sábado, 12 de maio de 2012

História de Onça - Parte XVI

URARIQUERA                                                                                                                                                                                                                                        

         Um homem chamado Pedro Maranhão procurou o Oliveira, irmão da Rosinha, dizendo saber de um ouro de aluvião no sopé de uma montanha, próxima ao rio Pacacibí, em território Ianomâmi. Eram tempos difíceis aqueles últimos anos de garimpo, o Oliveira tinha uma pequena lancheria ao lado de uma fábrica, onde trabalhava com sua mulher, contrariado, lembrando sempre dos tempos bons do garimpo, quando se apostava meio quilo de ouro numa rodada de cartas.
      Eu tava rodado, sem trabalho, depois de ter me separado de um grupo de garimpeiros de diamantes, com os quais eu já não tinha nenhuma afinidade e sem alternativa não pensei duas vezes antes de entrar para a mata novamente. O Oliveira conseguiu uma voadeira de alumínio, emprestada por seu pai, juntamos o pouco dinheiro que tínhamos para comprar as provisões, alimentos, munição, ferramentas, combustível, cachaça, alguns poucos remédios contra a malária e depois de alguns dias botamos a voadeira na água, bebendo no bico pra comemorar, a primeira garrafa de cachaça das muitas que beberíamos durante a viagem, subindo o rio Urariquera.    
         O Pedro Maranhão e o amazonense, que era bem mais velho que nós e cujo nome não lembro, não bebiam pinga, sobrando mais para o Oliveira e para mim, que nem imaginava que seria essa a última vez na vida que beberia álcool sem passar mal e sentir dores de cabeça por muitos dias.     
        Navegávamos o dia inteiro olhando a paisagem do verão selvagem e deslumbrante nas margens do Urariquera, com suas praias de areias brancas contornando o verde escuro da floresta gigantesca e silenciosa. Patos selvagens, pousados nos remansos, voavam apressados fugindo da voadeira barulhenta. Nas árvores das barrancas alguns camaleões comendo folhas novas ao sol, assustados com a nossa aproximação rápida, se laçavam no rio para as piranhas famintas. Bandos barulhentos de araras coloridas cruzavam o céu azul, já quase chegando a qualquer lugar, com seus vôos ligeiros, enquanto as borboletas azuis, amarelas, verdes e de todas as cores esvoaçavam tontas sobre o rio, voando em círculos, sem chegar nunca a lugar algum e das águas mansas dos remansos,  gigantescas pétalas cor de rosa emergiam ocasionalmente,  em forma de botos. Ao entardecer, o vento encrespando as águas do estirão douradas pelo sol poente, refletiam milhões de fagulhas, que se apagavam lentamente ao cair da noite, cedendo lugar para as primeiras estrelas que surgiam brilhando tímidas, no final de mais um dia de viagem,recém adormecido.
           Aproveitávamos os velhos acampamentos feitos por pescadores e garimpeiros, para passarmos à noite. Sempre encontrávamos alguma caça durante o dia, nas margens do rio, garantindo um jantar farto, antes de esticar o corpo cansado da viagem na rede e de madrugada antes do jacu cantar anunciando o novo dia, o café já estava cheirando na chaleira enfumaçada. Depois de desarmar as redes, recolher e acondicionar as coisa do acampamento novamente na voadeira, seguíamos viagem, sentando encolhidos nos bancos de alumínio, sentindo na pele o ventinho frio e úmido da madrugada.
          Quem sobe o Urariquera avista de longe a grande ilha verde de Maraca dividindo as águas do rio ianomâmi, la entramos a direita no rio Santa Rosa, famoso por seus velhos garimpos e amaldiçoado pelas suas malárias malignas. Depois de horas de viagem costeando a grande ilha que ainda seguia em frente a perder de vista, chegamos na tranquila foz do Pacacibi, cujas águas límpidas e calmas escondem dos viajantes desavisados a violência de suas corredeiras rio acima.
         Naquela época o garimpo já estava em decadência em Roraima, estavam demarcando o território Ianomâmi e expulsando os garimpeiros das florestas. Apenas duas ou três voadeiras faziam linha da capital para o garimpo Santa Rosa, levando e trazendo os últimos garimpeiros que teimavam em procurar ouro no velho garimpo blefado, onde a malária era inevitável. Outrora, assim que descoberto, garimpeiros entravam e saiam, varando pela mata, costeando as barrancas do rio ou pagavam passagens nas lanchas abarrotadas de víveres, ferramentas e passageiros que subiam e desciam as corredeiras perigosamente. Cruzes de madeiras fincadas nas barrancas e apodrecidas pelo tempo, ainda testemunhavam em silêncio o triste destino daqueles que nunca voltaram de lá, onde foram enterrados para sempre, junto com os seus sonhos, no meio da mata, mortos por ladrões que ficavam a espreita na beira das picadas, pelos próprios companheiros sem escrúpulos que desejavam levar para casa mais ouro do que tinham garimpado, abatidos sem piedade pela febre cruel das terríveis malarias, ou despedaçados contra as pedras nas curvas das cachoeiras dentro das voadeiras de alumínio, que mesmo sendo pilotadas por exímios pilotos, que acredito talvez fossem os melhores do mundo, mas que nem sempre podiam evitar os acidentes naquelas corredeiras, onde nem se pode acreditar. que uma canoa lotada de passageiros possa subir ou descer. O exímio piloto, coloca entre o casco da voadeira e a rabeta do motor de popa, uma tora de madeira, erguendo ao máximo a hélice, evitando o choque com as pedras do leito raso. pilotando de pé, para poder ver em frente, por cima dos passageiros que sentados e curvados ao máximo agarram-se uns aos outros. Sentado na proa o co-piloto, que deve ter muita experiência e rapidez, leva nas mãos uma vara de madeira longa, com a qual procura desviar-se  das pedras, enquanto a voadeira passa pelas corredeiras numa velocidade incrível que deve ser sempre superior a da própria água, pois de outro modo não seria possível mudar de direção evitando o choque contra as pedras ou contra barrancas nas curvas que o rio sempre faz descendo a serra.                  Subir as corredeiras é tão perigoso quanto descer, qualquer deslize pode ser fatal, a voadeira depois de entrar na corredeira não pode mais voltar, assim como também não pode ladear, a proa deve se manter sempre em sentido contrário á correnteza e quando não tem por onde passar, o piloto experiente, represa as águas entre duas pedras com a própria canoa, mantendo uma aceleração firme e constante até que a água represada tenha profundidade suficiente para a canoa seguir, esperando sempre que o motor não falhe nestas horas de aflição e medo. Mas nem sempre o rio perde a disputa para a canoa e as cruzes de madeira nas barrancas das cachoeiras e os pedaços de alumínio, arrancados das canoas vencidas pelo rio, ainda devem estar por la, nos remansos, testemunhando o azar de quem por lá buscava a sorte.
            O irmão do oliveira era um destes poucos pilotos exímios que subia as corredeiras, mas o Oliveira não se arriscava e em cada cachoeira perigosa nós descarregávamos a nossa canoa e subíamos por terra levando pela mata o rancho, as ferramentas e a canoa. Numa destas cachoeiras, enquanto subíamos andando pela margem, desceu uma das voadeiras lotada de passageiros passando rápido a uns dez metros de onde estávamos. Um dos passageiros que descia encolhido e com os olhos arregalados de medo era o Bitelo, concunhado nosso na época. Gritamos seu nome diversas vezes, mas mesmo estando com os olhos esbugalhados ele não viu e nem nos ouviu gritando e acenando da barranca. Pobre Bitelo branquelo que além de não saber nadar, era sem duvida o garimpeiro mais medroso de toda Amazônia. Até hoje eu ainda não sei de onde ele tirou coragem para subir o rio Santa Rosa de voadeira.
             Almoçamos um dia com um grupo de garimpeiros que encontramos no caminho descendo o rio, varando a pé pela mata. Tinham feito fogo para assar peixes, perto de umas cruzes amarradas com cipós, que marcavam o local onde alguns garimpeiros tinham sido mortos há algum tempo atrás. O Oliveira conhecia todos naquele garimpo onde teve uma cantina por anos, no tempo em que o ouro do Santa Rosa tinha sido recém descoberto. Tinha fartura de peixes por lá e quando seguimos viagem, levamos junto alguns já assados para o jantar.
          O Oliveira deu dois gritos feios de desespero naquela viagem, o segundo grito foi me chamando, pedindo socorro quando sofreu um ataque repentino de malária, no acampamento da montanha do Pedro Maranhão, mas o primeiro foi naquela tarde, quando resolvemos puxar a canoa por uma corredeira á cima. O Pedrão seguia na frente puxando a corda, enquanto eu o Oliveira e o velho empurrávamos a canoa por um estreito canal, entre a barranca e as pedras. O rio tinha mesmo muitos peixes e alguns batiam em nossas pernas descendo a corredeira, nas praias rasas também descíamos algumas vezes da canoa para empurrá-la, onde o perigo maior era o de pisar nas arraias camufladas na areia, mas naquela tarde quando o Oliveira gritou desesperado soltando-se da canoa, tinha sido eletrocutado por um poraquê. Por sorte nem o choque elétrico e nem a cachoeira eram muito fortes, o caboclo moreno ficou branco por uns tempos e meio tonto, mas logo nós já estávamos navegando novamente, rindo do que acontecera e bebendo mais cachaça.
           
                                 MATEIROS

              Menos sorte teve o goiano em outro anoitecer, no vale do rio Urariquera, quando eu, o Bernardo, o Loiro e ele descemos a serra, onde uma tucandeira tinha me picado no pé, em meio a um bambuzal espinhoso, de onde custamos muito a sair. Já era tarde quando descendo a montanha, deparamos com um alagado que teríamos que atravessar antes de anoitecer. Com o jamanxim na cabeça e água pela cintura seguíamos os quatro, sem rumo, procurando terra firme enquanto o sol se escondia apressado por detrás da montanha, com mais medo da noite que se aproximava silenciosa, que do jacaré e da sucuriju caminhávamos apressados pelo pântano, que parecia não ter fim. Quando avistamos uns arbustos maiores no início da mata, onde provavelmente haveria terra seca, em desespero para sair do pântano nos separamos, eu e o Bernardo seguimos nos arrastando por baixo dos arbustos em direção a mata, enquanto o louro e o goiano foram em outra direção e já estávamos quase alcançando a terra firme, na mata alta, quando ouvimos os dois gritando desesperados. Largando os jamaxins e com os facões em punho corremos o mais depressa possível na direção deles, chegando lá encontramos o goiano deitado na lama com o rosto completamente roxo e respirando com dificuldade sendo auxiliado pelo louro, depois de ter levado um choque do poraquê e engolido a língua.

         Perto dali, já em terra firme, ao lado do braço morto de um rio, montamos o nosso acampamento, na escuridão da noite que começara ruim e terminaria pior ainda. Não fizemos fogo nem jantamos naquela noite, cansados depois de um dia turbulento, tomamos banho de balde para limpar a lama do pântano, pois ninguém se atreveu a entrar no sombrio e profundo sangradouro de águas negras, ao lado do acampamento, onde se podia observar entre os galhos de árvores caídas movimentos suspeitos na água que chegavam em ondas até a superfície e que seguramente não eram produzidos por peixes ou outros bichos pequenos. O goiano, depois do susto passado com o puraquê, já estava bem, descansando na rede, eu que tinha sido ferrado pela tucandeira e passei toda a tarde com dores terríveis na perna, também não falei inglês com se esperava e não mais sentia dores na perna.
             Parecia que a noite seria calma como quase todas as outras, em que se pode acender uma vela, colocar na ponta de um pau rachado com o facão que ela queimará toda, sem que nem uma brisa a apague, porque não venta na mata fechada. Mas quem anda pela mata encontra clareiras enormes com arvores arrancadas pelas raízes e que até aquela noite eu não sabia ao certo o que causava aquelas derrubadas.
                 A exaustão causada pelas turbulências do dia passado, trouxe um sono de pedra pra nós naquela noite e sem nos preocuparmos com onça alguma, adormecemos sem saber quem foi o último. Mas o último a acordar sobressaltado, naquela mesma noite fui eu, ouvindo os outros chamando meu nome desesperadamente, em meio a um vendaval ensurdecedor que passou por nós quebrando e arrancando árvores, sem que tivéssemos um lugar para correr ou nos abrigar. Na escuridão total da mata nos agarramos nas árvores mais grossas, escutando o barulho ensurdecedor do vento e da chuva, em meio a trovões, relâmpagos e estrondo de arvores e galhos se partindo.
          Sem aviso, assim como chegou, o vento se foi, mas o efeito macaco nos cipós esticados pelas árvores caídas, quebrando as copas e galhos das outras árvores, continuou perigosamente até amanhecer o dia, quando o sol iluminou pela primeira vez o chão úmido da floresta sem a mata , que fora repartida ao meio, como uma vasta cabeleira verde, pelos ventos da noite passada.

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