domingo, 29 de janeiro de 2012

História de Onça - Parte I



 

História de onça
                     Num sonolento crepúsculo, adormeceu o tempo, fechando os olhos verdes sobre a vastidão da floresta Amazônica. As horas velhas caídas como folhas mortas, acumularam-se desordenadas sobre a capa do lacrau, por onde rasteja sem pressa a surucucu pico de jaca.                    
           
              Despertei escutando as gritarias dos cuambas que passaram a noite numa árvore perto do nosso acampamento, o dia amanhecera nublado e talvez os macacos estivessem prevendo chuva para mais tarde, pensei. Como era de costume fui o primeiro a sair da rede, eu era o cozinheiro e depois de lavar os olhos no igarapé, lasquei a lenha verde e iniciei o fogo, abanando com o sonhá a fogueira molhada, até que as primeiras chamas teimosas aparecessem, só mais tarde quando o café de chaleira estava cheirando forte pela mata, é que os outros três levantaram espreguiçando-se. Depois de fumar um porronco, tomar café e comer com farinha o resto do sarapatel de jabuti que sobrara do jantar, afiamos os facões e deixamos o acampamento abrindo picada pela mata para o norte, rumo às cabeceiras do iniquiaré, onde um dos muitos mentirosos que andavam pela Amazônia, afirmara que em um mapa secreto que teve acesso no exterior, marcava a presença de minérios na região, inclusive ouro e diamantes. 
             Naqueles tempos quando a febre do ouro estava no auge, morria na mata mais garimpeiros que gente, como costumavam falar os caboclos. De doenças, de tiro, de fome, perdidos na mata, picados por cobras, devorados por feras, acidentados no trabalho ou durante as longas caminhadas pela floresta subindo e descendo montanhas, atravessando rios carregando o jamanxim pesando quarenta quilos ou mais, preso ás costas, abarrotado de víveres e ferramentas. Contavam por lá, que quando um desses desafortunados morreu indo direto para o céu, não encontrou acomodações, pois o céu estava lotado de garimpeiros. O falecido recém chegado resolveu o problema mentindo para os colegas que no inferno tinham recém descoberto uma grota rica, tinha sido encontrado lá muito ouro de aluvião, no leito antigo de um igarapé. Com a notícia do achado, aos poucos o céu foi esvaziando e em uma semana já não havia mais nenhum garimpeiro desocupado por la. O mentiroso estava muito bem acomodado, escolhera o melhor lugar do céu para montar seu acampamento. Passaram-se alguns dias e como ninguém voltava do inferno, o mentiroso depois de pensar um poco, resolveu desatar a rede, botou as tralhas na boróca e foi para o inferno também. -Sabe lá se não tem ouro mesmo ! Pensou ele.  
       Assim nos quatro seguíamos abrindo picada pela mata, dia após dia, a procura do ouro que possivelmente só existisse no mapa imaginário que o mentiroso inventara. Por outro lado, pra quem anda procurando aquilo que não perdeu, todo lugar serve, como costumava dizer o Bernardo.


        O Louro, era o mais jovem de nós quatro, geralmente seguia na frente marcando, iniciando  com o facão a picada e levando a espingarda para abater de surpresa alguma possível caça, enquanto nós fazendo mais barulho seguíamos atrás, alargando com os facões o caminho por onde passaríamos no outro dia trazendo  as ferramentas e o rancho. Naquela manhã antes de sair do acampamento, constatei que minha pistola tinha apenas quatro balas no tambor, com preguiça não recarreguei. Tão logo deixamos o acampamento, um jacu descuidado pousou numa árvore sobre nós, e para garantir o jantar eu o alvejei. Ficando com apenas três cartuchos lamentei não ter recarregado a arma antes de sair do acampamento, apenas por precaução, pois nenhum de nós poderia prever o que aconteceria naquele dia.



Seguimos abrindo caminho pela mata úmida e escura daquele dia nublado por muitas horas, pensávamos estar seguindo na direção desejada, mas acabamos fazendo uma grande curva e voltado ao mesmo lugar por onde tínhamos passado horas antes. Tempo e trabalho perdidos, sem o sol para orientar, mesmo os mateiros mais experientes podem perder a direção. Muitos foram aqueles que não voltaram mais da mata depois de virar a cabeça por culpa de algum cipó - não se deve nunca passar por baixo de algumas espécies de cipós- ou desorientados pelas travessuras de algum curupira, mapinguari, ou por causa do caboclo da mata, zangado por não ter ganhado um pouco de fumo.     Sentados na encruzilhada das picadas nós quatro fumávamos enquanto discutíamos qual seria a direção certa. Lembramos então que havia uma montanha naquela região chamada peito de moça com a qual poderíamos nos orientar. Para saber onde estava a tal montanha o Mineiro subiu numa palmeira, da palmeira passou para uma grande árvore que tinha a copa mais alta e de onde poderia ver a peito de moça.Lá de cima avistando a montanha ele gritava apontando a direção, gritou muitas vezes, quebrando galhos da árvore e jogando na direção da montanha, pois não podíamos vê-lo sobre as copas e tão pouco para onde estava apontando.  Depois de toda a gritaria, quando o Mineiro desceu da  desceu da árvore e estávamos decidindo se seguíamos abrindo picada ou voltávamos para o acampamento para esperar pelo sol na manhã seguinte, ouvimos de repente um grito assustador vindo da direção da picada recém aberta, que ecoou pela floresta surpreendendo-nos, O som gutural,alto,grotesco e assustador era desconhecido até mesmo para o Bernardo, mateiro experiente que vivia na selva há muitos anos e que por um momento pensou tratar-se de um ataque de índios hostis, ou talvez fosse o mapinguari...



Conheci o Bernardo por volta do ano de 1986 em Boa Vista, tinha a pele clara e esverdeada de velhas malárias e de andar por muitos meses na sombra da mata, cabelos e barba longos, personalidade e corpo forte aparentando ser bem maior do que realmente era. No pé direito tinha uma ferida grande que purgava um liquido amarelado, onde os fungos que trouxe da selva se multiplicavam comendo a pele e que lhe impedia de usar sapatos. Ele estava na cidade fazendo compras de ferramentas e alimentos que seriam lançados, jogados de um avião nas cabeceiras do rio Auris, região por onde ele estava há anos pesquisando minérios. Mantinha amizade com os ianomâmis da região, pois naquela época era permitido a qualquer brasileiro e estrangeiros entrar na floresta, hoje os brasileiros não tem permissão. Por intermédio de um conhecido que estava financiando a pesquisa, fui apresentado ao Bernardo e já no dia seguinte fui ajudá-lo a acondicionar em vários sacos resistentes, preenchidos com cascas de arroz os alimentos, que seriam jogados do avião numa clareira aberta na floresta. 
      Numa segunda feira de manhã, depois de três horas e meia de viagem, um pequeno e velho avião que tinha uma das portas amarrada com arames e apenas o banco do piloto, lotado de garimpeiros sentados no assoalho, mergulhava perigosamente por entre as nuvens que encobriam o topo das montanhas verdes que separam o Brasil da Venezuela e pousava na pista esburacada existente na pequena aldeia ianomâmi, na margem esquerda do rio Auris. 
   Foi esta a primeira vez que vi os verdadeiros senhores das matas em seu próprio mundo, despidos de todo o desnecessário, sorridentes e hospitaleiros, correndo curiosos em direção ao avião para receber em seus domínios aqueles que alem de cachaça, fumo e doenças, nada mais tinham para oferecer. A aldeia era formada por uns quinze tapiris enfileirados na margem do rio, no lado oposto localizava-se a pista, uma faixa extensa de gramado verde em meio à clareira, onde crianças brincavam de flechar os gafanhotos gigantes que vinham da mata. A casa do tuxaua era primeira e a maior de todas, tinha uma cobertura grande de folhas de ubim, onde eram realizados os eventos e festas. O tuxaua, homem forte e calado, saía ao amanhecer para a mata, onde passava o tempo escavando uma tora de itaúba, estava naqueles dias construindo uma canoa. Ao entardecer quando voltava á aldeia permanecia em sua choupana, ao contrário dos outros índios nunca nos procurava sem necessidade. Com sua autoridade incontestável, o velho e imponente tuxaua liderava a sua aldeia, servindo como exemplo de comportamento para os demais, quando necessário por intermédio de seu filho que falava português e era amigo do Bernardo, entrava em contato com os garimpeiros, dando ou negando permissões para pesquisar minérios na região.

Dormimos a primeira noite na aldeia, em um barraco ao lado da choupana do tuxaua, depois de termos combinado com o filho do chefe que pela manhã seguiríamos rio acima em direção a clareira onde fora lançado, jogado do avião os víveres e as ferramentas que o Bernardo comprara na cidade. Deitado na rede, sem poder dormir com dor de cabeça eu observava os índios que depois de terem bebido uma caixa de cachaça trazida por nós no avião, continuavam a beber caxiri, alguns completamente bêbados, outros, aqueles mais jovens que foram proibidos de beber e de fumar pelo tuxaua, apenas sorriam observando de perto o “pizeiro”, que como falavam os garimpeiros, fazer pizeiro é andar em volta de alguém ou de alguma coisa, pegadas deixadas por quem andou várias vezes trilhando pelo mesmo local, assim como os índios estavam fazendo ali,  pizeiro em volta da garrafa.

Já era tarde da noite quando decidi sair da rede e fui olhar a festa que acontecia na choupana do tuxaua, onde estava toda a aldeia reunida sentados em circulo no chão em volta de dois índios, um deles cantava e dançava, enquanto o segundo contava histórias que faziam todos rirem, a música repetitiva que o índio cantava sem parar, causava um transe em todos nós, claro que eu não entendia nada que estava sendo contado e encenado pelos dois índios, mas a música repetindo sempre as mesmas palavras, recuouo-recuá, recuouo-recuá, recuouo-recuá... Os dois índios andando pra frente e pra traz, dançando sem parar, as gargalhadas e gritos nos intervalos de cada história, também me fazia sorrir. Foi uma festa muito boa e nunca esqueci aquela música, que mais tarde quando estava na mata com o Auáide e o Taiquiú, costumava cantar recuouo-recuá, sem saber o que estava dizendo, apenas para ver os dois indiozinhos sorrindo..

Quando o Cujubim da aldeia, que tinha amarrado no pescoço uma fita vermelha, para ser diferenciado dos pássaros selvagens, cantou batendo asas no teto da nossa maloca, o novo dia já estava amanhecendo. Os índios iniciando suas atividades costumeiras não demonstravam nenhum sinal de cansaço ou embriagues, o rio corria tranqüilo com as águas frias e cristalinas vindas das montanhas verdes da Venezuela e da festa da noite passada, já não havia mais nenhum vestígio, como se o rio tivesse levado embora enquanto dormíamos, todas as lembranças da noite passada.  Em pouco tempo o sol vermelho como os olhos de mau agouro do Cujubim, iluminava toda a aldeia e nós subíamos o rio Auris remando as três canoas grandes, lotadas de garimpeiros e índios. Lembro bem que nossa canoa foi a única que não venceu a primeira corredeira, então os índios mandaram-me parar de remar, eu resignado obedeci calado. Depois quando a nossa canoa subiu na segunda tentativa  a corredeira, aprendi que um mau remador além de não ajudar, atrapalha muito os outros remadores. Por volta da meia tarde, deixamos as canoas na margem direita do rio e seguimos andando pela mata, foram talvez uns quatro dias de caminhada, mas praticamente o dobro para mim, pois tinha que voltar quando todos descansavam, para buscar o jamanxim do velho Piauí, um amigo. que passando dos cinqüenta e com calçados inadequados quase não podia mais andar carregando o seu próprio peso. Numa destas vezes, quando eu voltava pela picada trazendo o jamaxim carregado pela testeira, quase correndo e de cabaça baixa,  ouvi surpreso uns murmúrios á minha frente. Parando de repente, levantei a cabeça e vi juntos a um grande tronco de árvore caído ao lado da picada uns dez guerreiros ianomâmis desconhecidos, armados com arcos, flechas e zarabatanas. A nudez  daqueles indígenas era a mais perfeita das camuflagem, tinham os cabelos da cor da pele, a pele da cor da sombra da mata e nem mesmo seus olhos miúdos fitando-me admirados denunciava suas presenças, porque também eram olhos escuros como a sombra da floresta. Disfarçando o susto, fiz um gesto com a cabeça saudando-os e segui em frente meio sem jeito, percebendo em seus olhares aguçados um lampejo de gracejo ou desaprovação. Com certeza eles me olhando pensavam que aquela não era praia do estranho que passava andando desajeitado, acenando com a cabeça numa saudação meia envergonhada.

JAMANCHIM


Ninguém jamais esquece os primeiros encontros com os homens da floresta, alguma memória genética ressuscita no coração de quem tem essa oportunidade de voltar ao passado e como num sonho que virasse realidade presenciar o nascimento de uma criança em meio à floresta, longe da aldeia, por onde estavam acampados caçando apenas o pai a mãe e o cunhado. O pequeno corpo moreno da criança recém nascida, deitada na rede no meio da mata dormindo tranquila, enquanto sua mãe enfumaçava as carnes de caças e depois envolvia em folhas verdes para conservá-las por muitos dias frescas, até retornarem para a aldeia. Contrastando com o gigantismos das árvores, o pequeno abrigo provisório construído com varas, cipós e folhas de palmeiras abrigando mãe e filho, evidenciava  a fragilidade daquelas duas pequenas vidas, ou talvez fosse o contrario...Na imensidão verde da floresta onde a onça pintada esturra nas madrugadas escuras.