faria para se livrar do intruso mentiroso antes do
almoço ser servido, sem ter que ser muito descortês. Quando falhou a espingarda do andante, que se
deparara na encosta de uma montanha, com uma onça pintada enorme, tendo que
fugir correndo para dentro de uma caverna, sendo perseguido de perto pela onça
e encontrando ao chegar no fundo da caverna escura, mais meia dúzia de olhos
vermelhos de outras onças que lá se encontravam, o fazendeiro perdendo a
paciência aproveitou a oportunidade, sacando então seu revolver e encostando o cano
na cabeça do caçador de onças, perguntou enraivecido. - Não vai me dizer que tu
escapou dessa, seu filho da puta? O mentiroso pego de surpresa pela reação
inesperada do fazendeiro e sem encontrar nenhuma outra alternativa melhor no
momento, respondeu. - Não seu, eu não escapei não, naquela vez eu morri e... As
onças me comeram !
Todo mateiro amazonense sabe o
que é um terreiro de curupira, mesmo que não saiba quem ou o que deixa aquele
pedaço de chão em meio à selva, com o diâmetro de dezenas de metros
completamente limpo, varrido sem nenhuma folha caída, seca ou verde. Dizem que
é o curupira que mantêm o seu terreiro caprichosamente limpo e varrido, e por
incrível que pareça a mata parece ser mais sombria nas cercanias destes
terreiros, mais silenciosa e misteriosa. Talvez seja apenas superstição, mas
quem andando só, no centro da mata, encontra um terreiro destes fica admirado,
olhando aquele círculo completamente varrido, e mesmo sem querer redobra os
cuidados aguçando os sentidos, escutando atento a mata sombria e silenciosa,
esperando instintivamente a qualquer momento o ataque surpresa do curupira
dono, do terreiro.
Naquele dia nublado, quando
ouvimos o grito gutural aterrador vindo da picada recém aberta, nos jogamos
imediatamente no chão, pensamos que fosse um ataque surpresa de índios hostis,
pois o som grotesco que ouvimos parecia ser quase humano, sem ter para onde
correr nos preparamos para enfrentar o pior, ali mesmo onde estávamos, com as
únicas armas que tínhamos e a quantidade de coragem que dispúnhamos. Havia
muitas onças naquela região da floresta, localizada nas encostas de um enorme
platô existente na fronteira com a Venezuela, que do avião dava para ver, estendendo-se
a perder de vista, como uma enorme mesa verde e plana, sendo aquele imenso
platô mais alto que as montanhas localizadas do lado brasileiro.
Não sabíamos que naquele mês as
onças entravam no cio e assim, como todos os gatos, emitem sons grotescos
durante o acasalamento, por isso quando tornamos a ouvir novamente o grito
desconhecido, já um pouco mais distante de onde estávamos e mais parecido com o
esturro de uma onça pintada, o Louro convidou-me para investigarmos e saber se
era ou não uma onça. O Louro levava uma espingarda velha, calibre vinte, que
quando disparada não sacava o cartucho e eu tinha apenas quatro balas no
revólver. Meio à contra gosto com o facão numa das mãos e o revolver na outra,
segui o Louro mata à dentro, enquanto o Bernardo e o Goiano que estavam
desarmados ficaram nos esperando na picada. Tínhamos andado uns cem metros pela
mata, quando nos deparamos com um grande terreiro de curupira, o círculo
varrido no meio da mata alta, tinha no centro uma árvore caída que somente a
parte mais grossa do tronco ainda não tinha apodrecido. Quando entramos no
terreiro, o Louro que seguia na frente esturrou imitando uma onça e
imediatamente do outro lado, no início de um declive, descendo em direção á uma
grota, uma onça pintada respondeu ao chamado, esturrando também.
Pronto, não era o mapinguari, nem
índios brabos, já sabíamos de quem eram aqueles gritos desconhecidos, mas mesmo
assim resolvemos atravessar o terreiro do curupira para tentar ver a onça. O
Louro apressou o passo se distanciando uns dez metros de mim e quando comecei a
segui-lo tive a leve impressão de que alguma coisa muito rápida tinha se
movimentado mais na frente, perto do tronco caído, podia ser uma semente ou
galho seco caindo das árvores, um pequeno pássaro em fuga, ou uma alguma brisa batendo
na vegetação rasteira. Não dei
importância, me distraindo também, quando o Louro estava quase chegando de
fronte ao troco apodrecido, com uma mutuca grande que pousou na minha perna.
Parei abaixando a cabeça para tentar matá-la com o facão e foi neste exato
momento que ouvi o grito desesperado do Louro e o estampido da espingarda. Instintivamente
levei os braços na direção do disparo, apontado o facão e o revólver para a
sombra rápida e silenciosa que voava como uma flecha em minha direção disparando
ao acaso três tiros simultaneamente, sem ter tido tempo de sair do lugar e nem
mesmo ver o que estava nos atacando.
Ninguém pode prever ao certo, qual
será a reação do homem quando é pego de surpresa pelo inesperado. Nestas horas,
onde não há espaço, nem tempo para nada, que não seja o que realmente é, pode
surpreendentemente sobrar valentia para um covarde e faltar coragem para um
valente, que reage, ou não, inconscientemente e independentemente da sua própria
vontade.
O velho Raimundo, o amazonense que teve o pé mastigado pelo jacaré no
curral, me contou que quando criança seu pai e seus vizinhos criavam muitos
porcos, numa determinada época do ano levavam a porcada de canoa para as ilhas,
quando os buritizais estavam com frutas. Lá em meio à fartura de buritis
maduros, os porcos engordavam rapidamente, isso se a onça pintada que é exímia
nadadora não os comessem antes, por isso, quando começaram a sumir os porcos de
uma das ilhas, os vizinhos se reuniram, pegaram as espingardas e foram caçar a
onça.
Na ilha não era muito grande, os
homens se espalharam pela mata, para tentar atirar na onça antes que ela
atravessasse o rio nadando, fugindo para outra ilha. Um dos beiradeiros, justamente o que levara junto na caçada o
filho ainda menino, foi quem se deparou primeiro com a onça acuada e quando
levantou a espingarda para atirar, meteu acidentalmente um dos pés numa toca de
paca ou de tatus, caindo de costas indefeso, foi atacado pela onça, enquanto
seu filho pequeno, que trazia na mão um facão, tentava defendê-lo golpeando as
costas da onça pintada. Quando a onça se voltava contra o menino ele recuava,
quando a onça voltava a atacar seu pai, ele voltava para defendê-lo. Os outros caboclos
ouvindo o rugido da onça e os gritos do menino e do pai, correram para ajudar e o primeiro a
chegar ao local, foi o irmão do beiradeiro que estava sendo atacado. O mais
surpreendente foi, que quando os outros homens também chegaram correndo ao local
do ataque, encontraram apenas o menino enfrentando a onça e mesmo gravemente
ferido ainda lutava defendendo o pai, enquanto seu tio com a espingarda na mão,
perplexo, olhava a cena paralisado, sem ter feito nada para ajudar o irmão e o
sobrinho.
Os beiradeiros depois de matarem a
onça, levaram os dois feridos para casa, o menino sobreviveu, seu pai não
resistiu aos ferimentos e morreu alguns dias depois, sem nunca entender por que
seu irmão não atirou na onça...