Um homem chamado Pedro Maranhão procurou o
Oliveira, irmão da Rosinha, dizendo saber de um ouro de aluvião no sopé de uma
montanha, próxima ao rio Pacacibí, em território Ianomâmi. Eram tempos difíceis
aqueles últimos anos de garimpo, o Oliveira tinha uma pequena lancheria ao lado
de uma fábrica, onde trabalhava com sua mulher, contrariado, lembrando sempre
dos tempos bons do garimpo, quando se apostava meio quilo de ouro numa rodada
de cartas.
Eu tava rodado, sem trabalho,
depois de ter me separado de um grupo de garimpeiros de diamantes, com os quais
eu já não tinha nenhuma afinidade e sem alternativa não pensei duas vezes antes de
entrar para a mata novamente. O Oliveira conseguiu uma voadeira de alumínio,
emprestada por seu pai, juntamos o pouco dinheiro que tínhamos para comprar as
provisões, alimentos, munição, ferramentas, combustível, cachaça, alguns poucos
remédios contra a malária e depois de alguns dias botamos a voadeira na água,
bebendo no bico pra comemorar, a primeira garrafa de cachaça das muitas que beberíamos durante
a viagem, subindo o rio Urariquera.
O Pedro Maranhão e o amazonense, que era bem mais velho que nós e cujo nome não lembro, não bebiam pinga, sobrando mais para o Oliveira e para mim, que nem imaginava que seria essa a última vez na vida que beberia álcool sem passar mal e sentir dores de cabeça por muitos dias.
O Pedro Maranhão e o amazonense, que era bem mais velho que nós e cujo nome não lembro, não bebiam pinga, sobrando mais para o Oliveira e para mim, que nem imaginava que seria essa a última vez na vida que beberia álcool sem passar mal e sentir dores de cabeça por muitos dias.
Navegávamos o dia inteiro
olhando a paisagem do verão selvagem e deslumbrante nas margens do Urariquera,
com suas praias de areias brancas contornando o verde escuro da floresta
gigantesca e silenciosa. Patos selvagens, pousados nos remansos, voavam
apressados fugindo da voadeira barulhenta. Nas árvores das barrancas alguns
camaleões comendo folhas novas ao sol, assustados com a nossa aproximação
rápida, se laçavam no rio para as piranhas famintas. Bandos barulhentos de
araras coloridas cruzavam o céu azul, já quase chegando a qualquer lugar, com
seus vôos ligeiros, enquanto as borboletas azuis, amarelas, verdes e de todas
as cores esvoaçavam tontas sobre o rio, voando em círculos, sem chegar nunca a lugar algum e das águas mansas dos remansos, gigantescas pétalas cor de rosa emergiam ocasionalmente, em
forma de botos. Ao entardecer, o vento encrespando as águas do estirão douradas pelo sol poente, refletiam milhões de fagulhas, que se apagavam
lentamente ao cair da noite, cedendo lugar para as primeiras estrelas que
surgiam brilhando tímidas, no final de mais um dia de viagem,recém adormecido.
Aproveitávamos os velhos acampamentos feitos
por pescadores e garimpeiros, para passarmos à noite. Sempre encontrávamos alguma
caça durante o dia, nas margens do rio, garantindo um jantar farto, antes de
esticar o corpo cansado da viagem na rede e de madrugada antes do jacu cantar
anunciando o novo dia, o café já estava cheirando na chaleira enfumaçada.
Depois de desarmar as redes, recolher e acondicionar as coisa do acampamento
novamente na voadeira, seguíamos viagem, sentando encolhidos nos bancos
de alumínio, sentindo na pele o ventinho frio e úmido da madrugada.
Quem sobe o Urariquera avista de
longe a grande ilha verde de Maraca dividindo as águas do rio ianomâmi, la entramos
a direita no rio Santa Rosa, famoso por seus velhos garimpos e amaldiçoado
pelas suas malárias malignas. Depois de horas de viagem costeando a grande ilha
que ainda seguia em frente a perder de vista, chegamos na tranquila foz do
Pacacibi, cujas águas límpidas e calmas escondem dos viajantes desavisados a
violência de suas corredeiras rio acima.
Naquela época o garimpo já
estava em decadência em Roraima, estavam demarcando o território Ianomâmi e
expulsando os garimpeiros das florestas. Apenas duas ou três voadeiras faziam
linha da capital para o garimpo Santa Rosa, levando e trazendo os últimos
garimpeiros que teimavam em procurar ouro no velho garimpo blefado, onde a
malária era inevitável. Outrora, assim que descoberto, garimpeiros entravam e
saiam, varando pela mata, costeando as barrancas do rio ou pagavam passagens nas lanchas
abarrotadas de víveres, ferramentas e passageiros que subiam e desciam as
corredeiras perigosamente. Cruzes de madeiras fincadas nas barrancas e
apodrecidas pelo tempo, ainda testemunhavam em silêncio o triste destino
daqueles que nunca voltaram de lá, onde foram enterrados para sempre, junto com
os seus sonhos, no meio da mata, mortos por ladrões que ficavam a espreita na
beira das picadas, pelos próprios companheiros sem escrúpulos que desejavam
levar para casa mais ouro do que tinham garimpado, abatidos sem piedade pela
febre cruel das terríveis malarias, ou despedaçados contra as pedras nas curvas
das cachoeiras dentro das voadeiras de alumínio, que mesmo sendo pilotadas por
exímios pilotos, que acredito talvez fossem os melhores do mundo, mas que nem
sempre podiam evitar os acidentes naquelas corredeiras, onde nem se pode
acreditar. que uma canoa lotada de passageiros possa subir ou descer. O exímio piloto, coloca entre o casco da voadeira e a rabeta do motor de popa, uma tora de
madeira, erguendo ao máximo a hélice, evitando o choque com as pedras do leito raso. pilotando de pé, para poder ver em frente, por cima dos passageiros que sentados
e curvados ao máximo agarram-se uns aos outros. Sentado na proa o co-piloto,
que deve ter muita experiência e rapidez, leva nas mãos uma vara de madeira
longa, com a qual procura desviar-se das pedras, enquanto a voadeira passa pelas
corredeiras numa velocidade incrível que deve ser sempre superior a da própria
água, pois de outro modo não seria possível mudar de direção evitando o choque
contra as pedras ou contra barrancas nas curvas que o rio sempre faz descendo a
serra. Subir as corredeiras é tão perigoso quanto descer, qualquer deslize pode
ser fatal, a voadeira depois de entrar na corredeira não pode mais voltar,
assim como também não pode ladear, a proa deve se manter sempre em sentido
contrário á correnteza e quando não tem por onde passar, o piloto experiente,
represa as águas entre duas pedras com a própria canoa, mantendo uma aceleração
firme e constante até que a água represada tenha profundidade suficiente para a canoa seguir,
esperando sempre que o motor não falhe nestas horas de aflição e medo. Mas nem
sempre o rio perde a disputa para a canoa e as cruzes de madeira nas barrancas das cachoeiras e os pedaços de alumínio,
arrancados das canoas vencidas pelo rio, ainda devem estar por la, nos remansos, testemunhando o azar de quem por lá buscava a sorte.
O irmão do oliveira era um destes poucos pilotos exímios que subia as corredeiras, mas o Oliveira não se arriscava e em
cada cachoeira perigosa nós descarregávamos a nossa canoa e subíamos por terra
levando pela mata o rancho, as ferramentas e a canoa. Numa destas cachoeiras,
enquanto subíamos andando pela margem, desceu uma das voadeiras lotada de passageiros
passando rápido a uns dez metros de onde estávamos. Um dos passageiros que
descia encolhido e com os olhos arregalados de medo era o Bitelo, concunhado
nosso na época. Gritamos seu nome diversas vezes, mas mesmo estando com os
olhos esbugalhados ele não viu e nem nos ouviu gritando e acenando da barranca.
Pobre Bitelo branquelo que além de não saber nadar, era sem duvida o garimpeiro
mais medroso de toda Amazônia. Até hoje eu ainda não sei de onde ele tirou
coragem para subir o rio Santa Rosa de voadeira.
Almoçamos um dia com um grupo de
garimpeiros que encontramos no caminho descendo o rio, varando a pé pela mata.
Tinham feito fogo para assar peixes, perto de umas cruzes amarradas com
cipós, que marcavam o local onde alguns garimpeiros tinham sido mortos há algum
tempo atrás. O Oliveira conhecia todos naquele garimpo onde teve uma cantina por anos,
no tempo em que o ouro do Santa Rosa tinha sido recém descoberto. Tinha fartura
de peixes por lá e quando seguimos viagem, levamos junto alguns já assados para o
jantar.
O Oliveira deu dois gritos feios de
desespero naquela viagem, o segundo grito foi me chamando, pedindo socorro
quando sofreu um ataque repentino de malária, no acampamento da montanha do
Pedro Maranhão, mas o primeiro foi naquela tarde, quando resolvemos puxar a
canoa por uma corredeira á cima. O Pedrão seguia na frente puxando a corda,
enquanto eu o Oliveira e o velho empurrávamos a canoa por um estreito canal,
entre a barranca e as pedras. O rio tinha mesmo muitos peixes e alguns batiam
em nossas pernas descendo a corredeira, nas praias rasas também descíamos
algumas vezes da canoa para empurrá-la, onde o perigo maior era o de pisar nas
arraias camufladas na areia, mas naquela tarde quando o Oliveira gritou
desesperado soltando-se da canoa, tinha sido eletrocutado por um poraquê. Por
sorte nem o choque elétrico e nem a cachoeira eram muito fortes, o caboclo
moreno ficou branco por uns tempos e meio tonto, mas logo nós já estávamos navegando
novamente, rindo do que acontecera e bebendo mais cachaça.
MATEIROS
Menos sorte teve o goiano em outro
anoitecer, no vale do rio Urariquera, quando eu, o Bernardo, o Loiro e ele
descemos a serra, onde uma tucandeira tinha me picado no pé, em meio a um
bambuzal espinhoso, de onde custamos muito a sair. Já era tarde quando descendo
a montanha, deparamos com um alagado que teríamos que atravessar antes de
anoitecer. Com o jamanxim na cabeça e água pela cintura seguíamos os quatro,
sem rumo, procurando terra firme enquanto o sol se escondia apressado por
detrás da montanha, com mais medo da noite que se aproximava silenciosa, que do
jacaré e da sucuriju caminhávamos apressados pelo pântano, que parecia não ter
fim. Quando avistamos uns arbustos maiores no início da mata, onde provavelmente haveria
terra seca, em desespero para sair do pântano nos separamos, eu e o Bernardo seguimos nos arrastando
por baixo dos arbustos em direção a mata, enquanto o louro e o goiano foram em
outra direção e já estávamos quase alcançando a terra firme, na mata alta,
quando ouvimos os dois gritando desesperados. Largando os jamaxins e com os facões em punho corremos o
mais depressa possível na direção deles, chegando lá encontramos o goiano
deitado na lama com o rosto completamente roxo e respirando com dificuldade
sendo auxiliado pelo louro, depois de ter levado um choque do poraquê e
engolido a língua.
Perto dali, já em terra firme, ao lado do braço morto de um rio, montamos
o nosso acampamento, na escuridão da noite que começara ruim e terminaria pior
ainda. Não fizemos fogo nem jantamos naquela noite, cansados depois de um dia
turbulento, tomamos banho de balde para limpar a lama do pântano, pois ninguém
se atreveu a entrar no sombrio e profundo sangradouro de águas negras, ao lado
do acampamento, onde se podia observar entre os galhos de árvores caídas movimentos
suspeitos na água que chegavam em ondas até a superfície e que seguramente não eram produzidos
por peixes ou outros bichos pequenos. O goiano, depois do susto passado com o puraquê, já
estava bem, descansando na rede, eu que tinha sido ferrado pela tucandeira e
passei toda a tarde com dores terríveis na perna, também não falei inglês com
se esperava e não mais sentia dores na perna.
Parecia que a noite seria calma
como quase todas as outras, em que se pode acender uma vela, colocar na ponta
de um pau rachado com o facão que ela queimará toda, sem que nem uma brisa a
apague, porque não venta na mata fechada. Mas quem anda pela mata encontra
clareiras enormes com arvores arrancadas pelas raízes e que até aquela noite eu
não sabia ao certo o que causava aquelas derrubadas.
A exaustão causada pelas
turbulências do dia passado, trouxe um sono de pedra pra nós naquela noite e sem nos
preocuparmos com onça alguma, adormecemos sem saber quem foi o último. Mas o
último a acordar sobressaltado, naquela mesma noite fui eu, ouvindo os outros
chamando meu nome desesperadamente, em meio a um vendaval ensurdecedor que
passou por nós quebrando e arrancando árvores, sem que tivéssemos um lugar para
correr ou nos abrigar. Na escuridão total da mata nos agarramos nas árvores
mais grossas, escutando o barulho ensurdecedor do vento e da chuva, em meio a
trovões, relâmpagos e estrondo de arvores e galhos se partindo.
Sem aviso, assim como chegou, o vento
se foi, mas o efeito macaco nos cipós esticados pelas árvores caídas, quebrando
as copas e galhos das outras árvores, continuou perigosamente até amanhecer o
dia, quando o sol iluminou pela primeira vez o chão úmido da floresta sem a mata , que fora
repartida ao meio, como uma vasta cabeleira verde, pelos ventos da noite
passada.
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