segunda-feira, 21 de maio de 2012

História de Onça - Parte XVII


  
     NO CENTRO DA MATA


          Na mesma tarde em que matamos um mutum castanheira. que saiu da mata para beber água no rio Pacacibí, encontramos em meio a uma pequena clareira aberta na beira do rio, alguns pés de macaxeira, que foram plantados pelos antigos donos, garimpeiros que se foram abandonando o velho acampamento. Arrancamos algumas raízes grossas, que mais tarde num outro acampamento rio acima, também abandonado, onde havia até lenha seca rachada e empilhada, debaixo do telhado de ubim que ainda resistia ao tempo, cozinhei primeiro as raízes, antes de colocar o mutum gordo para ferver na panela de ferro.
         Passamos a noite ali e quando seguimos viagem, no outro dia pela manhã, encontrávamos pelo caminho os primeiros sinais da presença de garimpeiros pela mata, estávamos chegando perto da corrutela do garimpo. Naquele dia ao entardecer amarramos nossa voadeira no porto da corrutela do garimpo Santa Rosa, na margem direita do rio, onde estávamos sendo esperados pelos garimpeiros que ouviram o motor se aproximando e pelas mulheres que estavam bebendo na cantina e correram até o porto, querendo saber quem estava chegando ao garimpo.
         A corrutela era formada por uns quatro ou cinco barracos, construídos em meio a clareira, na beira do rio, por onde passava uma antiga picada que levava aos garimpos situados mais para o centro da mata. Da corrutela, saíam uma ou duas vezes por semana as voadeiras levando passageiros, alguns vindos dos garimpos na mata para fazer compras na cantina, outros  voltando para a cidade. Na corrutela os garimpeiros esperavam dias pela chegada do transporte, jogando baralho, bebendo e fumando de tudo, com as mulheres que andavam por lá, e escutando a todo volume no toca-fita  um repertório brega, de enlouquecer qualquer um. O Oliveira e o Pedro maranhão conheciam todos naquele garimpo onde passamos a noite e pela manhã quando seguimos viagem rio acima, entrando sem permissão no território ianomâmi recém demarcado, o Oliveira que passara a noite sem dormir bebendo todas na cantina, estava com cara de quem passou a noite no sol, como costumavam dizerem  os caboclos, de quem estava com cara de ressaca.
      A policia federal tinha retirado há algum tempo os garimpeiros que trabalhavam na região do Pacacibi e rio a cima encontrávamos, de ponto em ponto nas barrancas, o local do início das picadas abertas na mata, que levavam até os antigos acampamentos de garimpeiros, agora abandonados. A mata ianomâmi voltara a ficar silenciosa, sem o ruído dos motores trazidos pelos garimpeiros e aqueles que ainda se aventuravam por lá, em busca de algum ouro deixado para trás, como fazíamos nós quatro, andavam como ratos pela mata, cautelosos e silenciosos, para não serem descobertos pelos índios que viviam em  uma aldeia, além da montanha do Pedro Maranhão.
      O motor da nossa canoa embora fosse pequeno, fazia barulho de mais e viajamos preocupados durante todo o dia, pois não queríamos encontrar índios pelo caminho, temendo que nossa presença no território fosse denunciada. Quando acampamos ao anoitecer um grupo de índios jovens, que desciam o rio em canos a remo acamparam bem na nossa frente, na outra margem do rio. Por sorte um dos jovens índios conhecia o Pedro e assim que anoiteceu ele nos trouxe alguns peixes que tinham flechado durante a viagem. Passei boa parte da noite observando o grupo ianomâmi, eles acenderam fogueiras sobre as pedras da margem do rio onde assavam seus peixes, fincaram entre as pedras alguns paus para armarem suas redes e passaram quase a noite toda, pescando, comendo peixes assados, conversando e sorrindo. Ao contrário de nós os quatro garimpeiros preocupados com o ouro da montanha, eles pareciam não ter nenhuma preocupação e porque deveriam ter? Se no rio que corre sem parar pela floresta sem fim deles, tinha tudo que necessitavam. O ouro da montanha que nós procurávamos, não compra nada no paraíso ianomâmi,  não vale nada  onde não existem cercas nem muros, nem relógios, nem cofres e nem pobres.
       Há muitos anos estava em um ônibus em Rondônia, ao meu lado viajava um religioso que falando com sotaque estrangeiro perguntou sobre meu trabalho. Depois que falei que era garimpeiro o assunto girou em torno de ouro, ele não era a favor dos garimpos na Amazônia, e seguiu falando durante toda a viagem, enquanto eu escutava sem discordar e nem concordar com nada, depois dele ter me respondido por que as igrejas são douradas. - Na casa do senhor, falou ele, tudo deve estar sempre bem arrumadinho, limpo e brilhoso.
          No dia seguinte por volta de meia tarde, chegamos ao destino. Escolhemos um local onde a mata fechada cobria as barrancas do rio, por onde entramos com a canoa por baixo das ingaranas para não deixar vestígio de nossa presença. Arrastamos a canoa para a mata e escondemos num local apropriado cobrindo com folhas e galhos secos, depois de fazer o mesmo com o motor e o combustível restante, seguimos mata a dentro, levando as ferramentas e o rancho para a montanha do Pedro Maranhão. No sopé da montanha, distante mais ou menos umas duas horas de caminhada da beira do rio, tinha um barraco ainda em bom estado, que fora construído tempos atrás pelos garimpeiros do Pedro Maranhão. Do outro lado da grota de águas amareladas que descia da serra, ficava o barranco, um buraco escavado no pé da montanha pelos outros garimpeiros, tendo uns quatro metros de profundidade na parte mais alta e uns oito metros de largura, de onde o Pedro dizia que tiraram mais de quinhentas gramas de ouro.
       Naquele fim de tarde limpamos o velho acampamento e acomodamos os alimentos num jirau. A mata alta da encosta da montanha estava ressequida pelo forte verão e a grota de águas amareladas que descia da serra era a única que tínhamos para beber, cozinhar e banhar. Estávamos com pressa de iniciar o trabalho e sem nos preocuparmos em cavar uma cacimba usamos aquela água imprópria por uns dois ou três dias, que foi mais ou menos o tempo que eu e o Oliveira levamos para terminar de beber as ultimas garrafas de cachaça que sobrara da viagem. Depois quando sóbrios, escavamos então uma cacimba. que cobrimos com folhas verdes para evitar que mosquitos depositassem seus ovos. Na montanha, a nossa escavação, o barranco como chamávamos, já estava com um metro de profundidade. Tínhamos começado a trabalho na primeira manhã, após a nossa chegada, primeiro escolhemos e demarcamos o local, depois cortamos e retiramos as árvores, limpamos as folhas secas e os cipós e começamos a cavar arrancando as raízes e retirando a capa do lacrau, que é primeira camada de terra fofa, formada por folhas e galhos em decomposição, onde vivem os escorpiões, que durante o dia nós esmagávamos as dezenas com os pés, enquanto trabalhávamos. Depois veio a terra vermelha e seca que se tornava mais dura a cada dia e tinha que ser removida a picaretas e jogada para fora do barranco com as pás. Dentro da escavação o calor era quase insuportável e nossos corpos suados atraiam as abelhas que se multiplicavam a cada novo dia. Eram muitas espécies de abelhas que vinham da mata em busca de sal no nosso suor, pois até colocamos pratos com açúcar e sal em volta do acampamento, tentando atraí-las sem sucesso, enquanto elas se multiplicavam a tal ponto que para evitá-las passamos a trabalhar a noite, à luz de velas, o que também não deu certo, pois durante o dia elas pousavam as centenas lambendo nossos corpos na rede e não podíamos descansar.
     Voltamos então a trabalhar de dia, sem usar camisas, procurando suar menos e sempre evitando esmagar as abelhas, que parecendo loucas de fome pousavam freneticamente, sem se incomodarem com os nossos movimentos, enquanto escavávamos o sopé da montanha. Quando um de nós saía de perto do trabalho, por algum motivo, as abelhas do ausente  somavam-se com as dos que tinham ficado trabalhando, e eram tantas, que muitas vezes, quando um de nós saia para preparar as refeições, logo os outros desistiam do trabalho saindo andando pela mata, enquanto os cabos suados das ferramentas ficavam pretos de abelhas, inclusive o local onde urinávamos ou nos sentávamos suados. Quando a noite chegava, depois do banho na grota, contávamos o número de ferradas de abelhas que sofríamos durante o dia, ao esmagá-las contra as costelas com os braços, nos movimentos que fazíamos trabalhando com as ferramentas, cavando ou jogando terra para fora do barranco, por sorte nenhum de nós era alérgico, pois teve dia de alguém contar sessenta ferradas de abelhas.
        O Pedro era perito em fazer armadilhas e desse modo conseguíamos alguma caça em silêncio, sem precisar usar a espingarda, pois possivelmente o estampido seria escutada pelos índios da aldeia, que poderiam estar por perto caçando na mata, ou subindo ou descendo o rio. Decidimos também fazer fogo e cozinhar somente à noite, trabalhando durante o dia em silêncio, cavando a terra vermelha do pé da montanha, deixando o buraco cada dia mais profundo, de onde já   estava se tornando difícil até de jogar a terra para fora com as pás.
        No dia em que o Oliveira resolveu construir um andaime de madeira, onde, para facilitar o trabalho, jogaríamos a terra cavada e depois tornaríamos a jogar de cima do andaime para fora do barranco, o Pedro Maranhão convidou-me para visitarmos uns garimpeiros conhecidos dele, que estavam trabalhando a umas três horas de caminhada rio abaixo, onde iria pedir emprestada uma caixa de lavar cascalho, da qual iríamos necessitar para lavar o nosso cascalho para separar o ouro, no final do trabalho.
            No caminho, andando pela margem do rio Pacacibi, atravessamos um pequeno igarapé de águas límpidas que descia da serra, formando uma cachoeira ao chegar ao rio e nas águas rasas do pé da cachoeira nadava vagarosamente um enorme surubim, sem perceber o Pedro se aproximando cauteloso com a espingarda já engatilhada. Com o facão partimos o surubim abatido em duas bandas, penduramos uma amarrada com cipós numa árvore e levamos a outra metade para os garimpeiros conhecidos do Pedro que fizeram uma festa, pois estavam quase sem alimentos. Depois de mentir um pouco e escutar em troca algumas histórias de onça, pedimos a caixa emprestada e nos despedindo dos garimpeiros, que prometeram irem nos visitar no próximo domingo. No caminho de volta para o nosso acampamento, o Pedro Maranhão que vinha arrastando a outra banda de surubim pela mata, se queixou de dores no corpo e falou que talvez estivesse com malária, então passamos por um açaizal onde cortamos um feixe de raízes. 
       De volta ao nosso acampamento o Pedro tomou uns comprimidos de quinino, que tínhamos trazido da cidade, enquanto esperava ferver numa panela o chá de raiz de açaí. No outro dia ficou até mais tarde na rede, trabalhou algumas horas depois do meio dia, ainda se sentindo desanimado e fraco, mas amanheceu bem no dia seguinte, quando resolvemos não trabalhar esperando pelos garimpeiros que viriam nos visitar naquele dia de domingo e passamos o dia esperando, mas não apareceu ninguém. Na manhã seguinte, quando já estávamos trabalhando a algumas horas no barranco, os garimpeiros chegaram alegres perguntando para o Oliveira pela cachaça. Para nós já era segunda feira, para eles ainda era domingo, daí passamos mais um dia sem trabalhar conversando com os vizinhos de garimpo, sem ninguém saber mais se era sábado, domingo ou segunda-feira, afinal, que diferença faziam os dias da semana naquele fim de mundo.


AÇAI

Um comentário:

  1. Gostei; me fez relembrar aqueles dias de isolamento no meio das matas, o pirão feito as pressas para voltar à lida, os cantos dos pássaros, imaginei até o coaxar das rãs, o alegre amanhecer e os urros da pintada! Parabéns irmão aventureiro

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