sábado, 24 de março de 2012

História de Onça - Parte IX



                                         CUIA
                                                                                                                      

             Depois de horas de exaustiva caminhada bebendo água dos cipós que cresciam na mata seca da encosta da montanha, eu o Bernardo, o velho Branco e os dois indiozinhos chegamos ao topo. Uma grande árvore caída no ultimo vendaval, abrira uma brecha na mata na beira do penhasco por onde se podia ver até onde os olhos alcançassem. Correndo lá em baixo, um rio desconhecido ziguezagueava, perdendo-se na floresta em meio à planície verde, que se estendia até uma cadeia de montanhas que sumiam no horizonte distante, onde nuvens negras de chuvas passageiras espremiam-se entre o verde escuro da floresta e o límpido azul celeste. No silêncio singular daquele mundo esquecido, nós do topo da montanha olhávamos calados o que talvez nenhum outros olhos humanos jamais tenham visto. Talvez existisse alguma aldeia indígena em alguma curva daquele rio esquecido que passava la em baixo, talvez não, quem sabe tenha sido assim desde o início, desde o surgimento das primeiras árvores, onde o silêncio como se estivesse cansado de tanto se fazer calara-se para sempre, por saber que tudo ali está longe de mais, em todas as direções, até muito além de onde se pode ver. E quando até mesmo a maior das montanhas, parece ser apenas um montinho de areia azulado perdido no horizonte distante, é que o homem percebe então o seu real tamanho, perguntando a si mesmo se vale a pena seguir até a próxima serra, atrás de sonhos tão pequeninos. 
         Já era mais de meia tarde quando tornamos a subir a montanha para voltar ao acampamento, uma grande nuvem negra de chuva que se aproximava cobria o céu,  o sol parcialmente encoberto iluminava com seus raios avermelhados apenas as montanhas longínquas no horizonte, muito alem da planície, formando um gigantesco lençol dourado entre o verde da floresta e o azul do céu, mostrando para quem pudesse  ver, onde está o verdadeiro e deslumbrante tesouro verde ianomâmi.
             Ao lado do nosso acampamento uma árvore gigantesca se destacava das demais, parecendo com uma imensa torre circular que aparentemente com a mesma circunferência que saia do solo, sumia entre as ramagens das outras árvores, sem que se pudesse ver seus galhos, onde quase todas as noites um grande pássaro que talvez fosse uma harpia, pousava fazendo muito barulho. Nenhum de nós jamais tinha visto uma árvore daquele tamanho, nem o Bernardo que vivia há décadas percorrendo a Amazônia de norte a sul e tão pouco o velho Branco nascido na beira do rio Amazonas. Algumas árvores na Amazônia impressionam tanto pela aparência como pelas dimensões, algumas são tão frondosas, tão majestosas, que nenhum homem de boa vontade sequer pensaria na possibilidade de cortá-las, derrubá-las, matá-las apenas para obter algum lucro imediato. Embora existam aos milhares, são as árvores talvez a forma de vida mais nobre que se conheça, gigantes silenciosos estendendo generosamente seus galhos ao sol, onde os pássaros constroem em segurança seus ninhos, entre as flores coloridas e frutos adocicados.  
                O grande rio a caminho do mar, vai quebrando as barrancas e mudando de curso em cada nova cheia, serpenteando em meio à floresta, debatendo-se como uma sucuriju ferida tombando as árvores que cruzem seu caminho. Algumas delas, principalmente as palmeiras que crescem mais rápido, se contorcem desesperadamente penduradas na barranca, curvando-se em direção ao sol, num penoso esforço para sobreviver por mais algum tempo, quando talvez na próxima cheia, o rio mudando seu curso repentinamente, aterre novamente suas raízes expostas na barranca, criando alí uma praia de areias brancas, onde o tracajá depositará seus ovos no verão e se nenhum pescador ou predador encontrar antes, descascarão dezenas de filhotes todos iguais, ou aparentemente iguais, porque assim como a grande árvore se diferenciava das demais por seu gigantismo, outras vidas se diferenciam das demais por outros motivos, como aquele pequenino peixe do aquário que se diferenciava dos outros não pela aparência mas por seu comportamento peculiar. 
      Havia quatro ou cinco pequenos peixes coloridos no aquário do dono de uma farmácia, um deles tinha nascido aleijado e se mantinha sempre no fundo, não podendo nadar até a superfície, onde na hora da alimentação, os pequeninos grãos de ração colocados pelo dono do aquário ficavam flutuando. Mas um dos outros peixes, apenas um deles, quando a ração era colocada, descia até o fundo do aquário, se posicionava sob o peixinho aleijado levando-o até a superfície para que ele pudesse comer, repetindo a operação por várias vezes enquanto o peixe estava se alimentando.
             Algumas coisas, que por mais difíceis que sejam de se entender, de acreditar, presenciar, ver e perceber, inesperadamente acontecem, diferenciando um entre um milhão de indivíduos da mesma espécie e ao mesmo tempo criando semelhanças entre indivíduos de espécies diferentes, como aquelas  duas crianças que brincavam de luta num porto do rio Amazonas, onde eu estava de passagem. Desci do barco recém aportado para conhecer a pequena cidadezinha. Caminhando pelas ruelas do porto encontrei  duas crianças brincando , as crianças eram na realidade um menino e um jovem macaco barrigudo, que abraçados lutavam rolando pelo chão mordendo-se mutuamente sem que nenhum dos dois tivesse intenção de ferir, apenas se divertiam brincando.                Não havia quase nenhuma semelhança entre o menino caboclo e menino macaco barrigudo, assim como também não havia quase nenhuma diferença, principalmente no brilho do olhar dos dois meninos, demonstrando alegria, inocência e boa vontade.  Talvez seja a boa vontade o único diferencial que possa explicar o inacreditável comportamento do pequenino peixe do aquário, assim como o hipnotizante encanto cego de uma flor amanhecida, recém desabrochada, a paz silenciosa do bosque nas tardes de inverno, a doce vibração das cordas de um violino ou o canto solitário da mãe da lua nas madrugadas enluaradas, formando um elo quase imperceptível entre as diferentes formas de vida, onde todos os indivíduos de boa vontade vibram com a mesma intensidade, integrando sem distinção um todo maior, muito maior do que se pode perceber, do qual a Priscila, minha amiga pássaro, que na época da postura trazia no bico folhas secas de gramas, depositando aos meus pés para que eu construísse seu ninho, fazia parte.
                Há muito tempo atrás alguém me perguntou em espanhol o que é uma persona de buena voluntad, na época eu acredito que teria acertado a resposta se tivesse respondido que uma pessoa de boa vontade é aquela que não cortaria uma árvore para fazer uma mesa de jantar, sei lá...Às vezes penso que até hoje ainda não sei a resposta certa.
            Num entardecer depois de voltarmos ao acampamento eu saí para caçar. Não tínhamos nada para jantar, os dois índios estavam assando dois filhotes de pássaros que haviam retirado de um ninho que encontraram na mata. Caminhando sem pressa pela beira do rio avistei não muito longe do acampamento, alguns macacos guaribas na copa de uma árvore alta, me aproximei procurando identificar um macho como é costume dos mateiros, são maiores e não tem filhotes. O macaco é uma caça muito apreciada pelos amazonenses, embora eu os tenha comido muitas vezes, nunca gostei muito e menos ainda de caçá-los. Durante todos os anos em que vivi na selva caçando e pescando praticamente todos os dias, matei apenas dois macacos e por extrema necessidade, o último foi esta fêmea que matei por engano pensando ser um macho, ela estava separada dos demais, era muito grande e como já estava quase escurecendo, eu atirei por engano matando-a. No acampamento tiramos o couro da pobre macaca que mais parecia uma mulher magra, que dentro de meia hora estaria  sendo devorada por canibais famintos acocorados em volta do fogo, assando seu coração num espeto de pau.
               Outro dia, ao entardecer os dois índios pediram a espingarda para saírem em busca de alguma caça, eu estava na rede observando eles se afastarem do acampamento em direção ao centro da mata quando a onça pintada esturrou ameaçadoramente próximo ao local onde eles se encontravam, voltando imediatamente ao acampamento os dois indiozinhos sorriam meio sem jeito desistindo imediatamente da caçada, se já não é bom dormir de barriga vazia, pior é ser o jantar da onça de barriga vazia.
            Algumas das noites que passamos naquele acampamento, quando não estávamos muito cansados, os dois ianomâmi sentavam ao lado da minha rede e ficávamos traduzindo palavras, de português para ianomâmi e de ianomâmi para português. As vezes eu cantava algumas músicas de crianças só para os ver os dois cantando, tentando repetir a melodia e as palavras e sempre terminava a brincadeira em muitas gargalhadas que ecoavam pela mata. Por certo, algum civilizado se surpreenderia se ouvisse os devoradores de filhotes de pássaros e comedores de corações de macacos, cantando canções de ninar ao anoitecer em meio á selva, porque geralmente quem costuma cantar canções de ninar não mata uma caça, compra no supermercado tudo que necessita, inclusive corações de animais congelados e plastificados que outros abateram.  Sendo assim se poderia  pensar que apenas as árvores, aquelas que retiram da terra o seu próprio alimento não participam desta realidade cruel da sobrevivência, aonde o homem aparentemente se supera  chegando  ao extremo em todos os sentidos.
             

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