sábado, 25 de fevereiro de 2012

História de Onça - Parte V



                                                                 CAPELOBO 

               O capelobo, nome que o Bernardo costumava repetir muitas vezes referindo-se a perigosa entidade da floresta, que atacava de surpresa os garimpeiros que estivessem desacompanhados bateando distraído, acocorados na margem de algum igarapé de águas frias e límpidas que nasce no grotão sombrio da encosta da serra e vem serpenteando por quilômetros entre as raízes das sumaúmas, do jatobá e da paracuuba, trazendo do centro da terra as fagulhas douradas do minério cobiçado, que girando sem parar, vai aos poucos amarelando o ferro negro do fundo da bateia, acompanhando os movimentos compassados dos braços ágeis e prendendo a atenção do garimpeiro solitário, que nem percebe a criatura de unhas grandes que se aproxima sorrateira pisando macio no chão úmido da floresta, buscando a distância certa, para então saltar sobre a vítima distraída e arrancar suas vísceras, como se fosse o abraço mortal de um tamanduá bandeira.  O capelobo contam os mateiros, é o índio enlouquecido que abandona ou é expulso de sua aldeia e com o passar do tempo vivendo solitário na floresta, morando em tocas escavadas entre raízes de árvores, vai aos poucos transformando-se no capelobo e seus gritos horripilantes podem ser ouvidos ao cair da noite por quem se aventura no coração da floresta em busca de ouro, e muitos daqueles foram e nunca mais voltaram, talvez tivessem tido seus sonhos dilacerados pelas unhas afiadas de algum capelobo enlouquecido, como aquele que estava rondando aquela aldeia ianomâmi e que os índios acreditavam tratar-se do monstro devorador de almas que algum religioso mentiroso tenha lhes falado, dizendo chamar-se satanás .






         Amarramos nossa canoa no porto e acompanhados pelos índios subimos a barranca do rio e fomos até a aldeia que também parecia estar em festa naquele dia, pois os habitantes estavam todos enfeitados com seus adornos de algodão, penas e plumas coloridas decorando seus corpos nus pintados com tintas de cores festivas, em tons vivos de vermelho, azul e preto. Os brincos confeccionados com as penas negras retiradas dos topetes dos mutuns, pendurados nas orelhas morenas das índias mais jovens, contrastavam com a brancura de seus dentes, que seus sorrisos infantis punham a mostra enquanto observavam os estranhos recém chegados, fazendo comentários talvez sobre nossa aparência, que eu supunha não serem dos mais favoráveis, possível razão de seus sorrisos travessos, pois os índios são realmente muito bonitos, principalmente os mais jovens que não sofreram ainda as conseqüências impostas pelo rigoroso contato diário com os intempéries da grande floreta tropical que causando envelhecimento precoce em alguns, dificulta saber-se com exatidão a idade dos demais.  
       Na aldeia do Roberto, onde o tuxaua seu pai aparentava ter uns sessenta anos. A mais velha das suas esposas parecia ter cem anos, era muito magra e andava pela aldeia caminhando lentamente com seu corpo descarnado e a pele totalmente enrugada, vestindo apenas uma meia tanga feita de fios de algodão presa a cintura tapando seu sexo. Mas o que realmente impressionava a quem estivesse observando a velha mulher índia seminua passando, era, além da postura ereta do seu corpo envelhecido, a dignidade demonstrada em seu semblante e a naturalidade com que se movimentava entre os mais jovens da aldeia. Sem coroas de ouro, sem vestidos de pérolas, altiva a velha rainha ianomâmi, vestindo o figurino criado pelo próprio tempo, mantinha com dignidade a sua incontestável majestade.         
          Fomos guiados pelos índios da aldeia do demônio até uma clareira onde havia a plantação de uma espécie de gramínea, cujos longos e retilíneos talos são usados na confecção de flechas. A plantação semelhante a um bambuzal ou a um canavial, com aproximadamente uns mil metros quadrados de área, era um esconderijo perfeito para o capelobo enfurecido, que gritando com voz rouca, corria de um lado ao outro sem poder ser visto por ninguém. Quando nós nos aproximávamos do local onde estava escondido gritando, ele percebendo a nossa presença corria para o outro lado, fazendo muito barulho como uma anta em fuga, quebrando folhas secas e talos da plantação de flecha dos índios, depois de se distanciar de nós ele permanecia em silêncio por alguns minutos, então de repente se punha a gritar palavras em ianomâmi desconhecidas para nós, exceto a palavra rabucá, que já conhecíamos e conseguimos entender depois dele a ter repetido por várias vezes. 
   Nunca soube o motivo pelo qual os índios queriam que nós matássemos aquele capelobo, pois muito antes dos religiosos terem associado à imagem do índio enlouquecido ao demônio, eles por certo já rondavam as aldeias, talvez aquele tivesse atacado algum membro da tribo deles, alguma criança ou mulher indefesa quem sabe. É sabido que os ianomâmi são muito valentes quando necessário e protegem muito bem os membros de suas famílias e de seus grupos, então por qual motivo não teriam eles mesmo atacado o capelobo, talvez fosse por superstição, ou talvez soubessem eles que o capelobo, o mapinguari, o curupira, enfim, todos os nossos demônios, assim como todos os nossos deuses, não morrerão nunca antes de nós mesmos. Assim sendo, nenhum ianomâmi sofreria conseqüência alguma se houvesse acontecido um confronto entre os estranhos desimportantes e o demônio da floresta, que continuava gritando sem parar a palavra rabucá quando retornamos para a aldeia. Sem ter matado e nem ao menos avistado o tal satanás ianomâmi, que possivelmente tenha ficado satisfeito depois de comer o rabucá que eu pedi para o tuxaua mandar alguém colocar perto do local onde o capelobo se encontrava, isso depois de ter acreditado que o tuxaua compreendera as palavras que eu falei em seu idioma, tentando explicar-lhe que o capelobo não era o satanás, mas sim um índio doente com a cabeça e a barriga morta e que por este motivo nos não iríamos matá-lo, sendo assim, o melhor a fazer seria dar o rabucá que ele tanto pedia gritando em sua língua, panela, comida, panela de comida, rabucá!rabucá!




           RABUCÁ
          

sábado, 18 de fevereiro de 2012

História de Onça - Parte IV


LIBÉLULA
           
            Deixei a aldeia no clarear do dia na manhã seguinte, seguindo por uma trilha usada pelos índios fui em direção às montanhas que podiam ser avistadas da pista de pouso, andando de vagar evitando fazer barulho, na esperança de surpreender alguma caça. Libélulas maiores que uma mão aberta, confundiam seus predadores num bailado hipnotizante, esvoaçando entre as árvores vertiginosamente, evidenciando os quatros círculos coloridos localizados nas extremidades de suas quatro grandes asas transparentes, numa seqüência interminável de movimentos frenéticos , sumindo e reaparecendo nas sombras da floresta. Os quatro círculos coloridos hipnotizantes, localizados propositalmente nas extremidades de cada uma das quatro asas do inseto, tornavam a grande libélula praticamente invisíveis aos olhos de seus predadores. 
       A floresta é um mundo magnífico, onde a magia é realidade e a realidade é a própria mágica que pode surgir a qualquer momento e em qualquer lugar, basta sentar-se sobre uma árvore caída e esperar imóvel e em silêncio até que se refaça a normalidade. Em pouco tempo a selva esquece o estranho recém chegado e tudo volta à rotina, os pequenos pássaros coloridos que denunciavam a chegada do intruso com seus cantos estridentes foram cansando e se afastaram, o bando de araras recomeça a algazarra na copa da sumaúma, expondo sua plumagem, azul, amarelo, vermelho,verde e branco, então a pequena e sorrateira cutia corre com seus pés ligeiros sobre as folhas caídas até a castanheira mais próxima para roer com seu dentes fortes e afiados as castanhas maduras que caíram na noite passada. Em poucos minutos a mata está repleta de criaturas de todas as cores, de todos os tamanhos e de todas as formas e dezenas de borboletas azuis pousam nas areias brancas que a última chuva depositou na curva do igarapé.



           
          
               Depois de andar por horas naquela manhã e ter errado um tiro na única caça que encontrei, decidi voltar para aldeia, com fome, mas resignado com a possibilidade de ter sido aquele, o dia da caça. No caminho de volta, ao lado de uma árvore podre caída sobre a picada encontrei os restos de um verme gigante desconhecido, que teria sido morto talvez pelos índios, ou por algum predador, o animal tinha o diâmetro do meu braço, o corpo era anelado como são algumas minhocas e vermes, a cabeça e a cauda não estavam no local, mas pelas partes que se encontravam por perto da árvore, calculei que inteiro teria em torno de um metro de comprimento. O animal desconhecido lembrou-me então da pequena cobra colorida em anéis azuis, vermelhos, amarelos e pretos, semelhante à cobra coral, que aproximou-se do acampamento saindo da mata serpenteando lateralmente e quando eu a mostrei para um índio velho que estava por perto, ele fazendo sinais estressados mandou que a matasse imediatamente, fazendo-se entender por mímicas que a cobra era mortal, observando-a depois de morta, constatei que não era uma cobra coral comum, mais parecia uma minhoca colorida, uma salamandra sem pernas, cobra de vidro, cobra sega, sei lá.                      
         Mesmos os velhos caboclos amazonenses nativos, aqueles nascidos nos tapiris assoalhados com paxiúba, construídos dependurados na barranca de algum rio embrenhado na mata, se deparam às vezes com animais desconhecidos, caboclos como o velho Raimundo que quando ainda jovem teve o pé mastigado por um jacaré, depois de cair dentro do curral que estava despescando. O curral, um cercado construído com longas varas cravadas no leito barrento do rio durante o período da estiagem, amarradas umas as outras com cipós as varas formam uma armadilha para os peixes, que depois de entrarem, não conseguem mais sair. Todos os dias o caboclo rema contra a correnteza, muitas vezes por horas para despescar o curral. Empoleirado sobre as varas, algumas já estando velhas e apodrecidas, o caboclo utilizando o arpão ou a zagaia flecha os peixes aprisionados no cercado. No dia em que uma das varas quebrou, o Raimundo caiu dentro do curral e o jacaré que estava preso e ferido com o arpão abocanhou o seu pé. Sendo naquele tempo jovem e forte o caboclo Raimundo não soltou as mãos do cercado e mantendo-se fora da água, girava o corpo alternado as mãos fortes nas varas do jirau, acompanhando os movimentos giratórios que o jacaré fazia tentando arrancar seu pé. Depois de muito tempo lutando contra a morte certa, por algum motivo o jacaré abriu a boca, e o Raimundo já quase sem sangue voltou para a canoa que desceu na bubuia rio a baixo, sem que ele tivesse forças para remar.
    Já estava quase anoitecendo quando foi encontrado por outro pescador conhecido que o levou de volta para casa, onde passou meses sem poder andar.  O velho Raimundo, que nasceu e viveu a vida toda na floresta, pescando de lago em lago desde menino, não soube dizer qual peixe era aquele que eu pesquei um dia quando estava tarrafeando no lago onde o velho morava. Ninguém nem mesmo os mais velhos mateiros conhecem todos os habitantes da grande floresta.    Quando eu descrevi como era o bicho que subindo á um palmo da superfície do rio me olhou nos olhos, ele respondeu apontando com o nariz para o lago e dizendo que tem muito bicho por aí que a gente nunca viu.                                    
               Foi no rio Urariquera que eu vi o que nunca soube o que era, numa pista de pouso perto da ilha de Maracá, onde passei uns quatro ou cinco dias esperando a chegada de um avião para ir até a cidade fazer compras. Na barranca do rio havia uma pequena balsa de garimpo abandonada e bem ao lado do local onde a balsa estava atracada, o declive suave da barranca favorecia o acesso ao rio, por onde todas as tardes nós descíamos para tomar banho . Numa manhã eu estava pescando piranhas na balsa, quando observei bolhas de ar subindo á superfície, imaginei que poderia ser um poraquê, pirarucu, uma sucuri ou algum outro animal aquático que estivesse subindo ou descendo o rio, continuei pescando quando percebi uma sombra emergindo lentamente em direção à superfície, parando a mais ou menos um palmo de profundidade , dois olhos enormes me observaram por alguns segundos antes de mergulhar e desaparecer nas águas do Urariquera.  Havia escamas ou placas como as de um casco de tartaruga, na cabeça grande do animal, que deveria ser talvez do tamanho de uma melancia, a partir daquela manhã, resolvi sempre tomar banho de balde, com os pés bem seguros em cima da balsa abandonada.

   

                                                             SUCURIJU
           
              Quando regressei à aldeia Ianomâmi naquela manhã, estava sendo esperado para ir com os demais a aldeia Maiogom, onde seria realizada uma festa, boa notícia para quem estava com fome e não tinha caçado nada. Aconteciam com freqüência festas nas aldeias indígenas, por não saber falar o idioma ianomâmi, nunca soube ao certo os motivos das festas, a não ser de uma a qual fomos convidados, que aconteceu na aldeia do Roberto e que soube que se repetia todos os anos em memória aos familiares mortos. Eu estava enfermo e debilitado demais para acompanhar os outros ao local do evento e quando os meus companheiros voltaram, relataram que os índios tinham triturado os ossos dos seus parentes mortos. que foram retirados de algum lugar onde estavam depositados há muito tempo na mata, depois que de reduzidos a pó, os ossos foram adicionados aos ingredientes que estavam sendo cozidos em uma grande panela, formando uma espécie de sopa que foi consumida por todos os índios presentes durante a cerimônia alegre, onde a ressurreição prometida por tantos religiosos, era a mais evidente realidade.
            A festança Maiongong. realizou-se num grande barracão com paredes de barro, cujo telhado de palha era sustentado por uma complexa e perfeita estrutura de madeira unidas por cipós que causaria admiração a qualquer engenheiro civilizado.  Sobre duas ou três mesas grandes foram colocados os alimentos em recipientes contendo uma grande variedade de carnes, peixes e beijus de mandioca. Algumas das carnes servidas podiam ser facilmente identificadas, como por exemplo a de paca que apresenta uma fina e tenra camada externa de gordura e a de macacos que geralmente a cabeça é servida junto com as outras partes do corpo, a carne de anta é semelhante à de gado, e quem souber identificar pode escolher o que for de sua preferência e apreciar o sabor original de cada alimento sem nenhum tempero e insosso, pois os índios não utilizam sal nas suas alimentações. Para nós foi colocado sobre a mesa um recipiente contendo sal cristalizado, extraído talvez de algum lambedouro, existente nas cercanias da aldeia. O lambedouro é local onde por décadas  os animais vão suprir a carência deste mineral, lambendo o chão e escavando o barranco da grota que no decorrer do tempo às vezes se transforma numa gruta, onde predadores de duas ou mais pernas costumam armar suas emboscadas na calada da noite.
            O caxiri já estava sendo bebido à vontade muito antes de sermos convidados á mesa, e como é normal em todas as festas da mata ou da cidade, muitos já estavam mareados, bêbados, conversando todos ao mesmo tempo, em meio a gritos e gargalhadas. A algazarra era tão grande que acredito que assim como eu, eles também já não estavam entendendo nenhuma palavra do que diziam. Um índio Maiogom apontando para mim, perguntou se eu era o tuxaua do grupo, respondi apontando para o Bernardo que estava próximo, repetindo  a palavra tuxaua,indicando que ele era o chefe. Então quando fomos convidados para comer, fomos posicionados em volta da mesa conforme a nossa posição dentro de cada grupo. O tuxaua Paulo no centro, no seu lado direito o Roberto o filho de outro tuxaua, em seguida o Bernardo eu e o velho Branco. Do lado esquerdo do tuxaua Paulo o chefe dos Maiogons, quem eu soube mais tarde que não era considerado tuxaua, pois os Maiogons tinham sua aldeia localizada dentro do território Ianomâmi e seriam submissos ao tuxaua Ianomâmi Paulo, fato que me causou estranheza, considerando que há inimizade entre os próprios grupos de Ianomâmi, que costumam roubar mulheres de aldeias inimigas, e existem confrontos ocasionais entre aldeias,como o que aconteceu causando a morte de um índio morador da aldeia em que eu estava na época. Ele teria sido flechado na mata por ianomâmi roximi, mau, como me falou um dos índios da aldeia. Nesta mesma aldeia onde passei alguns dias, tive oportunidade de presenciar outros acontecimentos, como a tentativa frustrada do sequestro de uma índia que remava sua canoa em frente à aldeia na outra margem do rio, quando um Ianomâmi inimigo que estava à espreita na mata, saltou da barranca sobre a canoa tentado capturar a jovem índia, que se desvencilhando do atacante nadou aos gritos em direção à aldeia. A revolta foi geral quando ouvimos os gritos desesperados da jovem, muita correria desordenada e enquanto uns corriam buscando suas armas, sem saber ao certo o que estava ocorrendo, outros seguiam em direção ao rio, alguns dos índios nossos conhecidos nos procuraram pedindo ajuda, falando em seu idioma coisas que nós não podíamos compreender e que somente mais tarde depois do acontecido, foi que ficamos sabendo do que se tratava e que era normal acontecer de mulheres serem capturadas por guerreiros de tribos inimigas. Este costume primitivo, por mais cruel que possa parecer, é na realidade uma forma pela qual a natureza fortalece a espécie, as mulheres capturadas por guerreiros desconhecidos, vindos de regiões distantes, deverão gerar filhos mais saldáveis, a natureza é sábia e sempre alcança seus objetivos, filhos saudáveis, pais felizes.
            Nesta mesma aldeia, numa noite em que eu o velho Branco e o Bernardo dormíamos na choupana de um índio conhecido, outro acontecimento quebrou a rotina. A casa em que estávamos tinha dois cômodos, no primeiro dormiam o casal de índios, nós os três hospedes dormíamos em nossas redes no segundo cômodo, uma abertura sem porta separava os dois compartimentos e foi por esta abertura que uma mulher gritando alucinada entrou correndo inesperadamente, agarrando-se a minha rede como se estivesse pedindo socorro. Eu estava doente naqueles dias, meu estômago estava paralisado por conseqüência da ultima alimentação. Havíamos passado muitos dias sem alimentos na mata e no caminho de volta encontramos alguns índios conhecidos que tinham acabado de caçar uma anta, ganhamos um grande pedaço de carne que eu cozinhei apenas com água e sal. Estava morrendo de fome e antes da carne estar cozida comi um grande pedaço, quase sem mastigar, na manhã seguinte o meu estômago já tinha dobrado de tamanho e ficou assim inchado por muitos dias, o mal estar me tirava o sono e durante as noites enquanto os outros dormiam, eu observava as inúmeras baratas que saíam das fendas existentes nas paredes de barro da casa do índio, em busca de alimentos e se fartavam comendo a massa de mandioca ralada que na manhã seguinte seria o nosso desjejum depois de preparado o ichêm. Foi numa destas noites que uma índia entrou na casa gritando desesperada, agarrando-se a minha rede, falando sem parar palavras que eu não podia entender e antes que tivéssemos tempo de sair das redes, um índio que a perseguia entrou correndo e pegando a pobre mulher pelos cabelos puxou-a com tamanha violência que ela depois de bater com a cabeça no portal foi cair no chão já fora do barraco.  Antes que pudéssemos interferir, pois o índio continuava batendo na mulher caida, surgiram de repente meia dúzia ou mais de velhas índias armadas com grandes cassetetes e numa gritaria ensurdecedora puseram-se a bater sem trégua nas costas e na cabeça do agressor, que sem alternativas foi obrigado desistir da agressão e fugir correndo para a mata. Depois de passado algum tempo, pouco a pouco as conversas foram diminuindo e a aldeia adormeceu novamente. Fiquei imaginando o que teria acontecido, acreditando que na manhã seguinte haveria alguma repercussão em relação ao fato ocorrido na noite passada. Quando amanheceu foi como se nada tivesse acontecido, tudo normal, tudo em paz na ensolarada manhã da aldeia Ianomâmi. Passado alguns dias soube que tratava-se de um caso de adultério e fui aos poucos percebendo que quanto mais eu aprendia sobre os índios, mais encontrava semelhanças com os não índios.
            Já na aldeia Maiogom, o que quebrou a rotina, naquele dia de festa durante o almoço, foi o índio que chegou gritando e apontando para o mato e imediatamente terminou a festa. Os índios numa correria louca buscaram suas armas e se embrenharam na mata, sem que nós soubéssemos o que estava acontecendo. Eu segui os índios até o rio, onde alguns ainda estavam aguardando o retorno da canoa para atravessar e junto com eles se encontrava o Roberto, que me falou que uma vara muito grande de porcos queixada estava passando perto da aldeia.  Pensei em ir junto com eles na caçada, mas quando a canoa retornou eu percebi que não era bem vindo, talvez porque sendo um estranho poderia atrapalhar mais do que ajudar. Só retornei a aldeia, onde além de nós os três visitantes, haviam ficado apenas mulheres, crianças e alguns velhos que já não podiam correr atrás dos porcos pela floresta e a festa já dos índios tinha acabado. 
       Eu tinha comprado na cidade um mapa geográfico daquela região do Aurís onde nós estávamos, mas quando o nosso papel de fazer cigarros terminou, de pedacinho em pedacinho acabamos fumando todo o nosso mapa e há dias também tinha acabado também o nosso fumo, foi então que nesta tarde ganhamos dos índios velhos da aldeia Maiogom, folhas de fumo secas e uma película fina parecida com papel, que é retirada da parte interna da casca de uma árvore e voltamos para a aldeia ianomâmi fumando folhas de tabaco enroladas em cascas de árvores e tossindo muito. Na manhã seguinte partimos em direção as cabeceiras do Auris, levando na canoa grande as ferramentas, alguns quilos de feijão velho, que o tuxaua encontrou na casa dos estrangeiros e raízes de macaxeira, trocadas com os Maiogons por uma faca e uma lanterna.
      Era muito bonito o rio de águas claras serpenteando em meio às árvores da floresta, lembrando um imenso espelho que refletia todas as cores, do céu e da terra, por onde a canoa silenciosa passava, deslizando suavemente pela estrada de vidro que atravessa aquele mundo verde, onde o tempo sonolento adormeceu no início, e não se fez meio nem fim. O cigarro feito com folhas de fumo e casca de árvore, causava uma cuspideira doida, assim como o fumo mascado pelos Ianomâmi, que é uma espécie de chiclete que passa de boca em boca. Um índio masca o fumo por algum tempo, coloca em algum lugar visível, onde outro quando encontrar sairá mascando e cuspindo. O velho Branco entre nós era o único que não fumava, remando calado o amazonense olhava o rio passando, mergulhado talvez em suas lembranças, o velho carpinteiro parecia às vezes nem estar escutando o que os outros falavam, só levantava a cabeça quando estávamos nos aproximando de alguma aldeia localizada rio acima e os índios batiam com o remo no casco da canoa, o som se propagando pelo rio avisava os moradores que estávamos nos aproximando. Então enquanto passávamos pela aldeia todos corriam até a barranca do rio, mulheres homens e crianças, que talvez nunca antes tivessem visto um homem branco.  O velho carpinteiro era deveras branco de mais para um amazonense, embora seus cabelos lisos e seus traços caboclos não escondessem suas origens, tendo um pé no velho mundo e outro na aldeia. Vivia o velho de garimpo em garimpo com suas ferramentas, serrando taboas para construir as caixas onde o cascalho é lavado durante o processo de extração do minério. Geralmente um garimpo surge a partir do momento em que o pesquisador encontra ouro em quantidade suficiente que viabilize o processo de extração, a dificuldade de acesso e a distância destes locais inviabilizam qualquer outro processo de mineração que não seja manual. Utilizando pás e picaretas os garimpeiros escavam o solo até encontrarem o cascalho aurífero, que depois de retirado e depositado ao lado da escavação será lavado numa espécie de peneira, que separa as pedras maiores, chamada de ralo, que é posicionada sobre a parte superior da caixa de madeira, esta é forrada com carpetes ou sacos de estopas e inclinada num ângulo que permita que apenas os minerais mais pesados fiquem retidos, enquanto os minerais mais leves passam através da caixa levados pela água que é despejada com cuidado, de balde em balde, pois todo o trabalho de semanas pode se perder nesta última etapa que exige perícia, paciência e um bom carpinteiro especialista em construir caixas de lavar cascalhos, utilizando apenas as ferramentas disponíveis para transformar uma árvore em taboas.  Esta era a especialidade do velho Branco, que por ironia do destino morava numa casa de papelão construída sobre uma vala de esgoto num bairro pobre da cidade de Boa Vista. Morei com o velho por duas semanas na sua casa de papel, eram tempos difíceis aqueles e tínhamos que contar as moedas para comprar pão e ovos, que durante aquelas duas semanas eram só o que nosso dinheiro podia pagar. Numa das noites que passamos juntos no casebre de papelão, o velho que era de pouca conversa resolveu falar de seu passado, contou-me que antes de se tornar garimpeiro era proprietário de um sítio não muito distante de Manaus, na margem do rio Amazonas. Lá ele plantava e colhia tudo que necessitava e o que sobrava ele levava na canoa para vender na cidade, também pescava e armazenava os peixes capturados em uma gaiola de arames dentro do rio, onde permaneciam vivos até chegar o dia de serem levados para vender a cidade. Com o dinheiro apurado com a venda dos peixes das frutas e da farinha de mandioca, o velho Branco voltava para casa trazendo na canoa, café, açúcar, farinha de trigo, de milho, sal, sabão, roupas, etc. Enfim, voltava trazendo tudo que necessitava para passar mais uma temporada no seu sítio. Naquela época o Brasil passava por mudanças políticas e uma inflação descontrolada aumentava os juros das cadernetas de poupança e muitos pequenos agricultores vendiam suas terras e mudavam-se para as grandes cidades, iludidos pelos falsos rendimentos mensais e foi o que o velho Branco fez. Por insistência de sua ex mulher e da filha, contrariado, o velho comprou uma casa na cidade depois de vender o sítio, e em pouco tempo a inflação galopante devorou o dinheiro que tinha sido depositado no banco, a cidade grande e feroz também devorou a ingenuidade de sua mulher e da filha. Sem ter mais família, sítio e dignidade, o velho foi para o garimpo na esperança de um dia encontrar ouro, na ilusão de poder comprar de volta algum um dia, o que ainda nem sabia que já não existia mais. 
     O velho que remava de cabaça baixa, talvez percebendo que eu o estava observando, parou de remar e colocando o remo sobre os joelhos, olhou para mim e perguntou se eu sabia como o caboclo gostaria que o rio fosse, como eu não sabia, ele respondeu apontando com o remo para o meio do rio dizendo. - Que metade do rio corresse para baixo, a outra metade para cima, e no meio corresse cachaça.
                  Depois de um longo estirão o rio fazia uma curva para a esquerda e na margem direita no início da curva, os índios da aldeia que ali existia, tinham corrido  até a margem do rio para nos ver passar.  Até já tínhamos passado uns cinquenta metros da aldeia, quando um de nossos companheiros índios, depois de responder os gritos dos outros que chegavam na barranca do rio, deram meia volta na canoa e voltamos sem saber por que fomos chamados. Quando encostamos a canoa no pequeno porto da aldeia, percebemos que os índios estavam agitados, falando todos ao mesmo tempo e apontando para a aldeia, notamos que alguma coisa anormal deveria estar acontecendo por lá, e foi o Taiquiú que depois de se certificar com o tuxaua, nos fez entender o que estava acontecendo, pronunciando a palavra demônio em português e falando em ianomâmi a palavra matar, que se não me engano em ianomâmi é cebalí, ao mesmo tempo apontava para nossa espingarda, para nos fazer entender que os índios da aldeia queriam que nós matássemos algum demônio.
        


                                                       CAPELOBO
                                                      

          Na floresta, pode-se encontrar, andando por territórios indígenas, alguns sinais que são deixados propositalmente ou não em algum local visível, indicando que existe alguma aldeia nas proximidades. Flechas ou lanças cravadas em algum cupim localizado em alguma árvore, lenhas de velhas fogueiras empilhadas ao largo da picada e marcas de ferramentas cortantes nos troncos de árvores, arbustos quebrados na altura das mãos de uma pessoa, pequenas clareiras abertas na mata para o cultivo de algum alimento, e outros sinais da presença humana, que alertam o mateiro manso, que por experiência, sabe que é preciso ficar alerta e redobrar os cuidados, pois a presença de estranhos nas redondezas nem sempre é bem vinda. Além disso o perigo de que num encontro inesperado, quando a surpresa possa causar uma reação defensiva, violenta, até curiosidade excessiva, medo e estranheza pode ser fatal. Até mesmo a presença de índios inimigos no território da aldeia próxima, como aconteceu num dia em que eu e Taiquiú estávamos caçando e nós dois tínhamos andado por horas pela mata sem encontrar nenhuma caça, estávamos longe da aldeia e a mata estava muito silenciosa naquele dia, eu seguia o caçador ianomâmi em silêncio quando ele parando de repente, se pós a escutar preocupado a floresta silenciosa. Depois de algum tempo o Taiquiú virou-se para mim perguntando se o que ele estava ouvindo eram vozes de ianomâmi roxime, ianomâmi mau, inimigos. Eu não tinha escutado nada, pois os ouvidos sensíveis de Taiquiú escutavam muito longe, então ele depois de ter escutado melhor, virou-se novamente para mim e falou já tranquilizado por ter identificado as vozes longínquas.- Garimpeiros!
                                                       

sábado, 11 de fevereiro de 2012

História de Onça - Parte III

                 
       A imensidão verde da floresta Amazônica tem seus segredos e mistérios bem guardados, seja na aparente calmaria das águas límpidas dos grandes lagos desconhecidos, perdidos em meio aos igapozais intransponíveis, morada do o jacaré-açu e onde vive a cobra grande sucuriju, que faz o chão tremer quando esturra antes de cair à chuva ao entardecer, ou nas profundezas das águas barrentas dos rios que dessem as cordilheiras, quebrando barreiras, arrastando as árvores das barrancas, escavando cavernas no leito rochoso onde dorme o peixe fera, que abocanha sem piedade os imprudentes e incautos que não respeitem seus domínios. Até mesmo na sombria imensidão das terras firmes, bem lá no centro da mata, além do igapozal alagado, onde o misterioso mapinguari deixa seu rastro arredondado na terra vermelha da encosta da montanha, quebrando ao passar as árvores menores que atrapalhem seu caminho. Talvez por isso então no silêncio da noite, quando a rede se torna pequena e não se encontra jeito para tornar a dormir depois ouvir ou pensar ter ouvido algo, o pensamento do mateiro viaja longe com a saudade e as lembranças, ou até mesmo pegando carona no som distante do motor de um avião que passa la no céu, seguindo talvez para o Caribe, Europa...Sabe-se lá para onde vai, e quando o dia amanhecer já estará  chegando a outro lugar distante, aonde pessoas de roupas limpas e sapatos secos chegarão aos seus destinos, sem nunca imaginar que la embaixo dentro da mata que sobrevoaram , um caboclo sem sono, sem ouro, sem sorte e sem nada, os escutava passado lá por cima das nuvens. 
       Dormindo entre milhões de árvores, o mateiro escuta durante a noite o som que fazem ao cair às árvores velhas apodrecidas, algumas muito longe, outras nem tanto. Entrelaçadas por cipós, uma ao cair derruba a copa da outra, que derruba outra e mais outra. O caboclo chama este efeito de “macaco” e quando uma árvore cai por perto é prudente se afastar rápido, antes que caia na sua cabeça a próxima.  Assim como as árvores fazendo barulho, tem noites que é a onça pintada que fica rugindo alto, ás vezes também muito longe em algum grotão de serra, outras vezes  perto de mais, ou então é uma anta gorda que passa, fazendo barulho no ubinzal, quebrando galhos secos e revolvendo as folhas caídas que forram o chão úmido da floresta.  Quem está na rede, escutando em meio à escuridão, sem nem mesmo enxergar as próprias mãos, ás vezes imagina coisas, ou surgem lembranças de outros acontecimentos, outros lugares, outras histórias, como a do pescador de tambaqui que desceu da canoa e entrou na mata para ver passar o bicho que ele pensou tratar-se de uma anta que vinha andando pela floresta em sua direção.
            Nesta época eu estava morando em um flutuante num lago do rio Tefé, o meu vizinho mais próximo tinha comércio no seu flutuante. Comprava dos caboclos que traziam do interior, peixes secos, charque de pirarucu, castanhas, bananas e peixes lisos, sem escamas, que depois de congelados ficavam esperando na câmara fria pelo regresso do barco dos colombianos, que de tempos em tempos descia o Solimões, trazendo mercancias de la e na volta levando o nosso pescado para Letícia, que de la depois segue de avião até Bogotá na Colômbia.
        O flutuante do meu vizinho era bem grande, construído sobre as toras de açacu, que é a madeira mais leve da região, flutuava no lago suportando o peso da construção de madeira de dois andares, onde muitos dos barcos de pesca vindos de Manaus, Manacapuru e até mesmo de Belém do Pará costumavam atracar e passavam a noite esperando a vez de pegar gelo na fábrica, reabastecer ou fazer algum conserto no motor ou no casco da embarcação. Numa tarde eu estava escutando a conversa entre o dono do flutuante e o capitão de um barco pesqueiro de Manacapuru, quando o capitão falou que um de seus tripulantes tinha visto um homem muito grande caminhando pela mata, na beira de um lago localizado perto das barrancas do rio Japurá. Perguntei se o homem visto era loiro e magro, o capitão disse que não sabia ao certo como era o tal homem e me mandou perguntar ao pescador que o tinha avistado. Fui então até o barco para saber se o grandalhão que fora visto andando pela mata era o mesmo que eu conhecera em Roraima tempos atrás, quando trabalhamos juntos num garimpo ao norte do Pará, ele com mais de dois metros e vinte de altura era o garimpeiro mais alto de toda a Amazônia, e eu soube que estaria pesquisando ouro na região do rio Japurá, por isso quando o capitão falou no homem grande, pensei tratar-se daquele garimpeiro. Mas para minha surpresa o jovem caboclo pescador disse-me que não era loiro o homem grande que tinha visto, e sim peludo como um grande macaco. Fique curioso e pedi para o caboclo contar como foi esse encontro. Ele que estava atarefado remendando as malhadeiras furadas pelas mordidas de piranhas, trabalho que se repete sempre após cada pescaria , sem dar muita importância ao fato ocorrido e meio a contra gosto  me contou. Naquele dia depois de armar suas malhadeiras no lago, o tal caboclo ficou na canoa como de costume, repassando, revisando as redes, pois quando o tambaqui cai nas malhas se debate ferindo-se, o sangue atrai as piranhas que devoram rapidamente o peixe ferido junto com um bom pedaço de malhadeira, por isso o pescador atento rema silenciosamente de rede em rede, retirando os peixes recém capturados e que depois de sangrados, imobilizados com uma perfuração num local específico entre a cabeça e o corpo, são colocados na canoa, já sem risco de se debaterem e pularem para fora, tornando a voltar para o lago.. Enquanto remava de malhadeira  em malhadeira o caboclo escutou um bicho que se aproximava caminhando pela mata, curioso pensando tratar-se de uma anta o pescador remou silenciosamente até a beira do lago e descendo da canoa entrou na floresta escondendo-se atrás de alguns arbustos para ver o bicho passar. Estarrecido, espantado  o caboclo viu um homem grande despido e com o corpo coberto de pelos passar a poucos metros de onde estava escondido. Depois que o homem grande passou seguindo seu caminho, o pescador voltou correndo para a sua canoa e remou até o barco que estava apoitado na boca do lago, chamou os outros pescadores para mostrar o rastro que o homem peludo deixara ao passar pisando sobre o tronco podre de uma paxiúba caida.
            Quem vive na floresta raramente consegue ver o horizonte, sempre cercado de árvores o caboclo não enxerga longe. Mesmo quando está remando não sabe nunca o que encontrará depois da curva do rio. Quem anda na mata dia após dia, pode se surpreender  quando a chuva forte que escutou se aproximando, era na verdade o som da cachoeira de um rio desconhecido descendo de alguma serra, e outras vezes quando escuta o que imagina ser uma cachoeira é pego desprevenido pela chuvarada torrencial que chega sem aviso, ou até mesmo uma montanha ás vezes só é percebida quando se começa a subir, assim como um clarão na floresta pode ser uma clareira aberta por um vendaval ou o início de um alagado, a curva de um rio, ou as margem de um lago desconhecido. A sombra verde da floresta é um grande portal do inesperado, lendas, histórias e relatos de estranhos encontros se repetem com muitas semelhanças por toda a Amazônia, sem ninguém dar muita importância, talvez pelo fato do caboclo ser um pouco supersticioso, acreditando em curupiras, caboclos da mata, mapinguaris e até mesmo no demônio, como aquele que rondava uma aldeia e seus moradores nos chamaram para matá-lo.
             As primeiras três palavras que entendi o Taiquiú falar foram, “demônio, em português e sol e lua, em inglês”, na época achei estranho, um ianomâmi com medo do demônio e respondendo em inglês quando consegui me fazer entender que desejava saber quantos dias levaríamos para chegar, em resposta repetiu ele, sun e moon três vezes. Hoje em dia talvez seja melhor que nós caboclos caçadores de ouro, não possamos mais entrar na grande reserva ianomâmi, no vasto mundo verde do Taiquiú. Mas sempre me pergunto se aqueles que estavam lá muito antes de nós, sem nenhum embargo, falando inglês e supostamente caçando almas, utilizando-se do demônio para alcançar seus objetivos, os civilizados e gripados estrangeiros, teriam voltado também para suas casas?
            Naquela madrugada, logo que a mãe da lua parou de cantar o dia amanheceu ensolarado e nós seguimos viagem pela picada larga, no primeiro igarapé que atravessamos o Taiquiú caiu dentro, molhando a nossa farinha de mandioca que levava em seu jamaxim.  A farinha é o alimento principal do caboclo, pois além de ser leve e fácil de transportar, quando bem protegido da umidade se conserva boa para o consumo por muito tempo, e enquanto o mateiro tiver farinha e água, seguramente não morrerá de fome. A farinha misturada com suco de açaí, bacaba, buriti, patuá, ou adicionada ao leite do Amapá que é extraído da árvore que tem este nome, do mesmo modo como se extrai o látex da seringueira e que depois de bem batido e retirado toda a espuma, pode ser bebido puro ou com farinha e açúcar ,sem risco da língua ficar colada ao céu da boca. Também é usada a farinha de mandioca no saboroso arabu de ovos de tracajá, no sarapatel de fígado e ovos de jabuti, nas farofadas de carnes de caças ou mesmo consumida apenas com água e sal na ausência de outras coisas, refeição de emergência que é chamada pela caboclo de chibé. 
     Os ianomâmi fazem um beiju da mandioca que é chamado inchem e talvez pensando em aproveitar a farinha que tinha caído na água e que para nós não mais serviria o Taiquiú carregou o peso extra da farinha molhada por mais dois dias pela mata, até chegarmos à aldeia do tuxaua Paulo.                                                                                            
            Rasgando a densa vegetação por mais de quinhentos metros, uma pista de pouso muito grande, construída pelo exército perto da aldeia do tuxaua Paulo, deixava a mostra a distante cadeia montanhas verdes que se perdendo de vista em direção ao norte, parecia uma muralha existente entre a terra e as nuvens, dividindo as águas da chuva e das nascentes entre Brasil e a Venezuela. Enquanto caminhávamos pela pista seguindo em direção a aldeia, observávamos plantações de cana-de- açúcar, abacaxis e mandioca, que os índios cultivavam ao lado da pista aproveitando a clareira ensolarada que fazia doer os olhos que estavam acostumado com a sombra da floresta. O tuxaua tinha matado um macaco guariba naquela tarde e assim que chegamos ele me deu uma parte do bicho e num pequeno barraco onde passamos a noite, comemos a caça com a ultima poção de arroz que nos restava. No outro dia pela manhã, saímos para conhecer melhor os arredores da aldeia, logo nos chamou atenção uma casa civilizada construída nos arredores da aldeia, ficamos sabendo que pertencia a religiosos que estavam ausentes naqueles dias que coincidiam com a formação de um novo governo em Brasília.
            Ficamos alguns dias procurando ouro nos arredores da aldeia do tuxaua Paulo, abrindo pranchetas nas grotas, isto é, abrindo covas nos locais onde havia cascalhos, normalmente perto de córregos e igarapés em busca de ouro ou de outros minerais, que indicassem a presença de ouro nas redondezas. Estávamos otimistas no início do trabalho, encontrávamos em todas as escavações muito quartzo, muito ferro e algumas fagulhas grandes de ouro que eram recolhidas em um picuá pelos nossos guias o Taiquiú e seu amigo Auáide, quando voltávamos para a aldeia á tardinha o Bernardo sempre afirmava baseado em sua experiência que no dia seguinte encontraríamos a grota rica.
             Todos os dias pela manhã, eu o Bernardo e o velho Branco, deixávamos a aldeia e seguíamos para um novo local guiados pelos dois jovens índios em busca do ouro ianomâmi, numa manhã atravessamos o rio e depois de meia hora de caminhada encontramos outra aldeia, era uma aldeia maiongongue. Diferente das aldeias ianomâmis, essa era formada por casas grandes e muito bem construídas, parecendo uma vila no meio da floresta. Fomos muito bem recebidos na aldeia, os maiongongues ao contrário dos ianomâmi eram altos, as mulheres maiongongues usavam longos vestidos de algodão tingidos de azul e vermelho, e quando solicitadas por um dos índios da aldeia, serviram para os visitantes, dentro de cabaças limpas que traziam de suas casas a bebida feita de mandioca chamada de caxiri. Eram muitas mulheres, cada uma delas com sua cuia de caxiri e por gentileza nós bebemos uns goles de cada cuia da bebida oferecida, quando deixamos a aldeia depois de algum tempo andando pela mata, eu ainda me sentia meio tonto. Furamos umas grotas naquele dia perto da aldeia, sempre com o mesmo resultado, no fundo da bateia uma concentração de muitos minerais que indicam a provável existência de ouro na região e a presença de algumas fagulhas grandes douradas indicando que estávamos no caminho certo e que em algum lugar em meio aquelas montanhas, haveria uma concentração do metal amarelo que tem o poder de transformar quase tudo e quase todos. Nesta tarde encontramos algumas clareiras abertas já há alguns anos na mata, onde garimpeiros que utilizavam motores americanos , como se podia ver nas placas de identificação das carcaças abandonadas e em outros equipamentos estrangeiros, tinham garimpado antes de nós o ouro existente naqueles locais, mas as escavações pequenas e distantes umas das outras indicavam que o ouro extraído tinha sido pouco e que ainda não tinha sido encontrado a grota rica, o ouro daquelas montanhas perdidas ainda estava em algum lugar por la.
           Ao entardecer quando regressamos à aldeia do tuxaua Paulo, o Roberto, amigo do Bernardo efilho do tuxaua da primeira aldeia, estava nos esperando. Falou que veio para ir com os maiogons a um garimpo na Venezuela, onde de tempos em tempos eles buscavam ouro. Naquela noite combinamos com os índios que nós deveríamos subir o rio Auris, talvez mais perto das nascentes houvesse uma maior concentração de ouro, pois até aquele momento todo o nosso trabalho nos arredores da aldeia, não tinha produzido nenhum resultado, a não ser que as escavações nos deixaram convictos de que em algum grotão perdido em meio aquelas serras esquecidas pelo tempo, haveria ouro suficiente que daria para comprar os sonhos de cada um de nós.

LIBÉLULA


domingo, 5 de fevereiro de 2012

História de Onça - Parte II



                                                                        JAMANCHIM
              Ninguém jamais esquece os primeiros encontros com os homens da floresta, alguma memoria genética ressuscita no coração de quem tem essa oportunidade de voltar ao passado e como num sonho que virasse realidade presenciar o nascimento de uma criança em meio à floresta, longe da aldeia, por onde estavam acampados caçando apenas o pai a mãe e o cunhado. O pequeno corpo moreno da criança recém nascida, deitada na rede no meio da mata dormindo tranquila, enquanto sua mãe enfumaçava as carnes de caças, depois envolvia em folhas verdes para conservá-las por muitos dias frescas, até retornarem para a aldeia.  Contrastando com o gigantismos das árvores, o pequeno abrigo provisório construído com varas, cipós e folhas de palmeiras abrigando mãe e filho, evidenciava a fragilidade daquelas vidas, ou talvez fosse o contrario, a imensidão verde da floresta onde a onça pintada esturra nas madrugadas escuras percorrendo silenciosa os limites de seu território, é um mundo seleto onde somente os mais fortes e bem adaptados sobrevivem.   
            Quando chegamos à clareira, onde dias antes o avião tinha lançado o rancho e as ferramentas, ficamos sabendo que não haviam encontrado ouro algum. Os pesquisadores do Bernardo mentiram, descumprindo o que tinha sido combinado, que era de somente acender na clareira uma fogueira e acenar com uma rede vermelha para o piloto fazer o lançamento,  se houvessem encontrado ouro. Do contrário,sem aviso com a rede vermelha e fogueira, o avião deveria retornar a cidade, sem fazer o lançamento dos alimentos e ferramentas e os pesquisadores voltariam para a pista mais próxima, de onde também deveriam também retornarem para a cidade.
            O Bernardo mesmo contrariado, escutou calado as histórias de onças dos dois homens que tentavam justificar a mentira inventando outras, pois no garimpo não é aconselhável falar tudo que se pensa e sem fazer nenhuma cobrança ou reclamação deixou o acampamento no outro dia pela manhã acompanhado por dois garimpeiros, foram pesquisar umas grotas numa região mais ao leste, guiados pelo filho do tuxaua, na esperança de encontrar algum ouro de aluvião que pelo menos pagasse as despesas feita na cidade com alugueis de aviões, alimentos, ferramentas etc... Nós ficamos no acampamento da clareira esperando eles voltarem, eu preparava a comida para os garimpeiros e para alguns índios desconhecidos que sempre chegavam na hora das refeições. Tínhamos arroz, farinha de mandioca, feijão e jabá, os índios não comiam feijão, preferiam o arroz que eu cozinhava em duas panelas grandes, sendo uma  apenas para eles e bastava alguém gritar a palavra “liberou ! ” para que mesmo sem entender português soubecem que a comida estava pronta e liberada. À noite alguns índios dormiam no acampamento, armavam redes feitas de cipó titica em volta do fogo e passavam a noite levantando e colocando mais lenha na fogueira, pois naquela região montanhosa as noites eram muito frias e úmidas, mesmo para eles acostumados com o clima das cabeceiras do Auris, era difícil dormir desnudos numa rede de cipós. 
          Passaram-se alguns dias tranquilos no acampamento, até que numa inesperada manhã fomos surpreendidos por dezenas de guerreiros armados que cercavam a clareira do acampamento, gesticulando e gritando  furiosos palavras que nós não entendíamos. Ficamos apreensivos sem saber o que estava se passando e temíamos sermos atacados a qualquer momento, receosos não deixamos o acampamento durante todo aquele longo  longo dia.
            Anoitece cedo no centro da mata, faz-se um silêncio nervoso nesta hora, quando a sombra da noite chega arrastando-se silenciosa como a grande sucuriju, devorando todas as cores da floresta e despertando aqueles de hábitos noturnos que dormiam nas sombras dos grotões e que agora famintos espreitam a floresta recém anoitecida, antes de saírem com seus grandes olhos noturnos ao encalço daqueles que passaram o dia caçando e que agora aninhados, sonolentos e indefesos, escutam também antes de adormecer a noite caindo silenciosa por cima das copas das castanheiras, onde o mutum com suas azas azuladas buscou abrigo seguro para passar a noite,bem la no alto, longe do alcance das garras afiadas da suçuarana. Todos os habitantes da floresta, inclusive os mateiros, respeitam o anoitecer, a troca de guarda e em silêncio buscam o aconchego da rede depois do jantar. Somente mais tarde quando a noite já se faz absoluta, quando a paca sorrateira saiu da toca para beber água no igarapé e os macacos da noite quebram folhas e galhos secos que caem sobre a lona da barraca, é que quem espera o sono chegar conta ou escuta outros contarem mentiras que parecem verdades e verdades que parecem mentiras, coisas de outras terras, histórias do sul, do norte, do nordeste, histórias de onças ou de cobras grandes, de muito ouro ou de pouco ouro, de diamantes e de amantes, de muita sorte, de pouca sorte, de muitos sonhos e de muitas mortes.
          Estava escurecendo quando os índios que nos cercavam aproximaram-se do acampamento, na frente vinha alguém armado com uma espingarda, apreensivos esperamos o desfecho sem saber o que fazer. O índio da espingarda apresentou-se, dizendo ser o tuxaua geral da região, falando português corretamente explicou que foi chamado pelos ianomâmi da aldeia próxima, que reclamavam a cobrança da promessa feita pelos homens do Bernardo, que seria de paga-los com alimentos, facões e redes pelos serviços prestados na construção do acampamento e na abertura da clareira, tarefas que deveriam ter sido executados pelos dois homens do Bernardo e não pelos índios. Expliquei para o tuxaua o que se passava, dizendo que nós não sabíamos que os índios tinham sido enganados pelos dois homens irresponsáveis. O tuxaua repartiu os nossos alimentos com os índios, que depois de apaziguados, em silêncio voltaram para suas aldeias. 
     Depois de algum tempo - como quase sempre acontecia por lá, com aqueles garimpeiros que roubassem, mentissem ou descumprissem algum trato - fiquei sabendoque os dois garimpeiros mentirosos que enganaram os índios e o Bernardo, foram mortos, eu nunca soube ao certo como aconteceu, talvez tivessem feito outros novos inimigos, ou quem sabe tenham se encontrado no local e na hora errada com velhos inimigos.
            Paulo, o tuxaua geral da região passou aquela noite no nosso acampamento, aparentava ser boa pessoa, tranquilo e educado. Disse-me que gostaria que fôssemos pesquisar ouro nas cercanias de sua aldeia, localizada mais ao norte, quase na fronteira com a Venezuela e que ficaria conosco no acampamento esperando o regresso do Bernardo. Quando o dia amanheceu, cerca de dez ou quinze guerreiros estavam agrupados perto do acampamento, esperavam pelo tuxaua Paulo que havia combinado uma caçada no dia anterior, ele convidou-me para acompanhá-los. Saímos pela mata em fila indiana, o tuxaua ia à frente, eu, e os outros índios seguindo-nos. Os jovens índios olhavam-me curiosos enquanto seguíamos pela mata, conversavam sem parar, às vezes apontado em minha direção, alguns deles golpeavam com o facão as árvores maiores por onde passávamos marcando o caminho, ou talvez estivesse brincando de assustar, intimidar o estranho caçador branco que estavam acompanhando pela floresta. Como eu não entendia nenhuma palavra do que falavam, tentava aparentar tranquilidade, dissimulando o desconforto que aquela situação me causava, por estar acompanhado por pessoas desconhecidas no meio da floresta, talvez os mesmos que ontem cercavam o nosso acampamento raivosos.
            Em cinco minutos de voo um helicóptero percorre a distância que na selva um homem á pé pode  levar dois dias caminhando .                                                                                                    , 
Estávamos á três horas e meia de vôo mata adentro, em um avião que desenvolve em média uma velocidade de duzentos e cinquenta  quilometras por hora, em uma região cercada por montanhas e pântanos, de onde ninguém pode sair ou entrar a não ser voando, onde não se pode evitar situações adversas fugindo. No centro da mata de nada adianta correr, paciência, calma e prudência são requisitos prioritários para garantir a sobrevivência do mateiro, sendo melhor enfrentar o ataque de uma onça pintada de mãos vazias, do que dar as costas fugindo, e tanto o medo como a valentia de nada servem, para quem está no centro da mata sem ter para onde correr, prudência é sempre a melhor das armas.
            Andamos para o leste cerca de meia hora pela picada afastando-nos do acampamento, sendo eu o único de nós que olhava o sol tentando orientar-me, os índios vão e vem mata a fora como quem anda no pátio de casa, sempre sabendo por onde estão, lembrando algumas formigas que sabem sempre como voltar para o formigueiro mesmo sem existir nenhum caminho aparente.          Orientar-se na mata é uma das coisas mais difíceis para quem não nasceu na floresta, mesmo os mateiros mais experientes às vezes se perdem, viram a cabeça, como se costuma dizer por lá, eu mesmo me desorientei algumas vezes, um dia quando caminhava em meio a um bacabal, olhando para cima procurando frutos maduros, atravessei algumas vezes um igarapé que corria ziguezagueando entre as palmeiras, depois de encontrar e colher alguns frutos maduros, me dei conta de que o igarapé parecia estar correndo para o lado contrário. Claro que eu sabia que o igarapé estava correndo certo, era eu quem estava errado, desorientado, havia sol, mas de nada me adiantava saber pelo sol onde estava o norte, eu tentava sem sucesso inverter o mapa que estava de pernas pra cima dentro da minha cabeça e mesmo sabendo que deveria seguir na direção contrária a minha vontade, que seria logicamente a direção certa, não conseguia me localizar, teimando comigo mesmo. Então depois de caminhar perdido por alguns minutos encontrei a picada que nós tínhamos aberto no dia anterior, seguindo meus próprios rastros, voltei então ao acampamento, e nunca contei para os outros, com vergonha por ter me perdido, sem nenhum motivo, num dia de sol, a poucos metros do acampamento.
            Quando o tuxaua chegou a um determinado local da floresta, longe dos barulhos do nosso acampamento, separou o grupo de caçadores em dois e destacou um dos índios para acompanhar-me. - Este pequeno e hábil caçador chamado Taiquiú, seria meu companheiro e professor durante todo o tempo em que estivemos pesquisando ouro nos domínios do seu povo.-  Somente quando os dois grupos de índios entraram na mata em silêncio e que o Taiquiú seguindo em direção oposta fez sinal com sua mão pequena me chamando para que eu o acompanhasse, foi que percebi que não havia motivos para outras preocupações, estava tudo tranquilo, seria apenas uma caçada normal sem piores  consequências exceto para as caças, isso se fosse por acaso o dia do caçador, pois na imensidão da selva amazônica com toda a sua exuberância e diversidade, ao contrário do que se possa imaginar não é lugar de farturas e quem vive na mata deve saber aproveitar tudo de tudo, nada pode ser desperdiçado, pois nunca se sabe quando e onde será encontrada a próxima refeição.  Naquele dia eu caminhava pela mata seguindo os passos do Taiquiú que ia à frente, em silêncio, escutando sons que eu não escutava, percebendo coisas que eu não percebia, recolhendo em um bambu que trazia pendurado no pescoço diversos tipos de larvas de insetos encontrados no caminho, quando havia alguma cachopa de marimbondos em algum arbusto, ele mandava eu me afastar, cortando o galho com um golpe rápido saia correndo pela mata arrastando a cachopa para dispersar os marimbondos, depois quando voltava vinha retirando as larvas brancas de dentro dos casulos, enrolava em folhas verdes e cuidadosamente acondicionava no bambu. Também recolhia outras larvas existentes em madeiras em decomposição ou escalava gigantescas árvores com ajuda da peia, - corda improvisada feita com o arbusto que estivesse mais próximo do local - para coletar marandovás enormes que constroem um casulo grande parecido com papel, preso ao caule da árvore, depois de descer ele arrancava a cabeça das larvas, espremia o corpo retirando os líquidos internos, embrulhava em folhas verdes e guardava no bambu, sempre cuidadosamente, como quem guarda uma guloseima saborosa para comer mais tarde. Em pouco tempo o Taiquiú tinha garantido sua próxima refeição, ao contrário de mim que portava uma arma de fogo e não tinha encontrado nada para comer ainda . Às vezes ele parava bruscamente escutando a mata, seus ouvidos muito sensíveis, como constatei mais tarde, podiam escutar o barulho de um “burú-burú”, helicóptero, um minuto antes de mim e nada escapava de seus olhos aguçados .Quando um bando de mutuns castanheira que comiam frutas debaixo de uma ramada voou fugindo de nós, foi ele quem viu primeiro um deles que pousara em uma árvore próxima, ele me olhava e apontava para o mutum, como eu não conseguia ver o pássaro, ele aflito encostou seu rosto no meu direcionando meu rosto e meus olhos para o galho ande o mutum estava, então depois de vê-lo eu atirei matando o grande pássaro de plumagem preta ou quase um azul metálico, cujas penas da cabeça crespas e delicadas são utilizadas na confecção de adornos, brincos, pulseiras e colares, as penas das asas arrancadas com cuidado pelos índios, são usadas como aletas nas suas flechas. Existem três espécies de mutuns, o uru- mutum, o mutum fava e o castanheira que é o maior, sendo mais ou menos do tamanho de um peru e seu canto pode parecer para que não conheça como um rugido de onça. Lembro que quando cheguei pela primeira vez no rio Urariquera, inexperiente estava andando só pela margem do rio, quando ouvindo um mutum cantar voltei para o acampamento, com medo da onça me comer. Somente mais tarde quando escutei a primeira onça esturrando é que soube a diferença, aprendi que a onça também caça mutuns e caça também quem caça mutuns, por isso o mais prudente é sempre esperar um pouco antes de buscar a caça abatida nos domínios da onça pintada, que sorrateira e silenciosa pode sempre estar por perto.
                Tínhamos feito a nossa parte e enquanto voltávamos para o acampamento percebi que o Taiquiú estava satisfeito com o resultado da nossa caçada, e já me olhava de um modo mais amigável, ainda cauteloso, mas um pouco menos desconfiado, talvez porque não fossemos tão diferentes como aparentávamos no início, ou pelo menos tínhamos em comum a habilidade de trazer alimentos pra casa e a curiosidade de conhecer os costumes e observar o comportamento de outros povos. Não lembro se os outros caçadores mataram alguma caça naquele dia, recordo bem que depois de voltar ao acampamento, enquanto preparava o mutum para cozinhar, um dos índios que estava por perto pegou as tripas do pássaro que eu iria jogar fora, escorreu as fezes e depois de embrulhar em folhas verdes e amarrar com cipós, colocou em meio às brasas da fogueira, antes das folhas verdes queimarem ele retirou do fogo, deixou esfriar um pouco e comeu. Nós que observávamos comentamos que o índio havia comido as tripas do pássaro sem lavar, sem sal e mal cozida. Nesse dia eu nem imaginava que em algumas semanas estaria disputando com o Taiquiú e seu amigo Auáide os pedaços das tripas assadas, que sempre ficavam prontos antes da caça que estava sendo cozida na panela.

                                                                    QUATI            
                        Sem ter encontrado ouro por onde andou, o Bernardo voltou depois de alguns dias e na primeira manhã após o seu regresso, os garimpeiros retornaram para a pista do rio Auris, de onde voltariam á cidade “blefados”, sem ouro no picuá, mas esperançosos com a possibilidade de que os que tinham ficado na mata, eu o Bernardo e o velho carpinteiro amazonense, o seu Branco, encontrassem ouro nas redondezas da aldeia do tuxaua Paulo.  Logo após a partida dos homens, nós três repartimos o que havia restado de alimentos e junto com as ferramentas fizemos três cargas de pesos iguais, meio saco de farinha de mandioca ficou separado por ordem do tuxaua, para que um dos índios levasse para nós. Depois de acondicionar da melhor forma possível no jamanxim a carga envolvida em uma lona plástica e regular o comprimento da testeira e das correias do peito, abandonamos o acampamento velho, seguindo o grupo de índios por uma picada larga e antiga que levava em direção ao norte.
            Com algumas horas de caminhada, chegamos a uma pequena aldeia com meia dúzia de casas em meio às enormes árvores, não havia nenhuma clareira como é de costume. Corria um pequeno igarapé de águas claras a alguns metros das casas onde algumas crianças brincavam e quando nos viram aproximando, com agilidade de dar inveja a macacos, subiram rapidamente em algumas árvores altíssimas de onde ficaram observando os desconhecidos. Numa das casas da pequena aldeia morava a família do Taiquiú, ele tinha esposa e um filho pequeno, ainda de colo, ela a mãe, muito jovem assim como o pai , pareciam ainda serem ambos crianças. Curioso, eu observava a   família pela porta do tapirí, e quando o Taiquiú que se tornara meu companheiro de caçada e pecarias nos últimos dias, durante o tempo em que o Bernardo estava fora, sorriu demonstrando hospitalidade, eu entrei na pequena choupana para poder ver de perto a jovem mãe amamentando o indiozinho, deitada na rede.
            Quando seguimos viagem o Taiquiú foi junto conosco, carregando no seu jamanchim o meio saco de farinha de mandioca restante, e que basicamente além de outras poucas coisas mais,era toda a provisão que nos restara. Não sabíamos quanto tempo passaríamos na mata, tínhamos ainda alguma munição, um pouco de sal e muita esperança de encontrar ouro nas cabeceiras do Auris. A trilha por onde seguíamos, mais parecia com uma estrada antiga e abandonada há muitos anos. Um enorme tronco de árvore, colocado propositalmente sobre um dos igarapés servindo de ponte, aparentava estar ali há centenas de anos. Em alguns pontos do caminho, a vegetação nova crescendo no local onde antes existia alguma árvore grande que tenha morrido de velha, ou derrubada por alguma ventania, escondia quase completamente a estrada, que mais a diante surgia larga e limpa contorcendo-se em meio à floresta, seguindo sempre para o norte, interligando-se com outras estradas ainda mais largas, ultrapassando fronteiras e seguindo em direção às misteriosas cidades de pedras existentes muito alem das frias nascentes do rio Auris, no alto das cordilheiras dos Andes.
            Na primeira noite dormimos num acampamento indígena abandonado, ao lado da picada, armamos nossas redes dentro das estruturas dos barracos, depois de cobri-los com nossas lonas, pois as folhas de ubim que formavam os telhados já estavam velhas. Alguns dos índios que nos acompanhavam não traziam rede e nem era necessário, pois utilizando cipós titica fabricavam em minutos uma rede boa o suficiente para passar á noite. Mesmo nas noites sem chuva, na mata é sempre necessário se ter um telhado, a temperatura cai condensando a umidade existente nas camadas mais altas da floresta, fazendo chover sem nuvens, molhando a rede do mateiro, que é o único local seco que se tem para descansar e secar os pés que passaram o dia molhados e enlameados, esperando que na manhã seguinte tenha já criado alguma pele nova nas solas dos pés, sobre a feridas em carne viva causadas pelo rói-rói.
            Apesar de cansado, de madrugada ansioso eu já estava acordado olhando a lua cheia, que sumia e aparecia entre as ramadas, seguindo seu caminho rumo ao oeste, deslizando suavemente no céu e dourando as folhas das árvores mais altas. Meus companheiros ainda dormiam roncando, era sedo, me acomodei na rede tentando dormir mais um pouco, foi quando ouvi a Mãe da Lua cantando suas tristezas pela primeira vez, repetindo de tempos em tempos seu triste lamento, dizendo pra toda floresta ouvir que o seu companheiro :-“ Foi, foi, foi ...e não voltou.”



      
      “   De madrugada quando a Mãe da Lua canta
           Lamenta triste toda a sua solidão
           Quebra o silêncio do centro da mata
           Chamando aqueles, que não voltarão.
        
           Na noite escura como o ferro de bateia
           Fagulham estrelas la no garimpo do céu
           aqui na terra no centro da mata
           a solidão amarga como o fel .“