CUIA
Depois de horas de exaustiva caminhada bebendo
água dos cipós que cresciam na mata seca da encosta da montanha, eu o Bernardo,
o velho Branco e os dois indiozinhos chegamos ao topo. Uma grande árvore caída
no ultimo vendaval, abrira uma brecha na mata na beira do penhasco por onde se
podia ver até onde os olhos alcançassem. Correndo lá em baixo, um rio desconhecido
ziguezagueava, perdendo-se na floresta em meio à planície verde, que se estendia
até uma cadeia de montanhas que sumiam no horizonte distante, onde nuvens negras
de chuvas passageiras espremiam-se entre o verde escuro da floresta e o límpido azul
celeste. No silêncio singular daquele mundo esquecido, nós do topo da montanha
olhávamos calados o que talvez nenhum outros olhos humanos jamais tenham visto. Talvez existisse alguma aldeia indígena em alguma curva daquele rio esquecido
que passava la em baixo, talvez não, quem sabe tenha sido assim desde o início,
desde o surgimento das primeiras árvores, onde o silêncio como se estivesse cansado de tanto se
fazer calara-se para sempre, por saber que tudo ali está longe de mais, em
todas as direções, até muito além de onde se pode ver. E quando até mesmo a
maior das montanhas, parece ser apenas um montinho de areia azulado perdido no
horizonte distante, é que o homem percebe então o seu real tamanho, perguntando a si
mesmo se vale a pena seguir até a próxima serra, atrás de sonhos tão
pequeninos.
Já era mais de meia tarde quando tornamos a subir a montanha para voltar ao acampamento, uma grande nuvem negra de chuva que se aproximava cobria o céu, o sol parcialmente encoberto iluminava com seus raios avermelhados apenas as montanhas longínquas no horizonte, muito alem da planície, formando um gigantesco lençol dourado entre o verde da floresta e o azul do céu, mostrando para quem pudesse ver, onde está o verdadeiro e deslumbrante tesouro verde ianomâmi.
Já era mais de meia tarde quando tornamos a subir a montanha para voltar ao acampamento, uma grande nuvem negra de chuva que se aproximava cobria o céu, o sol parcialmente encoberto iluminava com seus raios avermelhados apenas as montanhas longínquas no horizonte, muito alem da planície, formando um gigantesco lençol dourado entre o verde da floresta e o azul do céu, mostrando para quem pudesse ver, onde está o verdadeiro e deslumbrante tesouro verde ianomâmi.
Ao lado do nosso acampamento uma
árvore gigantesca se destacava das demais, parecendo com uma imensa torre circular
que aparentemente com a mesma circunferência que saia do solo, sumia entre as
ramagens das outras árvores, sem que se pudesse ver seus galhos, onde quase
todas as noites um grande pássaro que talvez fosse uma harpia, pousava fazendo
muito barulho. Nenhum de nós jamais tinha visto uma árvore daquele tamanho, nem
o Bernardo que vivia há décadas percorrendo a Amazônia de norte a sul e tão pouco o
velho Branco nascido na beira do rio Amazonas. Algumas árvores na Amazônia impressionam
tanto pela aparência como pelas dimensões, algumas são tão frondosas, tão
majestosas, que nenhum homem de boa vontade sequer pensaria na possibilidade de
cortá-las, derrubá-las, matá-las apenas para obter algum lucro imediato. Embora
existam aos milhares, são as árvores talvez a forma de vida mais nobre que se
conheça, gigantes silenciosos estendendo generosamente seus galhos ao sol, onde
os pássaros constroem em segurança seus ninhos, entre as flores coloridas e
frutos adocicados.
O grande rio a caminho do mar, vai
quebrando as barrancas e mudando de curso em cada nova cheia, serpenteando em
meio à floresta, debatendo-se como uma sucuriju ferida tombando as árvores que
cruzem seu caminho. Algumas delas, principalmente as palmeiras que crescem mais
rápido, se contorcem desesperadamente penduradas na barranca, curvando-se em
direção ao sol, num penoso esforço para sobreviver por mais algum tempo, quando
talvez na próxima cheia, o rio mudando seu curso repentinamente, aterre novamente
suas raízes expostas na barranca, criando alí uma praia de areias brancas, onde o
tracajá depositará seus ovos no verão e se nenhum pescador ou predador
encontrar antes, descascarão dezenas de filhotes todos iguais, ou aparentemente
iguais, porque assim como a grande árvore se diferenciava das demais por seu
gigantismo, outras vidas se diferenciam das demais por outros motivos, como
aquele pequenino peixe do aquário que se diferenciava dos outros não pela
aparência mas por seu comportamento peculiar.
Havia quatro ou cinco pequenos peixes coloridos no aquário do dono de uma farmácia, um deles tinha nascido aleijado e se mantinha sempre no fundo, não podendo nadar até a superfície, onde na hora da alimentação, os pequeninos grãos de ração colocados pelo dono do aquário ficavam flutuando. Mas um dos outros peixes, apenas um deles, quando a ração era colocada, descia até o fundo do aquário, se posicionava sob o peixinho aleijado levando-o até a superfície para que ele pudesse comer, repetindo a operação por várias vezes enquanto o peixe estava se alimentando.
Havia quatro ou cinco pequenos peixes coloridos no aquário do dono de uma farmácia, um deles tinha nascido aleijado e se mantinha sempre no fundo, não podendo nadar até a superfície, onde na hora da alimentação, os pequeninos grãos de ração colocados pelo dono do aquário ficavam flutuando. Mas um dos outros peixes, apenas um deles, quando a ração era colocada, descia até o fundo do aquário, se posicionava sob o peixinho aleijado levando-o até a superfície para que ele pudesse comer, repetindo a operação por várias vezes enquanto o peixe estava se alimentando.
Algumas coisas, que por mais
difíceis que sejam de se entender, de acreditar, presenciar, ver e perceber, inesperadamente acontecem, diferenciando um entre um milhão de indivíduos da mesma espécie e ao mesmo tempo
criando semelhanças entre indivíduos de espécies diferentes, como aquelas duas crianças que brincavam de luta num porto
do rio Amazonas, onde eu estava de passagem. Desci do barco recém aportado
para conhecer a pequena cidadezinha. Caminhando pelas ruelas do porto encontrei duas crianças brincando , as crianças eram na realidade um menino e um jovem macaco
barrigudo, que abraçados lutavam rolando pelo chão mordendo-se mutuamente sem
que nenhum dos dois tivesse intenção de ferir, apenas se divertiam brincando. Não havia quase nenhuma semelhança entre o menino caboclo e menino macaco barrigudo,
assim como também não havia quase nenhuma diferença, principalmente no brilho do olhar dos dois meninos,
demonstrando alegria, inocência e boa vontade.
Talvez seja a boa vontade o único diferencial que possa explicar o
inacreditável comportamento do pequenino peixe do aquário, assim como o
hipnotizante encanto cego de uma flor amanhecida, recém desabrochada, a paz
silenciosa do bosque nas tardes de inverno, a doce vibração das cordas de um
violino ou o canto solitário da mãe da lua nas madrugadas enluaradas, formando
um elo quase imperceptível entre as diferentes formas de vida, onde todos os
indivíduos de boa vontade vibram com a mesma intensidade, integrando sem
distinção um todo maior, muito maior do que se pode perceber, do qual a Priscila,
minha amiga pássaro, que na época da postura trazia no bico folhas secas de
gramas, depositando aos meus pés para que eu construísse seu ninho, fazia parte.
Há muito tempo atrás alguém me
perguntou em espanhol o que é uma persona de buena voluntad, na época eu
acredito que teria acertado a resposta se tivesse respondido que uma pessoa de
boa vontade é aquela que não cortaria uma árvore para fazer uma mesa de jantar,
sei lá...Às vezes penso que até hoje ainda não sei a resposta certa.
Num entardecer depois de voltarmos
ao acampamento eu saí para caçar. Não tínhamos nada para jantar, os dois índios
estavam assando dois filhotes de pássaros que haviam retirado de um ninho que
encontraram na mata. Caminhando sem pressa pela beira do rio avistei não muito
longe do acampamento, alguns macacos guaribas na copa de uma árvore alta, me
aproximei procurando identificar um macho como é costume dos mateiros, são
maiores e não tem filhotes. O macaco é uma caça muito apreciada pelos
amazonenses, embora eu os tenha comido muitas vezes, nunca gostei muito e menos
ainda de caçá-los. Durante todos os anos em que vivi na selva caçando e
pescando praticamente todos os dias, matei apenas dois macacos e por extrema
necessidade, o último foi esta fêmea que matei por engano pensando ser um
macho, ela estava separada dos demais, era muito grande e como já estava quase
escurecendo, eu atirei por engano matando-a. No acampamento tiramos o couro da
pobre macaca que mais parecia uma mulher magra, que dentro de meia hora estaria sendo devorada por canibais famintos acocorados em volta do fogo, assando seu
coração num espeto de pau.
Outro dia, ao entardecer os dois
índios pediram a espingarda para saírem em busca de alguma caça, eu estava na
rede observando eles se afastarem do acampamento em direção ao centro da mata
quando a onça pintada esturrou ameaçadoramente próximo ao local onde eles se
encontravam, voltando imediatamente ao acampamento os dois indiozinhos sorriam
meio sem jeito desistindo imediatamente da caçada, se já não é bom dormir de
barriga vazia, pior é ser o jantar da onça de barriga vazia.
Algumas das noites que passamos
naquele acampamento, quando não estávamos muito cansados, os dois ianomâmi sentavam
ao lado da minha rede e ficávamos traduzindo palavras, de português para ianomâmi
e de ianomâmi para português. As vezes eu cantava algumas músicas de crianças
só para os ver os dois cantando, tentando repetir a melodia e as palavras e sempre terminava a
brincadeira em muitas gargalhadas que ecoavam pela mata. Por certo, algum civilizado
se surpreenderia se ouvisse os devoradores de filhotes de pássaros e comedores
de corações de macacos, cantando canções de ninar ao anoitecer em meio á selva,
porque geralmente quem costuma cantar canções de ninar não mata uma caça, compra no supermercado
tudo que necessita, inclusive corações de animais congelados e plastificados
que outros abateram. Sendo assim se poderia pensar que apenas as árvores,
aquelas que retiram da terra o seu próprio alimento não participam desta
realidade cruel da sobrevivência, aonde o homem aparentemente se supera chegando ao extremo
em todos os sentidos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário