NO CENTRO DA MATA
Na mesma tarde em que matamos um
mutum castanheira. que saiu da mata para beber água no rio Pacacibí, encontramos
em meio a uma pequena clareira aberta na beira do rio, alguns pés de macaxeira,
que foram plantados pelos antigos donos, garimpeiros que se foram abandonando o
velho acampamento. Arrancamos algumas raízes grossas, que mais tarde num outro
acampamento rio acima, também abandonado, onde havia até lenha seca rachada e
empilhada, debaixo do telhado de ubim que ainda resistia ao tempo, cozinhei primeiro as
raízes, antes de colocar o mutum gordo para ferver na panela de ferro.
Passamos a noite ali e quando seguimos viagem, no outro dia pela manhã,
encontrávamos pelo caminho os primeiros sinais da presença de garimpeiros pela
mata, estávamos chegando perto da corrutela do garimpo. Naquele dia ao
entardecer amarramos nossa voadeira no porto da corrutela do garimpo Santa
Rosa, na margem direita do rio, onde estávamos sendo esperados pelos
garimpeiros que ouviram o motor se aproximando e pelas mulheres que estavam bebendo na cantina e correram até o
porto, querendo saber quem estava chegando ao garimpo.
A corrutela era formada por uns
quatro ou cinco barracos, construídos em meio a clareira, na beira do rio, por
onde passava uma antiga picada que levava aos garimpos situados mais para o
centro da mata. Da corrutela, saíam uma ou duas vezes por semana as voadeiras
levando passageiros, alguns vindos dos garimpos na mata para fazer compras na
cantina, outros voltando para a cidade.
Na corrutela os garimpeiros esperavam dias pela chegada do transporte, jogando
baralho, bebendo e fumando de tudo, com as mulheres que andavam por lá, e
escutando a todo volume no toca-fita um repertório brega, de enlouquecer qualquer um. O Oliveira
e o Pedro maranhão conheciam todos naquele garimpo onde passamos a noite e pela
manhã quando seguimos viagem rio acima, entrando sem permissão no território ianomâmi recém demarcado, o Oliveira que passara a noite sem dormir bebendo todas na
cantina, estava com cara de quem passou a noite no sol, como costumavam dizerem os caboclos, de quem estava com cara de ressaca.
A policia federal tinha retirado
há algum tempo os garimpeiros que trabalhavam na região do Pacacibi e rio a cima
encontrávamos, de ponto em ponto nas barrancas, o local do início das picadas
abertas na mata, que levavam até os antigos acampamentos de garimpeiros, agora
abandonados. A mata ianomâmi voltara a ficar silenciosa, sem o ruído dos
motores trazidos pelos garimpeiros e aqueles que ainda se aventuravam por lá, em
busca de algum ouro deixado para trás, como fazíamos nós quatro, andavam como ratos pela
mata, cautelosos e silenciosos, para não serem descobertos pelos índios que viviam em uma aldeia, além da montanha do Pedro Maranhão.
O motor da nossa canoa embora fosse pequeno,
fazia barulho de mais e viajamos preocupados durante todo o dia, pois não
queríamos encontrar índios pelo caminho, temendo que nossa presença no
território fosse denunciada. Quando acampamos ao anoitecer um grupo de índios
jovens, que desciam o rio em canos a remo acamparam bem na nossa frente, na
outra margem do rio. Por sorte um dos jovens índios conhecia o Pedro e assim que
anoiteceu ele nos trouxe alguns peixes que tinham flechado durante a viagem.
Passei boa parte da noite observando o grupo ianomâmi, eles acenderam fogueiras
sobre as pedras da margem do rio onde assavam seus peixes, fincaram entre as pedras alguns paus
para armarem suas redes e passaram quase a noite toda, pescando, comendo peixes
assados, conversando e sorrindo. Ao contrário de nós os quatro garimpeiros
preocupados com o ouro da montanha, eles pareciam não ter nenhuma preocupação e
porque deveriam ter? Se no rio que corre sem parar pela floresta sem fim deles, tinha tudo que necessitavam. O ouro da montanha que nós procurávamos, não compra nada
no paraíso ianomâmi, não vale nada onde não existem cercas nem muros, nem relógios, nem
cofres e nem pobres.
Há muitos anos estava em um ônibus em Rondônia, ao meu lado viajava um religioso que falando com sotaque
estrangeiro perguntou sobre meu trabalho. Depois que falei que era garimpeiro o
assunto girou em torno de ouro, ele não era a favor dos garimpos na
Amazônia, e seguiu falando durante toda a viagem, enquanto eu escutava sem discordar
e nem concordar com nada, depois dele ter me respondido por que as igrejas são
douradas. - Na casa do senhor, falou ele, tudo deve estar sempre bem
arrumadinho, limpo e brilhoso.
No dia seguinte por volta de meia
tarde, chegamos ao destino. Escolhemos um local onde a mata fechada cobria as
barrancas do rio, por onde entramos com a canoa por baixo das ingaranas para
não deixar vestígio de nossa presença. Arrastamos a canoa para a mata e
escondemos num local apropriado cobrindo com folhas e galhos secos, depois de
fazer o mesmo com o motor e o combustível restante, seguimos mata a dentro,
levando as ferramentas e o rancho para a montanha do Pedro Maranhão. No sopé da
montanha, distante mais ou menos umas duas horas de caminhada da beira do rio,
tinha um barraco ainda em bom estado, que fora construído tempos atrás pelos garimpeiros
do Pedro Maranhão. Do outro lado da grota de águas amareladas que descia da
serra, ficava o barranco, um buraco escavado no pé da montanha pelos outros
garimpeiros, tendo uns quatro metros de profundidade na parte mais alta e uns
oito metros de largura, de onde o Pedro dizia que tiraram mais de quinhentas
gramas de ouro.
Naquele fim de tarde limpamos o
velho acampamento e acomodamos os alimentos num jirau. A mata alta da encosta
da montanha estava ressequida pelo forte verão e a grota de águas amareladas
que descia da serra era a única que tínhamos para beber, cozinhar e banhar.
Estávamos com pressa de iniciar o trabalho e sem nos preocuparmos em cavar uma
cacimba usamos aquela água imprópria por uns dois ou três dias, que foi mais ou
menos o tempo que eu e o Oliveira levamos para terminar de beber as ultimas garrafas de cachaça
que sobrara da viagem. Depois quando sóbrios, escavamos então uma cacimba. que cobrimos com
folhas verdes para evitar que mosquitos depositassem seus ovos. Na montanha, a nossa
escavação, o barranco como chamávamos, já estava com um
metro de profundidade. Tínhamos começado a trabalho na primeira manhã, após a
nossa chegada, primeiro escolhemos e demarcamos o local, depois cortamos e
retiramos as árvores, limpamos as folhas secas e os cipós e começamos a cavar
arrancando as raízes e retirando a capa do lacrau, que é primeira camada de
terra fofa, formada por folhas e galhos em decomposição, onde vivem os
escorpiões, que durante o dia nós esmagávamos as dezenas com os pés, enquanto trabalhávamos.
Depois veio a terra vermelha e seca que se tornava mais dura a cada dia e tinha
que ser removida a picaretas e jogada para fora do barranco com as pás. Dentro
da escavação o calor era quase insuportável e nossos corpos suados atraiam as
abelhas que se multiplicavam a cada novo dia. Eram muitas espécies de abelhas
que vinham da mata em busca de sal no nosso suor, pois até colocamos pratos com
açúcar e sal em volta do acampamento, tentando atraí-las sem sucesso, enquanto
elas se multiplicavam a tal ponto que para evitá-las passamos a trabalhar a noite, à luz de
velas, o que também não deu certo, pois durante o dia elas pousavam as centenas
lambendo nossos corpos na rede e não podíamos descansar.
Voltamos então a trabalhar de dia,
sem usar camisas, procurando suar menos e sempre evitando esmagar as abelhas, que
parecendo loucas de fome pousavam freneticamente, sem se incomodarem com os
nossos movimentos, enquanto escavávamos o sopé da montanha. Quando um de nós
saía de perto do trabalho, por algum motivo, as abelhas do ausente somavam-se com as dos que tinham ficado
trabalhando, e eram tantas, que muitas
vezes, quando um de nós saia para preparar as refeições, logo os outros desistiam do trabalho saindo andando pela mata, enquanto os cabos suados das
ferramentas ficavam pretos de abelhas, inclusive o local onde urinávamos ou nos
sentávamos suados. Quando a noite chegava, depois do banho na grota, contávamos o número de ferradas de abelhas que sofríamos durante o dia, ao esmagá-las contra as
costelas com os braços, nos movimentos que fazíamos trabalhando com as
ferramentas, cavando ou jogando terra para fora do barranco, por sorte nenhum
de nós era alérgico, pois teve dia de alguém contar sessenta ferradas de abelhas.
O Pedro era perito em fazer armadilhas e desse modo conseguíamos alguma
caça em silêncio, sem precisar usar a espingarda, pois possivelmente o estampido seria escutada pelos índios da aldeia, que poderiam estar por perto
caçando na mata, ou subindo ou descendo o rio. Decidimos também fazer fogo e
cozinhar somente à noite, trabalhando durante o dia em silêncio, cavando a
terra vermelha do pé da montanha, deixando o buraco cada dia mais profundo, de onde
já estava se tornando difícil até de jogar a
terra para fora com as pás.
No dia em que o Oliveira resolveu
construir um andaime de madeira, onde, para facilitar o trabalho, jogaríamos a
terra cavada e depois tornaríamos a jogar de cima do andaime para fora do
barranco, o Pedro Maranhão convidou-me para visitarmos uns garimpeiros
conhecidos dele, que estavam trabalhando a umas três horas de caminhada rio abaixo,
onde iria pedir emprestada uma caixa de lavar cascalho, da qual iríamos
necessitar para lavar o nosso cascalho para separar o ouro, no final do
trabalho.
No caminho, andando pela margem do
rio Pacacibi, atravessamos um pequeno igarapé de águas límpidas que descia da
serra, formando uma cachoeira ao chegar ao rio e nas águas rasas do pé da cachoeira nadava
vagarosamente um enorme surubim, sem perceber o Pedro se
aproximando cauteloso com a espingarda já engatilhada. Com o facão partimos o
surubim abatido em duas bandas, penduramos uma amarrada com cipós numa árvore e
levamos a outra metade para os garimpeiros conhecidos do Pedro que fizeram uma
festa, pois estavam quase sem alimentos. Depois de mentir um pouco e escutar em
troca algumas histórias de onça, pedimos a caixa emprestada e nos despedindo
dos garimpeiros, que prometeram irem nos visitar no próximo domingo. No caminho
de volta para o nosso acampamento, o Pedro Maranhão que vinha arrastando a
outra banda de surubim pela mata, se queixou de dores no corpo e falou que
talvez estivesse com malária, então passamos por um açaizal onde cortamos um
feixe de raízes.
De volta ao nosso acampamento o Pedro tomou uns comprimidos de quinino, que tínhamos trazido da cidade, enquanto esperava ferver numa panela o chá de raiz de açaí. No outro dia ficou até mais tarde na rede, trabalhou algumas horas depois do meio dia, ainda se sentindo desanimado e fraco, mas amanheceu bem no dia seguinte, quando resolvemos não trabalhar esperando pelos garimpeiros que viriam nos visitar naquele dia de domingo e passamos o dia esperando, mas não apareceu ninguém. Na manhã seguinte, quando já estávamos trabalhando a algumas horas no barranco, os garimpeiros chegaram alegres perguntando para o Oliveira pela cachaça. Para nós já era segunda feira, para eles ainda era domingo, daí passamos mais um dia sem trabalhar conversando com os vizinhos de garimpo, sem ninguém saber mais se era sábado, domingo ou segunda-feira, afinal, que diferença faziam os dias da semana naquele fim de mundo.
De volta ao nosso acampamento o Pedro tomou uns comprimidos de quinino, que tínhamos trazido da cidade, enquanto esperava ferver numa panela o chá de raiz de açaí. No outro dia ficou até mais tarde na rede, trabalhou algumas horas depois do meio dia, ainda se sentindo desanimado e fraco, mas amanheceu bem no dia seguinte, quando resolvemos não trabalhar esperando pelos garimpeiros que viriam nos visitar naquele dia de domingo e passamos o dia esperando, mas não apareceu ninguém. Na manhã seguinte, quando já estávamos trabalhando a algumas horas no barranco, os garimpeiros chegaram alegres perguntando para o Oliveira pela cachaça. Para nós já era segunda feira, para eles ainda era domingo, daí passamos mais um dia sem trabalhar conversando com os vizinhos de garimpo, sem ninguém saber mais se era sábado, domingo ou segunda-feira, afinal, que diferença faziam os dias da semana naquele fim de mundo.
AÇAI
Gostei; me fez relembrar aqueles dias de isolamento no meio das matas, o pirão feito as pressas para voltar à lida, os cantos dos pássaros, imaginei até o coaxar das rãs, o alegre amanhecer e os urros da pintada! Parabéns irmão aventureiro
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