terça-feira, 8 de maio de 2012

História de Onça - Parte XV



                                    GARIMPO                 

                  Eu tinha passado o dia na maraca, dentro do barranco, mandando material para a resumidora de diamantes, sendo devorado vivo pela nuvem faminta de piuns, e somente para não ser descortês, mesmo estando cansado, aceitei o convite de um dos companheiros de garimpo, que não queria ir só para corrutela.
                 Depois de jantar, saímos caminhando pelo lavrado. A noite enluarada branquejava as pedras das montanhas e os tamanduás bandeira com seu andar cambaleante, podiam ser visto de longe entre a vegetação rasteira. O meu companheiro, um mato-grossense, que chamava os diamantes de “dijamante”, disse que fazia três anos que não via seus familiares. Enquanto ele falava, eu que tinha quatro filhos no sul escutava calado, sem entender como ele pode ficar tanto tempo longe de casa. Naquela noite, eu não poderia imaginar que, num futuro próximo, ficaria sem ver os filhos ainda pequenos para sempre, pois quando tornei a vê-los, depois de anos, já estavam crescidos.   
           Naquela manhã, que ainda me rouba o sono de muitas madrugadas, eu olhei para trás vendo o passado pela ultima vez a dez passos de mim. Bastava  ter voltado de onde estava e jamais contaria esta história, porque o nosso destino é a conseqüência direta de nossas próprias decisões ou indecisões. Ainda vejo nos meus sonhos os dois meninos pequenos acenando do portão, enquanto eu seguia pela estrada com a bolsa nas costas á caminho do garimpo, deixando para trás, e para sempre, o maior de todos os tesouros que um homem pode encontrar. 
       - Os “dijamantes” segam a gente! Me disse o Mato grosso naquela noite, antes de chegarmos na corrutela.
                Na corrutela, alguns barracos barulhentos, cobertos por lonas, construídos na beira do rio próximos as máquinas do garimpo, podia-se comprar quase tudo, á peso de ouro e diamantes, onde os garimpeiros costumavam se reunir á noite para comprar suas necessidades. Álcool puro ou com suco de laranjas, era uma das bebidas preferidas pelos mergulhadores das águas frias, por ser mais forte que outras bebidas. Maconha, pasta de cocaína, álcool e mergulho formavam uma combinação letal, que mais cedo ou mais tarde sempre acabava não dando certo.
             Nas balsas pequenas dragando os rios, o ruído constante do motor de três ou quatro cilindros era ensurdecedor, onde geralmente quatro mergulhadores viviam noite e dia falando aos gritos. Nas redes armadas sobre os equipamentos barulhentos, dormiam sacolejando dois homens, enquanto os outros dois, de plantão por quatro horas, trabalhavam. Um deles cuidando dos equipamentos e da mangueira de ar, o outro no fundo de rio, abraçado a ponta do mangote da bomba que sugava o cascalho. Alguns levavam no cinturão um vidro com álcool, que bebiam durante as quatro horas de mergulho espantando o frio. Muitas vezes mal dormidos e drogados, adormeciam abraçados à mangueira da bomba, no fundo do rio, tendo que ser acordado pelo companheiro de plantão, que de cima da balsa puxava a mangueira do ar presa ao cinturão do mergulhador, para que voltasse a escavar o mocororo.  Completado o turno de três ou quatro horas de mergulho, a equipe se revezava, e um dos que dormiam nas redes, recém acordado e ainda com o corpo quente, vestia as mesma roupa de borracha molhada, que fora usada antes pelo outro mergulhador, desejando que ele não tivesse urinado, durante ás quatro horas que passara no fundo gelado do rio, se jogava nas águas, fosse noite ou dia. Enquanto isso a equipe substituída procurava nas bolsas, antes de irem para as redes descansar, as penas de asas de pássaros, que usavam para coçarem os ouvidos inflamados, antes de dormir por quatro horas, isso se não fossem despertados antes,  para auxiliar em alguma emergência.


                                  OURO EM PÓ

               No rio Madeira, na época do ouro fácil, centenas de balsas e dragas se espremiam tentando alcançar o local onde o ouro tinha sido encontrado. Dezenas de mangueiras de ar, magotes de bombas e brocas hidráulicas de dragas escareantes se cruzavam no fundo do rio. Mergulhadores eram esmagados em desbarrancamentos, mangueiras de ar eram cortadas propositadamente ou não, acidentes e assassinatos ocorriam quase todos os dias. Corpos de pessoas desconhecidas desciam o rio boiando, enquanto toneladas de ouro em pó, que saiam do rio fundo do rio, passavam de mão em mão até chegarem aos cofres dos grandes compradores.                 Naquele tempo costumavam-se dizer que tudo que caísse no rio virava ouro, menos os garimpeiros que viravam apenas comida de candiru. O candiru é um peixe carniceiro, com seu corpo mole e esguio penetra nos orifícios do corpo, não apenas nos cadáveres, mas também costuma entrar pelos canais urinários de quem desavisado, urina sem calça, em alguns dos rios amazonenses. Encontrar um cadáver sendo devorado por dentro pelos candirus era uma visão de fazer perder o sono, ainda hoje me pergunto qual o motivo que teria alguém para matar, amarrar com arames e jogar no rio despidos o casal que descendo a correnteza como se estivessem abraçados, passaram ao largo da nossa draga.
              O rio Madeira corre com muita pressa de chegar em Porto velho, quando alguém caia da balsa, de nada adiantava nadar contra a correnteza e se fosse durante a noite, mesmo com ajuda de uma voadeira, o resgate nem sempre tinha um final feliz.
           Eu e mais três garimpeiros trabalhávamos, por percentagem, numa draga escariante, quando o dono da draga voltando da cidade, onde fora fazer compras, esqueceu um abacaxi - como era chamado a broca, que tendo esse formato, era usada para escariar o leito do rio - num porto distante, uns oito quilômetros rio a baixo. Pediu então para mim e o Maranhão buscá-la, se é que ainda estivesse lá. Quando saímos na voadeira, uma lancha de proa chata, reforçada com cantoneiras de ferro, com motor de popa quarenta e cinco, já era quase noite. Dei a lanterna para o Maranhão que pilotava a voadeira, pedindo para que descesse mais pelo meio do rio, lembrando-lhe que as outras voadeiras costumavam subir o rio todas as noites, pela beira, em alta velocidade, quase sempre sem trazer nenhuma luz sinalizante ou lanterna, vindo das cantinas localizadas rio à baixo, trazendo homens e mulheres bêbados e drogados.
           O Maranhão, um dos maiores mentirosos que conheci não me deu ouvidos e falando sem parar, seguiu costeando a margem sem se preocupar em manter a lanterna acesa permanentemente, ligando-a apenas de vez em quando, para ver a que distância estávamos da barranca. Eu como de costume estava sentado na borda da canoa, ao lado do piloto, para poder ir conversando durante a viagem.  Á noite sempre faz um friozinho no rio, eu estava sem camisa e num certo momento fechei os olhos, me encolhendo um pouco e sem prestar atenção no que o Maranhão falava, pensei  nas outras voadeiras, que poderiam por acaso estar vindo em nossa direção, em meio a escuridão.  Então no exato momento em que segurei com forças as bordas de alumínio da voadeira, como se estivesse prevendo o pior, ouvi o ruído do impacto de ferro contra ferro e os gritos dos passageiros da outra voadeira, enquanto eu praticamente voava da popa para a proa da canoa, arrancado do lugar onde estava pela violência do choque.
         Enquanto caia no assoalho da canoa, de relance vi o que me pareceu ser as pernas de uma mulher caindo no rio. Cessaram então os ruídos dos dois motores, e em meio à escuridão total se ouvia apenas gemidos e gritos. O Maranhão, deitado no assoalho da lancha segurando uma das pernas, também gritava de dor. Ainda meio tonto fui até a popa e dei partida no motor, levando a lancha até a barranca, onde havia uma balsa iluminada. Pulei para dentro da balsa levando a corda da voadeira e estava amarrando-a a um caibro quando a outra voadeira acidentada encostou ao lado da nossa. Entre as pessoas feridas gemendo e falando sem parar, homens armados bêbados e descontrolados, perguntavam aos gritos para o Maranhão quem estava pilotando a nossa voadeira. Nesse momento ouvimos pedidos de socorro vindos da escuridão, o piloto acelerou a lancha seguindo ao encontro dos gritos, aproveitando a oportunidade, ligamos a nossa voadeira e fugimos rapidamente do local antes que a outra lancha retornasse, temendo sermos mortos. Na volta o Maranhão mentiroso ainda com medo dos outros acidentados, não pilotou mais a voadeira, fingindo estar muito ferido. 
            Ao chegarmos na nossa draga foi que percebi a gravidade dos meus ferimentos, as palmas de minhas mãos tinham se rasgado nas bordas irregulares da lancha e fiquei cuspindo sangue por alguns dias, com uma ou duas costelas fraturadas no choque contra os bancos de alumínio, o Maranhão sofrera apenas um corte profundo na canela, causado por um martelo de trocar o pino da hélice, que não o impediria de pilotar a voadeira. Só então que percebi que ele, sabendo qual seria a reação dos ocupantes bêbados e drogados da outra lancha acidentada, covardemente tentou jogar a culpa do acidente em mim, se tivéssemos sido alcançados pelos outros. Por alguns dias, antes de ser concertada, a voadeira retorcida, em conseqüência do acidente, ficou escondida em baixo da draga. Passamos alguns dias apreensivos, alguns comentários sobre o acidente ainda se ouvia no rio, mas logo outros novos acidentes aconteceram e o nosso foi esquecido, sem que fôssemos identificados e sem vinganças.
           Era verão, o rio secava rapidamente e quando apoitamos a draga na barranca para soldarmos a lança quebrada, ficamos encalhados. No outro dia, bem cedo, descemos o rio à procura de um rebocador, antes que as águas baixassem mais, nos deixando na praia sem poder trabalhar. Contratamos um rebocador que chegou ao local onde estava a draga encalhada em algumas horas, pilotado por dois jovens cujos olhos brilhosos e vermelhos demostravam que seguramente não dormiam há muitos dias. O piloto do rebocador ficou no canal do rio, acelerando contra a correnteza e esperando, enquanto eu na voadeira, levava o cabo de aço que estava preso à draga, alcançando a ponta do cabo para o homem do convés. Enquanto o homem enrolava o cabo num dos ferros da popa, procurei me afastar o mais depressa possível com a voadeira, ao mesmo tempo em que o piloto do rebocador sem esperar que eu me afastasse, acelerou bruscamente o rebocador, esticando o cabo de aço e prendendo minhas pernas contra a proteção de ferro do motor de popa e sem ouvir os gritos de avisos dos outros garimpeiros da draga, continuou a me arrastar pelas pernas contra a correnteza, quase alagando a voadeira. Por sorte o segundo homem que estava no convés do rebocador,conseguiu soltar o cabo, poucos segundos antes das minhas pernas ou eu mesmo ter virado almoço de candiru. Mais tarde na draga, sem sequelas e eufórico por continuar vivendo, não me incomodava muito os puxões do alicate extraindo os pedaços de pontas de  fios do cabo de aço, que penetraram nas curvas das minhas pernas escoriadas.
               Algumas toneladas de ouro foram garimpadas nas águas turvas do rio Madeira durante aqueles anos. Centenas de máquinas, de diversos tipos e tamanhos, escariavam o leito do rio dia e noite, tornando seus proprietários, vindos de vários estados e até mesmo do exterior, mais ricos ou mais pobres, da noite para o dia. O ouro tinha um preço bom na época e todos os dias chegavam ao rio caminhões carregados de equipamentos para as novas dragas que estavam sendo montadas a cima e á baixo das cachoeiras. Estranhos inexperientes vindos de longe, com febre de ouro, trabalhavam sem parar nas barrancas de sol a sol, desesperados para terminarem a montagem de suas dragas, não se preocupando com as ferradas dos mosquitos transmissores de malária, nem com a qualidade da água que bebiam dos igarapés, completamente cegos pelo brilho do metal, não percebiam que muitas vezes a malária chegava primeiro que o sonho amarelo dourado, se tornando a cada dia mais anêmico esverdeado. Às vezes o ouro era encontrado a cima das cachoeiras e dezenas  dragas, auxiliadas por várias voadeiras subiam. Depois de algum tempo, mais ouro tornava a ser encontrado á baixo das cachoeiras e as dragas tornavam a descer, algumas inteiras outras em pedaços, outras vezes ainda a voadeira que rebocava uma draga do lado de cima da cachoeira quebrava, e voadeira e draga despencavam cachoeira a baixo, desmontando-se em mil pedaços, como aconteceu com a draga do homem cujo corpo nunca foi encontrado. Homem jovem, pai dedicado de um filho pequeno e marido feliz de uma mulher chamada Rosa, mais umas dessas Rosas, que a cachoeira dos tamburetes mudou pra sempre o destino, o mesmo e inexplicável senhor destino, que cruzaria os nossos caminhos alguns anos depois.

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