sexta-feira, 9 de março de 2012

História de Onça - Parte VI






           RABUCÁ
         
        Deixamos para traz a aldeia do capelobo e seguimos remando por mais dois dias sem termos encontrado mais nenhuma outra aldeia nas margens do rio, que naquela altura se tornara mais estreito e suas águas geladas corriam apressadas fugindo do frio das montanhas próximas. Montamos um acampamento improvisado na margem dum igarapé, onde nossa canoa poderia ficar protegida da correnteza do Auris e já era mais de meia tarde quando deixamos tudo organizado, inclusive as lenhas da fogueira tinham sido recolhidas em quantidade suficiente para toda a noite, que se aproximava silenciosamente estendendo seu manto gelado sobre a floresta.    Juntando nossas lonas plásticas montamos apenas uma tenda, onde acendíamos no centro a fogueira e as redes eram armadas em volta do fogo, o mais perto possível, e durante toda a noite  revezavamo-nos na tarefa de colocar mais lenha na fogueira, pois de madrugada a umidade e o frio gelava as costas dos mateiros cansados, espantando o sono da caboclada que passava a noite toda “quase sem dormir, com um olho fechado e o outro sem poder abrir”. Pela manhã a água gelada do igarapé despertava os garimpeiros, que ainda sonolentos tinham que molhar os pés entrando na água para poder lavar o rosto barbudo e amassado, resultante do desânimo causado pelo cansaço e as noites mal dormidas, piorando ainda a nossa aparência desagradável, agravada ao longo do tempo passado na umidade da floresta, sendo picado constantemente por insetos, arranhados por espinhos, sujos barbudos e cabeludos, vestindo as mesmas roupas rasgadas úmidas e enfumaçadas pela fogueira feita com lenhas verdes, pegando chuvas e secando a roupa molhada no próprio corpo ou na fumaça da fogueira durante a noite, hora em que o caboclo fica catando os carrapatos, que se não forem encontrados antes de escurecer, provavelmente não deixarão o hospedeiro dormir em paz, picando o corpo fedorento do mateiro até encontrarem o local ideal onde possam passar despercebidos por alguns dias, chupando sangue até quase estourarem, como um que encontrei outro dia no meu sovaco e que parecia uma verruga sendo quase do tamanho de uma uva. Por isso quem se aventura mata adentro deve conhecer muito bem a floresta e os seus moradores, saber por onde andar, qual o arbusto que não deve cortar, ou que não deve tocar. Conhecer os insetos e seus hábitos, como os da jiquitaia, uma formiga diminuta que vive num desses arbustos que devem ser evitados, pois uma chuva miúda de jiquitaia cai sobre quem sacudir os galhos deste arbusto e mesmo depois de tirar toda a roupa para se livrar das formiguinhas, espanar os cabelos e o corpo, o desavisado passará o resto do dia com a pele ardendo e possivelmente terá febre alta á noite. Pior ainda é a picada da terrível e agressiva  tucandeira, esta formiga grande e negra tem a picada mais dolorida que a do escorpião, constrói seus ninhos às vezes nas raízes das árvores e quem por descuido amarrar a corda da rede na árvore delas, seguramente não terá um sono muito tranquilo, pois quando estingadas as tucandeiras saem agressivas da toca, atacando sem piedade o intruso com seus ferrões poderosos, que podem fazer um caboclo forte falar em inglês poucas horas depois de ter sido picado por mais de uma delas, porque entre outros sintomas, o veneno também paralisa a língua, fazendo o caboclo falar enrolado como os gringos , que falam, falam e ninguém entende nada.       
               Não tínhamos mais café para adoçar o bico e comíamos pela manhã o que tinha sobrado do jantar, isso quando sobrava alguma coisa, pois quase não se via caça alguma naquelas montanhas frias, talvez porque naqueles meses do ano quando as águas dos grandes rios estão baixas, os animais procuram alimentos nas terras férteis das vazantes, onde o caititu engorda em meio fartura de frutos dos buritizais.  Enquanto isso cada dia mais magros e seguindo sempre a mesma rotina, nós três acompanhados pelos dois indiozinhos subíamos e descíamos montanhas todos os dias abrindo buracos em todas as direções, bateando pacientemente o cascalho retirado do leito dos córregos que desciam das cordilheiras e concentrando no fundo da bateia meia dúzia de fagulhas de ouro e grandes pedaços de ferros, quartzo, cassiterita, malacacheta e outros minérios que sempre estão presentes nos garimpos onde é encontrado ouro, fazendo-nos acreditar sempre que na manhã seguinte descobriríamos a grota rica, encontrando o ouro ianomâmi que estava nos esperando, e desta esperança desesperada tirávamos forças para subir a próxima montanha ao amanhecer do dia seguinte, mesmo estando nós enfraquecidos pela falta de alimentação adequada, pois não tínhamos mais nenhum alimento trazido da cidade e sobrevivíamos somente com o que encontrávamos durante o dia nas nossas caminhadas pela mata.
       Os dois índios ao contrário de nós não demonstravam nenhum sinal de fraqueza, eles estavam em seu habitat natural, acostumados a alimentar-se com as pequenas porções de alimentos que a floresta oferece oportunamente, aranhas caranguejeiras, marandovás, larvas de insetos e outros alimentos como os caranguejos que encontrávamos removendo as pedras do leito dos igarapés e que eram saborosos mas escassos e como não tínhamos tempo nem disposição para sair pela mata a procura de alguma caça, raramente matávamos algum pássaro, macacos ou outros bichos enquanto subíamos e descíamos as montanhas em busca de ouro, enquanto isso a fome, o desânimo e a fraqueza se faziam cada dia mais presentes.
            Certa vez, um garimpeiro desconhecido aproximando-se da rede onde eu me encontrava, quase morrendo de febre, conseqüente da malária que me pegou de jeito num garimpo do rio Pacacibí, falou depois de olhar-me por algum tempo, em vós alta oque estava pensando, dizendo, sem demonstrar a mínima preocupação com o meu estado, que ovelha não é pra mato. Não gostei nem um pouco da sua franqueza, mesmo sabendo que ele tinha alguma razão em acreditar que a selva é para os caboclos, pois entre os garimpeiros do Bernardo eu fui o mais resistente durante as primeiras semanas na selva, e foi esse um dos motivos que levaram o Bernardo a escolher a mim entre os outros garimpeiros para acompanhá-los nas pesquisas de minérios nas cercanias da aldeia do tuxaua Paulo, mas com o tempo a selva cobrava de mim o que eu não tinha, faltava vitamina d e a cada nova manhã as montanhas me pareciam mais altas, os dias mais longos e a terra mais dura para cavar.
            O Bernardo e o velho branco também se sentiam abatidos, mas era evidente que entre nós três, era eu quem tinha os pés mais longe da aldeia, e a floresta sabia disso. Bebendo água de cipós durante as longas subidas das encostas de serras que consumiam horas de caminhada, já chegávamos cansados na outra face da montanha e depois de algumas horas escavando o leito dos igarapés, tínhamos que voltar apressados para o acampamento, antes da noite nos encontrar no caminho. 
          Mais tarde no relativo aconchego das redes armadas em volta do fogo, depois do banho revigorante nas águas frias do igarapé, nós iniciávamos a noite planejando qual a direção que tomaríamos no dia seguinte, comentávamos sobre o tamanho dos grandes pedaços de ferro que encontrávamos bateando o cascalho daquelas montanhas e que nunca tínhamos visto graúdos assim em nenhum outro garimpo, do grande e límpido cristal de quartzo que o velho Branco encontrou numa das nossas escavações e que abandonamos na mata por ser pesado demais, falávamos também sobre outros minerais que encontramos nas nossas escavações, que são chamados pelos garimpeiros de formas. Estes minerais estão sempre presentes no cascalho dos garimpos de diamantes e dependendo da coloração e do formato recebem o nome de feijão preto, feijão branco, bosta de barata etc. sendo  indicativos de que pode haver diamantes por perto.
         Também escutávamos as histórias do Bernardo, falando sobre as pepitas de ouro que ele encontrou nas fendas das pedras da cachoeira de um igarapé no Pará, depois de ter escutado a cozinheira contando seu sonho pela manhã, dizendo que naquela noite sonhara que tinha subido a cachoeira do igarapé e que estava admirando os peixinhos coloridos que nadavam nas águas cristalinas do riacho em meio às pedras, quando percebeu que o cascalho do leito do igarapé estava amarelo de pepitas de ouro. Contava o Bernardo que mais tarde pensando ainda no sonho da cozinheira, saiu do acampamento sem ser percebido e subindo a cachoeira seguiu caminhando por dentro do igarapé, cuiando, bateando aqui e acolá o cascalho e num determinado local onde havia um paredão de pedras represando o riacho, encontrou as pepitas de ouro, que retirou das fendas da pedra onde se encontravam, com a ponta do facão.
           Falou também do garimpo que não quis comprar por dois quilos de ouro, por não acreditar no homem doente que agradecido pelos remédios, alimentação e estadia pagos pelo Bernardo durante sua convalescença, falou do tal garimpo que pertencia a dois gringos brabos, inexperientes, que tinham garimpado muitos quilos de ouro no local e que estavam vendendo por apenas dois quilos o garimpo rico, sem saber que lá havia muito mais ouro do que aquele que já tinha sido retirado. O Bernardo contou que depois de ouvir a história do enfermo, pagou mais um prato de sopa para o homem doente e voltou para a mata ao garimpo onde trabalhava, depois de algumas semanas retornando á cidade para fazer compras, encontrou-se com um garimpeiro conhecido que tinha enriquecido depois de ter acreditado no tal homem doente e comprado o garimpo dos gringos.
          Contava o Bernardo que a partir daquele dia passou a acreditar em todas as histórias de ouro, até mesmo na do índio solitário que chegando ao acampamento falou que sabia onde havia ouro charami, muito ouro em ianomami. Quando o Bernardo perguntou se haviam pepitas no local, o índio respondeu que sim, então pegando um cavaco de lenha pequeno o Bernardo perguntou se as pepitas eram daquele tamanho, o índio tornou a responder que sim, quando mostrado um cavaco maior, também foi sim a resposta, depois um maior ainda e a resposta do índio continuou sendo afirmativa.  Bastava então, para encontrar estas pepitas gigantes de ouro. apenas seguir o índio mata adentro, que com muito prazer ajudaria a comer o rancho até acabar e depois  desapareceria na floresta, deixando os garimpeiros gananciosos perdidos no meio da mata, sem guia, sem rancho e sem o tal ouro charami.
              Naquelas noites sem lua, no centro da mata a escuridão é de meter o dedo no olho, como costuma falar o caboclo. Fechar ou arregalar os olhos, não faz a menor diferença quando não há nada do lado de fora de nossas próprias lembranças. 
    Os pequenos pontos de fungos luminosos brilhando no chão úmido da floresta, eram como estrelas distantes, espalhadas nas profundezas do céu, sobre o qual armamos nossas redes, e de onde, pra quem olhava de cima, fazia até medo cair. 
     Se engana quem pensa que a mãe da lua não sabe que não há nenhuma picada, nenhuma trilha entre as estrelas da mata e o caminho de casa, não tem volta. O João que foi...e foi... Jamais retornou e nunca retornará, porque todos os sonhos, realizados ou não, são apenas ilusões perdidas para sempre, como aquelas estrelas miúdas espalhadas pelo chão da floresta, lá onde aqueles que foram e viram, não serão nunca mais os mesmos.
                                                                                                                                                                     Total era a escuridão no centro da mata naquelas noites sem lua, nem se podia ver as próprias mãos, mas milhares de pontinhos luminosos brilhavam no chão úmido da floresta como se fossem as estrelas do céu.

                     ESTRELAS DO CHÃO
                                                                                                                                                              Apesar de termos ficado muito íntimos, eu nuca perguntei por que ela matara o marido na rede com uma facada na barriga. Quando ouvi falar dela pela primeira vez, eu estava fora do garimpo pescando tambaquis, tinha alugado um pequeno barco peixeiro numa cidade das margens do rio Solimões. Andando um dia pelo porto, ouvi quando garimpeiros que frequentavam a cidade, falavam da mineira que havia assassinado o marido durante uma viagem no barco que fazia linha entre a cidade de Limoeiro, no rio Japurá, e Tefé. Os garimpeiros comentavam entre si que o falecido fora muito bom para ela, e que antes de morrer sangrando na rede, pediu para que não prendessem a mulher, que acabou passando apenas alguns meses na prisão da cidadezinha, voltando depois para o garimpo. Fiz, enquanto escutava os garimpeiros contando o assassinato, o meu próprio julgamento condenando a mineira, a assassina desconhecida. 
    Passando talvez um ano, o senhor destino me levou a viver por alguns meses num pequeno hotel de madeira numa outra cidade do alto Solimões, aonde os garimpeiros vinham de tempos em tempos gastar o ouro retirado do rio que nascia na fronteira peruana. Meu quarto era o segundo do lado esquerdo do estreito corredor do andar superior, o primeiro quarto, separado por uma parede fina de madeira era o da morena simpática que passava as noites fazendo programas com garimpeiros ou com alguns viajantes que ocasionalmente hospedavam-se no hotelzinho, vindos da Colômbia ou de Manaus, e enquanto ela trabalhava duro, eu do outro lado da fina parede escutando os gemidos, quase sempre não podia dormir. Outras mulheres com a mesma profissão ocupavam outros quartos ao longo do corredor, algumas eram minhas conhecidas do garimpo e com o tempo todos ali se conheciam, hóspedes e frequentadores do hotelzinho. A morena do quarto ao lado que costumava sair à noite com um vestido vermelho e que sempre me cumprimentava sorrindo cordialmente, era a mineira assassina, e foi ela que numa daquelas tardes quentes bateu levemente na porta do meu quarto, vestindo aparentemente apenas uma camiseta de algodão branco e perguntando se eu por acaso não teria creme para pele. Ela entrou e levantando um pouco a camiseta perguntou-me se sua pele estava ressequida. Eu sentado na cama, apenas respondi que não, me fazendo de desentendido. Devido ao meu aparente desinteresse, ela saiu logo do meu quarto meio sem jeito, e como eu estava de pé na porta olhando-a, ela  voltou-se antes de entrar em seu quarto e levantando novamente sua camiseta mostrou seu sexo, perguntando-me o que eu achava. Eu sorrindo ,balancei a mão dizendo. - Mais ou menos! Ela deu uma grande gargalhada e antes de entrar em seu quarto disse apontando para mim. -Tu és um boiolão !  A partir daquele dia a mineira tornou-se talvez a minha melhor amiga daqueles tempos sombrios, e sempre que algum hóspede novo perguntava quem era a morena do vestido vermelho, eu dava todas as informações que ele desejava ouvir e omitia todas que ele não deveria saber. Acredito que ela fazia o mesmo comigo, porque andei até meio popular naquela época. Ela também trabalhava algumas noites da semana no bar que um garimpeiro havia alugado na cidadezinha, o dono do bar, o garimpeiro cujo nome não lembro, foi assassinado por dividas de drogas por outro garimpeiro.  Ele estava sentado no dia de sua morte fazendo anotações, quando o assassino entrou passando entre nós, que estávamos no salão. Naturalmente foi até o som aumentando o volume, depois se aproximou da vítima que acostumado com sua presença diária no bar continuava sentado folheando um bloco de anotações sobre a mesa. Inesperadamente o homem sacou uma faca e num só golpe certeiro enfiou toda a lamina de cima para baixo, entre o pescoço e a clavícula, atravessando o coração do dono do bar.  Aproveitando-se da surpresa o assassino retirou-se rapidamente passando entre nós com a faca ainda em punho, enquanto o dono do bar levantando-se atônito, deu ainda dois ou três passos em nossa direção, antes de cair como uma pedra,  quebrando a cabeça no degrau do piso do salão. Deitamos o morto sobre uma mesa de sinuca e com uma caneta eu introduzi uma toalha no ferimento para estancar o sangue quente que continuava escorrendo sobre o pano verde da mesa. 
     Depois do assassinato, a mineira que já sofria de crises de pânico esporádicas, aumentou o consumo de drogas, e muitas noites quando não havia clientes, ela retirava o colchão de sua cama e arrastava  para o meu quarto e colocava no chão ao lado da minha cama, onde passava horas falando de seu marido falecido, do medo que sentia de uma possível vingança de seus parentes, de seu passado em Minas Gerais, filhos que lá viviam, homens que conhecera, lugares por onde passara, sonhos perdidos, ilusões,desilusões...Numa destas noites abrindo sua bolsa mostrou-me a faca com a qual tinha matado seu marido, me presenteou as sandálias do falecido e chorou muito até adormecer encolhida sobre o colchão velho sem lençóis. Naquela noite, enquanto eu esperava o sono chegar, olhando a mulher adormecida, lembrei da frase que li ou ouvi em algum lugar. Não julgues, há quem julgue melhor que você.              
                A mineira tinha muitas amigas do garimpo, algumas delas muito estranhas, uma delas deixava seu filho, recém nascido, durante horas no meu quarto aos meus cuidados, enquanto fumava pasta de cocaína com as outras mulheres, no quarto ao lado. Entre elas havia uma chamada Beatriz que eu já conhecia e talvez por ser ela também sulista, ou por preferir as mulheres como costumava dizer, com o tempo nos tornamos amigos também.
               

                    

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