Naqueles tempos quando tudo
que tínhamos cabia na boróca, na bolsa, e a rede podia ser armada em qualquer
árvore, quem buscava a sorte no ouro seguia mudando de garimpo em garimpo,
andando por baixo da palha como ratos, fugindo muitas vezes do passado, do
presente, ou do futuro, indo de cidade em cidade, de estado em estado, de rio
em rio, muitas vezes acabava sem saber por onde tinha começado. Datas,lugares,
acontecimentos e pessoas, se tornavam lembranças muitas vezes desordenadas na memória
de quem acostumava amanhecer vendo o lugar onde passou a noite, pela primeira vez. Muitas vezes
quando um garimpeiro desconhecido contava alguma mentira, citando algum lugar distante, é
que a gente lembrava já ter passado por lá também algum dia. Algumas etapas daquelas andanças
ficaram esquecidas para sempre, como algumas folhas arrancadas do meio de um
velho livro e que ninguém, nem mesmo quem as escreveu talvez saiba mais o que
contavam.
Esquecidos assim com a Beatriz, a Mineira,
o Magnata e sua noiva magricela, que também tiveram suas últimas páginas arrancadas daquele livro, sem que ninguém mais tenha dado notícias deles , enquanto seguiam
a caminhada do destino de garimpo em garimpo, de rio em rio. Páginas em branco, como a pele daquele menino albino que se banhava pelado no rio Juruá, junto com
outros meninos caboclos morenos, parecendo um macaco branco uacari.
Um comprador de bananas que
viajava pelo rio Juruá, convidou-me para ir junto com ele, numa de suas
viagens, a fim de identificar um minério amarelo que os beiradeiros tinham
encontrado e que pensavam ser ouro, mas na realidade era pirita, ouro de tolo.
Depois de desiludir os beiradeiros retornamos, parando de porto em porto, recolhendo as bananas maças colhidas no dia anterior pelos moradores das comunidades ribeirinhas. Num destes portos, havia um menino albino, que de longe já se destacava dos demais que nadavam pelados nas águas rasas do porto, fato que me recordou a história contada pelo pescador Zeca França, numa noite num flutuante do rio Tefé.
Contava o Zeca que quando adolescente, contraiu uma doença de pele que deixou seu corpo todo cheio de feridas, sua família trabalhava plantando juta nas margens do rio Solimões. Trabalho duro, tanto no plantio como na colheita, que era efetuada já na época das cheias, em meio á insetos, lama e água. De tempos em tempos subia o rio Solimões um grande barco á motor, que vinha da capital buscar os produtos produzidos e colhidos pelos beiradeiros. O barco voltava rebocando as canoas dos caboclos enfileiradas, abarrotadas de castanhas, peixes salgados, carnes de caças salgadas, bananas, madeiras, jutas etc.
Numa destas viagens o Zeca França foi com seu pai procurar um médico na capital, que receitou um líquido que deveria ser passado nas feridas com um pincel e que ardia mais que urtiga brava. De volta ao interior, quando a mãe do Zeca perguntou-lhe o que tinha visto na cidade, ele respondeu que o que mais lhe impressionou foi quando viu passar na rua um “rádio” cheio de gente,é que no rio o Zeca apenas tinha ouvido falar de rádios, nunca de automóveis. Levou muito tempo até que as feridas do corpo do Zeca sarassem e as marcas, cicatrizes espalhadas pelo seu corpo magro, só sumiram depois que alguém lhe ensinou a passar na pele o líquido da casca do jerimum. Neste meio tempo em que não podia trabalhar na colheita de juta, o Zeca foi incumbido por seu pai da tarefa de pescar para alimentar a família. Todos os dias o Zeca remava rio acima passando pela casa do Malaquias que quase sempre o acompanhava em outra canoa, até o lago, onde pescavam tambaquis, pirarucus, tucunarés e outros peixes. Contava o Zeca que sempre que avistava o tapiri do Malaquias no final do estirão, de longe podia ver a cabeça branca do menino albino que não falava e que passava quase o dia todo olhando o rio na janela do tapiri. Era um menino estranho, contava o Zeca, branco como um uacari, não falava com ninguém. Quando pronunciava alguma palavra era no ouvido da mãe, respondia a qualquer que fosse a pergunta apenas com um sorriso. A mãe dele contou que num dia quando o menino queimou as mãos no fogão, ela nervosa bateu nele, gritando para que ele não tornasse a fazer aquilo nunca mais, e quando o menino com as mãos queimadas olhou para ela sorrindo, depois de ter apanhado, ela arrependida jurou que nunca mais se zangaria com ele.
Depois de desiludir os beiradeiros retornamos, parando de porto em porto, recolhendo as bananas maças colhidas no dia anterior pelos moradores das comunidades ribeirinhas. Num destes portos, havia um menino albino, que de longe já se destacava dos demais que nadavam pelados nas águas rasas do porto, fato que me recordou a história contada pelo pescador Zeca França, numa noite num flutuante do rio Tefé.
Contava o Zeca que quando adolescente, contraiu uma doença de pele que deixou seu corpo todo cheio de feridas, sua família trabalhava plantando juta nas margens do rio Solimões. Trabalho duro, tanto no plantio como na colheita, que era efetuada já na época das cheias, em meio á insetos, lama e água. De tempos em tempos subia o rio Solimões um grande barco á motor, que vinha da capital buscar os produtos produzidos e colhidos pelos beiradeiros. O barco voltava rebocando as canoas dos caboclos enfileiradas, abarrotadas de castanhas, peixes salgados, carnes de caças salgadas, bananas, madeiras, jutas etc.
Numa destas viagens o Zeca França foi com seu pai procurar um médico na capital, que receitou um líquido que deveria ser passado nas feridas com um pincel e que ardia mais que urtiga brava. De volta ao interior, quando a mãe do Zeca perguntou-lhe o que tinha visto na cidade, ele respondeu que o que mais lhe impressionou foi quando viu passar na rua um “rádio” cheio de gente,é que no rio o Zeca apenas tinha ouvido falar de rádios, nunca de automóveis. Levou muito tempo até que as feridas do corpo do Zeca sarassem e as marcas, cicatrizes espalhadas pelo seu corpo magro, só sumiram depois que alguém lhe ensinou a passar na pele o líquido da casca do jerimum. Neste meio tempo em que não podia trabalhar na colheita de juta, o Zeca foi incumbido por seu pai da tarefa de pescar para alimentar a família. Todos os dias o Zeca remava rio acima passando pela casa do Malaquias que quase sempre o acompanhava em outra canoa, até o lago, onde pescavam tambaquis, pirarucus, tucunarés e outros peixes. Contava o Zeca que sempre que avistava o tapiri do Malaquias no final do estirão, de longe podia ver a cabeça branca do menino albino que não falava e que passava quase o dia todo olhando o rio na janela do tapiri. Era um menino estranho, contava o Zeca, branco como um uacari, não falava com ninguém. Quando pronunciava alguma palavra era no ouvido da mãe, respondia a qualquer que fosse a pergunta apenas com um sorriso. A mãe dele contou que num dia quando o menino queimou as mãos no fogão, ela nervosa bateu nele, gritando para que ele não tornasse a fazer aquilo nunca mais, e quando o menino com as mãos queimadas olhou para ela sorrindo, depois de ter apanhado, ela arrependida jurou que nunca mais se zangaria com ele.
Das distantes cordilheiras andinas
chegam às águas do rio mar, espalhando-se mata adentro por muitos quilômetros
no período das cheias, formando grandes lagos em meio à floresta virgem,
inundando as terras baixas, criando centenas de ilhas e lagos enquanto
serpenteia por entre a floresta, a caminho do mar, mar esse, que de tão distante a
maioria dos caboclos desconhecem a sua existência, talvez porque de tão extenso
o rio, pareça para o beiradeiro não ter início nem fim.
Ao entardecer o sol avermelhado, antes de se deitar sobre o lençol verde
da floresta, tinge de dourado as águas crespas do rio, que se espalham á perder
de vista entre dezenas de ilhas verdes. Havia muitos peixes naqueles tempos,
era fácil flechar os tambaquis nos enormes cardumes que tremiam as águas calmas
do lago e arpoar os grandes pirarucus que mal cabiam na canoa, assim todos os
dias o Zeca e o Malaquias garantiam a mesa farta da família. Na volta pra casa,
remando a favor da corrente, o Malaquias costumava fumar um porronco e contar a
mesma história do pescador chamado Nicodemos, que pescando no lago à noite
ouviu uma voz no igapozal que perguntava se ele queria enricar. Morrendo de
medo o tal Nicodemos remou o mais de pressa que podia voltando para casa, só
contando pra sua mulher o que tinha se passado depois de muita insistência. A
cabocla gananciosa obrigou o pobre Nicodemos a voltar na outra noite ou mesmo
lago e lá esperar pela voz e responder para a alma que sim, que queria sim enriquecer.
Contrariado mas com mais medo da mulher do que da assombração, o caboclo voltou ao lago. Colocou a
malhadeira na água e sentado na canoa esperou a noite chegar, desejando que
nenhuma voz chamasse seu nome. Mas quando menos esperava ouviu novamente o
chamado. - Quer Enricar Nicodemos ? Depois de três ou quatro chamados, resolveu
responder com vós tremula de medo, que queria sim. - Quero sim alminha de
Jesus! Então a alma disse para ele - Vai trabalhar Nicodemos !!! O Nicodemos raivoso e
decepcionado, depois de ter passado tanto medo por nada, gritou para a alma levantando-se
dentro da canoa. - Vai tu alminha fresca!
Numa noite quando o Zeca e o
Malaquias voltavam do lago, ouviram ao longe os gritos da mulher do Malaquias, que vinha remando em outra canoa rio acima ao encontro deles, chamando-os
desesperada. O Malaquias jogando o cigarro na água remou apressado ao encontro
da mulher prevendo o pior. Logo as três canoas remavam apressadas rio a baixo em
direção a casa, enquanto a mulher do Malaquias repetia sem parar como o menino
albino tinha desaparecido na floresta naquela tarde, contando que ela, as três
filhas e o menino foram catar castanhas na mata quando perceberam
que o menino que deveria estar junto delas, tinha desaparecido. Chamaram e
procuraram até cansarem e já estava escurecendo quando voltaram para casa
correndo para ir avisar o pai. Quando as três canoas chegaram, as irmãs do menino
estavam no porto chorando, o Malaquias subiu correndo a barranca do rio, pegou
a espingarda na casa e entrou mata adentro acompanhado pelo Zeca. Andaram em
círculos, deram vários tiros, chamaram, bateram até cansar na raiz da sapopema
sem obter nenhum resultado. Enquanto o Malaquias continuou a busca, o Zeca
voltando ao rio pegou a canoa remou apressado para procurar ajuda. Quando o dia
amanhecia, várias canoas, trazendo muitos beiradeiros, chegavam ao porto da
casa do Malaquias que ainda não voltara da floresta. Os homens recém chegados
embrenhando-se pela floresta e logo encontraram o Malaquias que não havia
localizado ainda nenhum vestígio do filho desaparecido, sem perda de tempo
aproveitando o dia ensolarado, recém amanhecido, os homens espalharam-se mata à
dentro, seguindo em todas as direções, gritos, tiros, chamados e até foguetes
podiam ser escutados a quilômetros.
Os olhos dos caboclos que nascem e
crescem na floresta, são habituados a perceber pequenos detalhes
diferenciando-se do todo, como uma folha caída, que tenha sido virada
recentemente no solo da floresta, entre milhares de outras, o galho de algum
arbusto que tenha sido dobrado recentemente e que ainda não tenha voltado à
posição original e até mesmo a mudança de comportamento da floresta como um todo,
dos pássaros, macacos e outros animais que tenham sido recentemente
importunados com a presença de estranhos.
Nada escapa dos olhos de um mateiro que pode seguir a trilha invisível
deixada na mata por um veado, um porco ou um menino perdido, por quilômetros
mata adentro. Mas quando a noite chegou novamente e os homens se reuniram na casa do
Malaquias, sem que nenhum deles tivesse encontrado nenhum vestígio do menino
desaparecido,a preocupação era geral, nenhuma pegada deixada pelo menino ou por
índios foi vista na mata. Nenhum local onde o menino tenha passado a noite foi
encontrado, nem marcas de sangue ou sinais de ataque de onça. A criança tinha mesmo sumido sem deixar nenhum vestígio. Curupiras, mapinguaris, caboclos da mata e
outras entidades eram acusadas pelos supersticiosos de terem raptado o menino e
depois de mais de uma semana de buscas, sem nenhum resultado, os vizinhos do
Malaquias voltaram para suas casas e seus afazeres acreditando que algum
curupira tinha mesmo levado embora o menino branco.
Como de costume o Zeca França remava rio acima, em direção ao
lago, quase todos os dias, passando na frente do tapiri do Malaquias pendurado lá em cima
da barranca, silencioso e triste desde o desaparecimento do menino. O Malaquias
às vezes acompanhava o Zeca, até o lago, para trazer algum peixe pra casa,
remando em silêncio, sem repetir mais as suas historias de almas. Na volta da
pescaria como era seu costume, e no silêncio da noite só se ouvia o som
compassado dos remos e da proa das canoas rasgando como um pano as águas negras do grande
rio.
Passaram-se algumas semanas e numa
tarde qualquer, quando o Zeca subindo o rio entrou no estirão de onde já podia avistar a
casa do Malaquias, se surpreendeu quando viu de longe a cabeça branca do filho
desaparecido do Malaquias na janela do tapiri, remando depressa o Zeca não tirava os
olhos do menino, para certificar-se se era real o que estava vendo. Quando chegou no
porto o menino sorria do mesmo modo que sempre costumava fazer. Contou o
Malaquias que o filho tinha voltado no dia anterior, aparecera no terreiro da
casa sem que ninguém visse de onde veio, não tinha nenhum arranhão, nem picadas
de insetos e parecia até mais gordinho, nunca se soube por onde ele andara
durante o tempo em que sumira na mata, seu sorriso como resposta as perguntas
feitas não esclarecia nada, sua mãe dizia que depois de muito insistir
perguntando onde ele estivera durante todas aquelas semanas, o menino
pronunciou em seu ouvido duas palavras. - Com, eles.
Passado de alguns dias quando tudo
parecia ter voltado ao normal na casa do Malaquias, o menino albino tornou a
desaparecer na floresta, a busca com a ajuda dos vizinhos durou novamente vários dias,
mas o menino nunca mais foi visto e passado mais de quarenta anos aqueles que
ainda lembravam do desaparecimento, contam que nunca mais se teve nenhuma notícia
do paradeiro do menino uacari.
UACARI
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