sexta-feira, 25 de maio de 2012

História de Onça - Parte XVIII


                                                                          AÇAI
                                                
              Naquele anoitecer, depois dos garimpeiros terem ido embora, quem não passou muito bem foi o Oliveira e no outro dia depois do almoço, quando eu o Pedro e o velho voltamos a escavar o barranco, ele ficou lavando as panelas no acampamento, se sentindo meio desanimado e foi quando gritou desesperado pela segunda vez naquela viagem. Desci correndo a encosta da montanha e fui o primeiro a chegar ao barraco, encontrando o Oliveira caído e esverdeado, fazendo vômitos, tinha sofrido um ataque repentino de malária. O velho entrou mata adentro em busca de raízes de açaí para fazer chá, enquanto o Oliveira, tomando um punhado de comprimidos de quinino de uma só vez, foi pra rede, onde passou uns dois dias, comendo pouco e bebendo muito chá de raiz de açaí. Eu, o velho e o Pedro continuamos o trabalho, quase sem dar conta das abelhas do Oliveira que se somaram as nossas, naqueles dois ou três dias em que ele passou na rede se recuperando.  
         Quando o Oliveira voltou ao trabalho recuperado, eu já vinha sentindo-me também cansado de mais, há alguns dias. O trabalho era muito forçado, pois,ou se estava cavando a terra dura com a picareta, ou jogando pazadas de terra para cima, num movimento constante e cansativo. Naquele entardecer, Pedro e eu, por algum motivo, estávamos trabalhando sós, aproveitando ao máximo a luz do dia no final fresco da tarde, e como eu sentia dores fortes entre o tórax e o abdômen, me queixei, dizendo achar que também tinha contraído malaria.
           O Pedro era um homem de uma brutalidade extrema, herdada dos primeiros colonizadores que os portugueses conseguiram se livrar, jogando-os o mais longe possível de Portugal, nos confins dos sertões do novo mundo, e que pode ser confirmada com a seguinte historinha, que me foi cantada certa vez por  um outro maranhense, que ao contrário do Pedro Maranhão, era uma pessoa muito amável. ( O pai maranhense, mandou o filho maranhense, pegar a mula maranhense, para ir buscar dois sacos de farinha de mandioca na casa de um vizinho. Na volta, a mula desembestando, rasgou um dos sacos de farinha no arame enfarpado da cerca. O filho, com raiva, sacando a faca e furou também o outro saco de farinha. Chegando em casa, com os dois sacos de farinha rasgados e vazios, foi indagado pelo pai sobre o motivo. Respondeu que a mula rasgou um e ele com raiva rasgara o outro. Seu pai, depois de ouvir a explicação, balançou a cabeça afirmativamente, dizendo que ele tinha feito muito bem, do contrário, não seria bem homem.)
          Assim era o maranhense Pedro, embrutecido, parecendo mais com uma fera sem raciocínio do que com um homem, daqueles de boa vontade é claro.  - Dor de brabo ! Foi a resposta que ele me deu naquele entardecer, quando me queixei das dores fortes que sentia por dentro do corpo e que estavam quase me impedindo de trabalhar. Dor de brabo, dor que sentem aqueles que não têm costume de trabalhar pesado. Sentindo enjôo do cheiro da comida e da fumaça, não jantei naquela primeira noite de malaria. Sobraram uns comprimidos de quinino que comecei a tomar a contra gosto, porque até a água da cacimba parecia ter gosto amargo. Enquanto os outros dormiam roncando, passei acordado a noite toda, indo da rede para o mato e do mato para a rede incontáveis vezes, com uma diarréia quente, que parecia estar me cozinhando por dentro. Uma febre forte chegou sem aviso, fazendo-me tremer de frio e quando o dia amanheceu meu corpo estava coberto de um suor pegajoso e mal cheiroso, minha boca estava seca, a língua parecia inchada, o desânimo e uma fraqueza repentinos tiravam minhas forças, enquanto a diarréia esverdeada não dava trégua, me fazendo levantar da rede e correr para o mato de dez em dez minutos.
       Depois do café da manhã o Oliveira entrou na mata atrás de mais raízes de açaí. Quando voltou preparou uma panelada de chá forte que eu passei bebendo durante toda a manhã,foi  quando tomei o último comprimido de quinino que sobrara, sem apresentar melhoras. Enquanto os três trabalhavam no barranco, eu sentindo hora frio, hora calor e fortes dores internas, como se meus órgãos estivessem fervendo numa panela de água quente, me debatia na rede espantando os insetos, ou corria baixando as calças em direção a mata, que parecia estar cada vês mais distante.         Ao meio dia o Oliveira insistiu para eu comer um pouco, mas o cheiro da comida me causava vômitos e até mesmo o chá de açaí não descia mais em minha garganta inchada. Quando chegou a noite eu não tinha mais forças para sair da rede e a diarreia contínua, em forma de um líquido verde, já sem aquele cheiro característico de fezes, molhava o fundo de minha rede de tempos em tempos.
        Tudo acontecera tão de repente, que eu me recusava a aceitar a minha cruel realidade. Estávamos na selva depois de tanto trabalho, o ouro da montanha já estava quase no picuá, o Pedro e o Oliveira tinham melhorado da malária com os comprimidos de quinino, o velho nem sentia o menor cansaço e só eu, que em apenas dois dias, já não podia mais levantar-me da rede. Maldizia minha sorte enquanto olhava os outros dormindo em suas redes, recusando-me a acreditar que não estaria melhor na manhã seguinte, mesmo sentindo meu corpo e minha mente se deteriorando, meus olhos ressequidos vendo na mata escuras, coisas que a razão não confirmava , meu cérebro confuso devido a febre alta, criava imagens que os olhos não viam, pensamentos confusos atemporais, lembranças, lugares, imagens e vozes de pessoas distantes se misturavam a realidade, confundido meus pensamentos, aumentando ainda mais a angústia, o desespero, o frio e a dor insuportável, causada por aquilo que estava me corroendo por dentro e consumindo minhas entranhas, meu sangue e minhas forças.
                  O mais longe que se pode ir, é de onde não se pode mais voltar e quem anda pela selva corre sempre o risco de ficar por lá mesmo, para sempre. Basta se perder, ser picado por uma surucucu, pisar num sapo flecha com os pés escoriados, ser abraçado por uma sucuri na beira do lago, contrair um malária maligna ou se acidentar quebrando uma perna, como aconteceu com um garimpeiro que varava pela selva com um companheiro, seguindo em direção a um garimpo recém descoberto, onde tinha sido descoberto  muito ouro. O terreno era montanhoso, onde até a pista de pouso clandestina tinha sido construída na beira de um penhasco. Da pista para o garimpo a varação de muitos dias pelas montanhas era muito perigosa, principalmente para quem varava com o jamanxim carregado com ferramentas e alimentos, como aconteceu com um dos homens, que era gordo e caiu do penhasco quebrando uma perna. Seu companheiro não podia carregá-lo pelas trilhas das montanhas, com fratura exposta, o ferido não podia nem ao menos se mexer. Isolados na mata, sem remédios e sem saber cuidar do ferimento, montaram acampamento no local do acidente, esperando por ajuda, que nunca chegou. Os gritos de dor do garimpeiro, com a perna inchada, apodrecida e sendo devorada por vermes, ecoavam pelas encostas das montanhas, sem que ninguém mais além do seu companheiro ouvisse.
            Na última noite em que o ferido tornou a pedir para que seu companheiro o matasse, ele assim o fez, dando um tiro com a espingarda na cabeça do amigo, que foi enterrado à sombra do grotão, ao lado da picada, onde alguns dos garimpeiros que passavam depois, com os picuás cheios de ouro, voltando para casa, acendiam velas agradecendo em silêncio por não ter tido a mesma sorte do desafortunado dono da cruz.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

História de Onça - Parte XVII


  
     NO CENTRO DA MATA


          Na mesma tarde em que matamos um mutum castanheira. que saiu da mata para beber água no rio Pacacibí, encontramos em meio a uma pequena clareira aberta na beira do rio, alguns pés de macaxeira, que foram plantados pelos antigos donos, garimpeiros que se foram abandonando o velho acampamento. Arrancamos algumas raízes grossas, que mais tarde num outro acampamento rio acima, também abandonado, onde havia até lenha seca rachada e empilhada, debaixo do telhado de ubim que ainda resistia ao tempo, cozinhei primeiro as raízes, antes de colocar o mutum gordo para ferver na panela de ferro.
         Passamos a noite ali e quando seguimos viagem, no outro dia pela manhã, encontrávamos pelo caminho os primeiros sinais da presença de garimpeiros pela mata, estávamos chegando perto da corrutela do garimpo. Naquele dia ao entardecer amarramos nossa voadeira no porto da corrutela do garimpo Santa Rosa, na margem direita do rio, onde estávamos sendo esperados pelos garimpeiros que ouviram o motor se aproximando e pelas mulheres que estavam bebendo na cantina e correram até o porto, querendo saber quem estava chegando ao garimpo.
         A corrutela era formada por uns quatro ou cinco barracos, construídos em meio a clareira, na beira do rio, por onde passava uma antiga picada que levava aos garimpos situados mais para o centro da mata. Da corrutela, saíam uma ou duas vezes por semana as voadeiras levando passageiros, alguns vindos dos garimpos na mata para fazer compras na cantina, outros  voltando para a cidade. Na corrutela os garimpeiros esperavam dias pela chegada do transporte, jogando baralho, bebendo e fumando de tudo, com as mulheres que andavam por lá, e escutando a todo volume no toca-fita  um repertório brega, de enlouquecer qualquer um. O Oliveira e o Pedro maranhão conheciam todos naquele garimpo onde passamos a noite e pela manhã quando seguimos viagem rio acima, entrando sem permissão no território ianomâmi recém demarcado, o Oliveira que passara a noite sem dormir bebendo todas na cantina, estava com cara de quem passou a noite no sol, como costumavam dizerem  os caboclos, de quem estava com cara de ressaca.
      A policia federal tinha retirado há algum tempo os garimpeiros que trabalhavam na região do Pacacibi e rio a cima encontrávamos, de ponto em ponto nas barrancas, o local do início das picadas abertas na mata, que levavam até os antigos acampamentos de garimpeiros, agora abandonados. A mata ianomâmi voltara a ficar silenciosa, sem o ruído dos motores trazidos pelos garimpeiros e aqueles que ainda se aventuravam por lá, em busca de algum ouro deixado para trás, como fazíamos nós quatro, andavam como ratos pela mata, cautelosos e silenciosos, para não serem descobertos pelos índios que viviam em  uma aldeia, além da montanha do Pedro Maranhão.
      O motor da nossa canoa embora fosse pequeno, fazia barulho de mais e viajamos preocupados durante todo o dia, pois não queríamos encontrar índios pelo caminho, temendo que nossa presença no território fosse denunciada. Quando acampamos ao anoitecer um grupo de índios jovens, que desciam o rio em canos a remo acamparam bem na nossa frente, na outra margem do rio. Por sorte um dos jovens índios conhecia o Pedro e assim que anoiteceu ele nos trouxe alguns peixes que tinham flechado durante a viagem. Passei boa parte da noite observando o grupo ianomâmi, eles acenderam fogueiras sobre as pedras da margem do rio onde assavam seus peixes, fincaram entre as pedras alguns paus para armarem suas redes e passaram quase a noite toda, pescando, comendo peixes assados, conversando e sorrindo. Ao contrário de nós os quatro garimpeiros preocupados com o ouro da montanha, eles pareciam não ter nenhuma preocupação e porque deveriam ter? Se no rio que corre sem parar pela floresta sem fim deles, tinha tudo que necessitavam. O ouro da montanha que nós procurávamos, não compra nada no paraíso ianomâmi,  não vale nada  onde não existem cercas nem muros, nem relógios, nem cofres e nem pobres.
       Há muitos anos estava em um ônibus em Rondônia, ao meu lado viajava um religioso que falando com sotaque estrangeiro perguntou sobre meu trabalho. Depois que falei que era garimpeiro o assunto girou em torno de ouro, ele não era a favor dos garimpos na Amazônia, e seguiu falando durante toda a viagem, enquanto eu escutava sem discordar e nem concordar com nada, depois dele ter me respondido por que as igrejas são douradas. - Na casa do senhor, falou ele, tudo deve estar sempre bem arrumadinho, limpo e brilhoso.
          No dia seguinte por volta de meia tarde, chegamos ao destino. Escolhemos um local onde a mata fechada cobria as barrancas do rio, por onde entramos com a canoa por baixo das ingaranas para não deixar vestígio de nossa presença. Arrastamos a canoa para a mata e escondemos num local apropriado cobrindo com folhas e galhos secos, depois de fazer o mesmo com o motor e o combustível restante, seguimos mata a dentro, levando as ferramentas e o rancho para a montanha do Pedro Maranhão. No sopé da montanha, distante mais ou menos umas duas horas de caminhada da beira do rio, tinha um barraco ainda em bom estado, que fora construído tempos atrás pelos garimpeiros do Pedro Maranhão. Do outro lado da grota de águas amareladas que descia da serra, ficava o barranco, um buraco escavado no pé da montanha pelos outros garimpeiros, tendo uns quatro metros de profundidade na parte mais alta e uns oito metros de largura, de onde o Pedro dizia que tiraram mais de quinhentas gramas de ouro.
       Naquele fim de tarde limpamos o velho acampamento e acomodamos os alimentos num jirau. A mata alta da encosta da montanha estava ressequida pelo forte verão e a grota de águas amareladas que descia da serra era a única que tínhamos para beber, cozinhar e banhar. Estávamos com pressa de iniciar o trabalho e sem nos preocuparmos em cavar uma cacimba usamos aquela água imprópria por uns dois ou três dias, que foi mais ou menos o tempo que eu e o Oliveira levamos para terminar de beber as ultimas garrafas de cachaça que sobrara da viagem. Depois quando sóbrios, escavamos então uma cacimba. que cobrimos com folhas verdes para evitar que mosquitos depositassem seus ovos. Na montanha, a nossa escavação, o barranco como chamávamos, já estava com um metro de profundidade. Tínhamos começado a trabalho na primeira manhã, após a nossa chegada, primeiro escolhemos e demarcamos o local, depois cortamos e retiramos as árvores, limpamos as folhas secas e os cipós e começamos a cavar arrancando as raízes e retirando a capa do lacrau, que é primeira camada de terra fofa, formada por folhas e galhos em decomposição, onde vivem os escorpiões, que durante o dia nós esmagávamos as dezenas com os pés, enquanto trabalhávamos. Depois veio a terra vermelha e seca que se tornava mais dura a cada dia e tinha que ser removida a picaretas e jogada para fora do barranco com as pás. Dentro da escavação o calor era quase insuportável e nossos corpos suados atraiam as abelhas que se multiplicavam a cada novo dia. Eram muitas espécies de abelhas que vinham da mata em busca de sal no nosso suor, pois até colocamos pratos com açúcar e sal em volta do acampamento, tentando atraí-las sem sucesso, enquanto elas se multiplicavam a tal ponto que para evitá-las passamos a trabalhar a noite, à luz de velas, o que também não deu certo, pois durante o dia elas pousavam as centenas lambendo nossos corpos na rede e não podíamos descansar.
     Voltamos então a trabalhar de dia, sem usar camisas, procurando suar menos e sempre evitando esmagar as abelhas, que parecendo loucas de fome pousavam freneticamente, sem se incomodarem com os nossos movimentos, enquanto escavávamos o sopé da montanha. Quando um de nós saía de perto do trabalho, por algum motivo, as abelhas do ausente  somavam-se com as dos que tinham ficado trabalhando, e eram tantas, que muitas vezes, quando um de nós saia para preparar as refeições, logo os outros desistiam do trabalho saindo andando pela mata, enquanto os cabos suados das ferramentas ficavam pretos de abelhas, inclusive o local onde urinávamos ou nos sentávamos suados. Quando a noite chegava, depois do banho na grota, contávamos o número de ferradas de abelhas que sofríamos durante o dia, ao esmagá-las contra as costelas com os braços, nos movimentos que fazíamos trabalhando com as ferramentas, cavando ou jogando terra para fora do barranco, por sorte nenhum de nós era alérgico, pois teve dia de alguém contar sessenta ferradas de abelhas.
        O Pedro era perito em fazer armadilhas e desse modo conseguíamos alguma caça em silêncio, sem precisar usar a espingarda, pois possivelmente o estampido seria escutada pelos índios da aldeia, que poderiam estar por perto caçando na mata, ou subindo ou descendo o rio. Decidimos também fazer fogo e cozinhar somente à noite, trabalhando durante o dia em silêncio, cavando a terra vermelha do pé da montanha, deixando o buraco cada dia mais profundo, de onde já   estava se tornando difícil até de jogar a terra para fora com as pás.
        No dia em que o Oliveira resolveu construir um andaime de madeira, onde, para facilitar o trabalho, jogaríamos a terra cavada e depois tornaríamos a jogar de cima do andaime para fora do barranco, o Pedro Maranhão convidou-me para visitarmos uns garimpeiros conhecidos dele, que estavam trabalhando a umas três horas de caminhada rio abaixo, onde iria pedir emprestada uma caixa de lavar cascalho, da qual iríamos necessitar para lavar o nosso cascalho para separar o ouro, no final do trabalho.
            No caminho, andando pela margem do rio Pacacibi, atravessamos um pequeno igarapé de águas límpidas que descia da serra, formando uma cachoeira ao chegar ao rio e nas águas rasas do pé da cachoeira nadava vagarosamente um enorme surubim, sem perceber o Pedro se aproximando cauteloso com a espingarda já engatilhada. Com o facão partimos o surubim abatido em duas bandas, penduramos uma amarrada com cipós numa árvore e levamos a outra metade para os garimpeiros conhecidos do Pedro que fizeram uma festa, pois estavam quase sem alimentos. Depois de mentir um pouco e escutar em troca algumas histórias de onça, pedimos a caixa emprestada e nos despedindo dos garimpeiros, que prometeram irem nos visitar no próximo domingo. No caminho de volta para o nosso acampamento, o Pedro Maranhão que vinha arrastando a outra banda de surubim pela mata, se queixou de dores no corpo e falou que talvez estivesse com malária, então passamos por um açaizal onde cortamos um feixe de raízes. 
       De volta ao nosso acampamento o Pedro tomou uns comprimidos de quinino, que tínhamos trazido da cidade, enquanto esperava ferver numa panela o chá de raiz de açaí. No outro dia ficou até mais tarde na rede, trabalhou algumas horas depois do meio dia, ainda se sentindo desanimado e fraco, mas amanheceu bem no dia seguinte, quando resolvemos não trabalhar esperando pelos garimpeiros que viriam nos visitar naquele dia de domingo e passamos o dia esperando, mas não apareceu ninguém. Na manhã seguinte, quando já estávamos trabalhando a algumas horas no barranco, os garimpeiros chegaram alegres perguntando para o Oliveira pela cachaça. Para nós já era segunda feira, para eles ainda era domingo, daí passamos mais um dia sem trabalhar conversando com os vizinhos de garimpo, sem ninguém saber mais se era sábado, domingo ou segunda-feira, afinal, que diferença faziam os dias da semana naquele fim de mundo.


AÇAI

sábado, 12 de maio de 2012

História de Onça - Parte XVI

URARIQUERA                                                                                                                                                                                                                                        

         Um homem chamado Pedro Maranhão procurou o Oliveira, irmão da Rosinha, dizendo saber de um ouro de aluvião no sopé de uma montanha, próxima ao rio Pacacibí, em território Ianomâmi. Eram tempos difíceis aqueles últimos anos de garimpo, o Oliveira tinha uma pequena lancheria ao lado de uma fábrica, onde trabalhava com sua mulher, contrariado, lembrando sempre dos tempos bons do garimpo, quando se apostava meio quilo de ouro numa rodada de cartas.
      Eu tava rodado, sem trabalho, depois de ter me separado de um grupo de garimpeiros de diamantes, com os quais eu já não tinha nenhuma afinidade e sem alternativa não pensei duas vezes antes de entrar para a mata novamente. O Oliveira conseguiu uma voadeira de alumínio, emprestada por seu pai, juntamos o pouco dinheiro que tínhamos para comprar as provisões, alimentos, munição, ferramentas, combustível, cachaça, alguns poucos remédios contra a malária e depois de alguns dias botamos a voadeira na água, bebendo no bico pra comemorar, a primeira garrafa de cachaça das muitas que beberíamos durante a viagem, subindo o rio Urariquera.    
         O Pedro Maranhão e o amazonense, que era bem mais velho que nós e cujo nome não lembro, não bebiam pinga, sobrando mais para o Oliveira e para mim, que nem imaginava que seria essa a última vez na vida que beberia álcool sem passar mal e sentir dores de cabeça por muitos dias.     
        Navegávamos o dia inteiro olhando a paisagem do verão selvagem e deslumbrante nas margens do Urariquera, com suas praias de areias brancas contornando o verde escuro da floresta gigantesca e silenciosa. Patos selvagens, pousados nos remansos, voavam apressados fugindo da voadeira barulhenta. Nas árvores das barrancas alguns camaleões comendo folhas novas ao sol, assustados com a nossa aproximação rápida, se laçavam no rio para as piranhas famintas. Bandos barulhentos de araras coloridas cruzavam o céu azul, já quase chegando a qualquer lugar, com seus vôos ligeiros, enquanto as borboletas azuis, amarelas, verdes e de todas as cores esvoaçavam tontas sobre o rio, voando em círculos, sem chegar nunca a lugar algum e das águas mansas dos remansos,  gigantescas pétalas cor de rosa emergiam ocasionalmente,  em forma de botos. Ao entardecer, o vento encrespando as águas do estirão douradas pelo sol poente, refletiam milhões de fagulhas, que se apagavam lentamente ao cair da noite, cedendo lugar para as primeiras estrelas que surgiam brilhando tímidas, no final de mais um dia de viagem,recém adormecido.
           Aproveitávamos os velhos acampamentos feitos por pescadores e garimpeiros, para passarmos à noite. Sempre encontrávamos alguma caça durante o dia, nas margens do rio, garantindo um jantar farto, antes de esticar o corpo cansado da viagem na rede e de madrugada antes do jacu cantar anunciando o novo dia, o café já estava cheirando na chaleira enfumaçada. Depois de desarmar as redes, recolher e acondicionar as coisa do acampamento novamente na voadeira, seguíamos viagem, sentando encolhidos nos bancos de alumínio, sentindo na pele o ventinho frio e úmido da madrugada.
          Quem sobe o Urariquera avista de longe a grande ilha verde de Maraca dividindo as águas do rio ianomâmi, la entramos a direita no rio Santa Rosa, famoso por seus velhos garimpos e amaldiçoado pelas suas malárias malignas. Depois de horas de viagem costeando a grande ilha que ainda seguia em frente a perder de vista, chegamos na tranquila foz do Pacacibi, cujas águas límpidas e calmas escondem dos viajantes desavisados a violência de suas corredeiras rio acima.
         Naquela época o garimpo já estava em decadência em Roraima, estavam demarcando o território Ianomâmi e expulsando os garimpeiros das florestas. Apenas duas ou três voadeiras faziam linha da capital para o garimpo Santa Rosa, levando e trazendo os últimos garimpeiros que teimavam em procurar ouro no velho garimpo blefado, onde a malária era inevitável. Outrora, assim que descoberto, garimpeiros entravam e saiam, varando pela mata, costeando as barrancas do rio ou pagavam passagens nas lanchas abarrotadas de víveres, ferramentas e passageiros que subiam e desciam as corredeiras perigosamente. Cruzes de madeiras fincadas nas barrancas e apodrecidas pelo tempo, ainda testemunhavam em silêncio o triste destino daqueles que nunca voltaram de lá, onde foram enterrados para sempre, junto com os seus sonhos, no meio da mata, mortos por ladrões que ficavam a espreita na beira das picadas, pelos próprios companheiros sem escrúpulos que desejavam levar para casa mais ouro do que tinham garimpado, abatidos sem piedade pela febre cruel das terríveis malarias, ou despedaçados contra as pedras nas curvas das cachoeiras dentro das voadeiras de alumínio, que mesmo sendo pilotadas por exímios pilotos, que acredito talvez fossem os melhores do mundo, mas que nem sempre podiam evitar os acidentes naquelas corredeiras, onde nem se pode acreditar. que uma canoa lotada de passageiros possa subir ou descer. O exímio piloto, coloca entre o casco da voadeira e a rabeta do motor de popa, uma tora de madeira, erguendo ao máximo a hélice, evitando o choque com as pedras do leito raso. pilotando de pé, para poder ver em frente, por cima dos passageiros que sentados e curvados ao máximo agarram-se uns aos outros. Sentado na proa o co-piloto, que deve ter muita experiência e rapidez, leva nas mãos uma vara de madeira longa, com a qual procura desviar-se  das pedras, enquanto a voadeira passa pelas corredeiras numa velocidade incrível que deve ser sempre superior a da própria água, pois de outro modo não seria possível mudar de direção evitando o choque contra as pedras ou contra barrancas nas curvas que o rio sempre faz descendo a serra.                  Subir as corredeiras é tão perigoso quanto descer, qualquer deslize pode ser fatal, a voadeira depois de entrar na corredeira não pode mais voltar, assim como também não pode ladear, a proa deve se manter sempre em sentido contrário á correnteza e quando não tem por onde passar, o piloto experiente, represa as águas entre duas pedras com a própria canoa, mantendo uma aceleração firme e constante até que a água represada tenha profundidade suficiente para a canoa seguir, esperando sempre que o motor não falhe nestas horas de aflição e medo. Mas nem sempre o rio perde a disputa para a canoa e as cruzes de madeira nas barrancas das cachoeiras e os pedaços de alumínio, arrancados das canoas vencidas pelo rio, ainda devem estar por la, nos remansos, testemunhando o azar de quem por lá buscava a sorte.
            O irmão do oliveira era um destes poucos pilotos exímios que subia as corredeiras, mas o Oliveira não se arriscava e em cada cachoeira perigosa nós descarregávamos a nossa canoa e subíamos por terra levando pela mata o rancho, as ferramentas e a canoa. Numa destas cachoeiras, enquanto subíamos andando pela margem, desceu uma das voadeiras lotada de passageiros passando rápido a uns dez metros de onde estávamos. Um dos passageiros que descia encolhido e com os olhos arregalados de medo era o Bitelo, concunhado nosso na época. Gritamos seu nome diversas vezes, mas mesmo estando com os olhos esbugalhados ele não viu e nem nos ouviu gritando e acenando da barranca. Pobre Bitelo branquelo que além de não saber nadar, era sem duvida o garimpeiro mais medroso de toda Amazônia. Até hoje eu ainda não sei de onde ele tirou coragem para subir o rio Santa Rosa de voadeira.
             Almoçamos um dia com um grupo de garimpeiros que encontramos no caminho descendo o rio, varando a pé pela mata. Tinham feito fogo para assar peixes, perto de umas cruzes amarradas com cipós, que marcavam o local onde alguns garimpeiros tinham sido mortos há algum tempo atrás. O Oliveira conhecia todos naquele garimpo onde teve uma cantina por anos, no tempo em que o ouro do Santa Rosa tinha sido recém descoberto. Tinha fartura de peixes por lá e quando seguimos viagem, levamos junto alguns já assados para o jantar.
          O Oliveira deu dois gritos feios de desespero naquela viagem, o segundo grito foi me chamando, pedindo socorro quando sofreu um ataque repentino de malária, no acampamento da montanha do Pedro Maranhão, mas o primeiro foi naquela tarde, quando resolvemos puxar a canoa por uma corredeira á cima. O Pedrão seguia na frente puxando a corda, enquanto eu o Oliveira e o velho empurrávamos a canoa por um estreito canal, entre a barranca e as pedras. O rio tinha mesmo muitos peixes e alguns batiam em nossas pernas descendo a corredeira, nas praias rasas também descíamos algumas vezes da canoa para empurrá-la, onde o perigo maior era o de pisar nas arraias camufladas na areia, mas naquela tarde quando o Oliveira gritou desesperado soltando-se da canoa, tinha sido eletrocutado por um poraquê. Por sorte nem o choque elétrico e nem a cachoeira eram muito fortes, o caboclo moreno ficou branco por uns tempos e meio tonto, mas logo nós já estávamos navegando novamente, rindo do que acontecera e bebendo mais cachaça.
           
                                 MATEIROS

              Menos sorte teve o goiano em outro anoitecer, no vale do rio Urariquera, quando eu, o Bernardo, o Loiro e ele descemos a serra, onde uma tucandeira tinha me picado no pé, em meio a um bambuzal espinhoso, de onde custamos muito a sair. Já era tarde quando descendo a montanha, deparamos com um alagado que teríamos que atravessar antes de anoitecer. Com o jamanxim na cabeça e água pela cintura seguíamos os quatro, sem rumo, procurando terra firme enquanto o sol se escondia apressado por detrás da montanha, com mais medo da noite que se aproximava silenciosa, que do jacaré e da sucuriju caminhávamos apressados pelo pântano, que parecia não ter fim. Quando avistamos uns arbustos maiores no início da mata, onde provavelmente haveria terra seca, em desespero para sair do pântano nos separamos, eu e o Bernardo seguimos nos arrastando por baixo dos arbustos em direção a mata, enquanto o louro e o goiano foram em outra direção e já estávamos quase alcançando a terra firme, na mata alta, quando ouvimos os dois gritando desesperados. Largando os jamaxins e com os facões em punho corremos o mais depressa possível na direção deles, chegando lá encontramos o goiano deitado na lama com o rosto completamente roxo e respirando com dificuldade sendo auxiliado pelo louro, depois de ter levado um choque do poraquê e engolido a língua.

         Perto dali, já em terra firme, ao lado do braço morto de um rio, montamos o nosso acampamento, na escuridão da noite que começara ruim e terminaria pior ainda. Não fizemos fogo nem jantamos naquela noite, cansados depois de um dia turbulento, tomamos banho de balde para limpar a lama do pântano, pois ninguém se atreveu a entrar no sombrio e profundo sangradouro de águas negras, ao lado do acampamento, onde se podia observar entre os galhos de árvores caídas movimentos suspeitos na água que chegavam em ondas até a superfície e que seguramente não eram produzidos por peixes ou outros bichos pequenos. O goiano, depois do susto passado com o puraquê, já estava bem, descansando na rede, eu que tinha sido ferrado pela tucandeira e passei toda a tarde com dores terríveis na perna, também não falei inglês com se esperava e não mais sentia dores na perna.
             Parecia que a noite seria calma como quase todas as outras, em que se pode acender uma vela, colocar na ponta de um pau rachado com o facão que ela queimará toda, sem que nem uma brisa a apague, porque não venta na mata fechada. Mas quem anda pela mata encontra clareiras enormes com arvores arrancadas pelas raízes e que até aquela noite eu não sabia ao certo o que causava aquelas derrubadas.
                 A exaustão causada pelas turbulências do dia passado, trouxe um sono de pedra pra nós naquela noite e sem nos preocuparmos com onça alguma, adormecemos sem saber quem foi o último. Mas o último a acordar sobressaltado, naquela mesma noite fui eu, ouvindo os outros chamando meu nome desesperadamente, em meio a um vendaval ensurdecedor que passou por nós quebrando e arrancando árvores, sem que tivéssemos um lugar para correr ou nos abrigar. Na escuridão total da mata nos agarramos nas árvores mais grossas, escutando o barulho ensurdecedor do vento e da chuva, em meio a trovões, relâmpagos e estrondo de arvores e galhos se partindo.
          Sem aviso, assim como chegou, o vento se foi, mas o efeito macaco nos cipós esticados pelas árvores caídas, quebrando as copas e galhos das outras árvores, continuou perigosamente até amanhecer o dia, quando o sol iluminou pela primeira vez o chão úmido da floresta sem a mata , que fora repartida ao meio, como uma vasta cabeleira verde, pelos ventos da noite passada.

terça-feira, 8 de maio de 2012

História de Onça - Parte XV



                                    GARIMPO                 

                  Eu tinha passado o dia na maraca, dentro do barranco, mandando material para a resumidora de diamantes, sendo devorado vivo pela nuvem faminta de piuns, e somente para não ser descortês, mesmo estando cansado, aceitei o convite de um dos companheiros de garimpo, que não queria ir só para corrutela.
                 Depois de jantar, saímos caminhando pelo lavrado. A noite enluarada branquejava as pedras das montanhas e os tamanduás bandeira com seu andar cambaleante, podiam ser visto de longe entre a vegetação rasteira. O meu companheiro, um mato-grossense, que chamava os diamantes de “dijamante”, disse que fazia três anos que não via seus familiares. Enquanto ele falava, eu que tinha quatro filhos no sul escutava calado, sem entender como ele pode ficar tanto tempo longe de casa. Naquela noite, eu não poderia imaginar que, num futuro próximo, ficaria sem ver os filhos ainda pequenos para sempre, pois quando tornei a vê-los, depois de anos, já estavam crescidos.   
           Naquela manhã, que ainda me rouba o sono de muitas madrugadas, eu olhei para trás vendo o passado pela ultima vez a dez passos de mim. Bastava  ter voltado de onde estava e jamais contaria esta história, porque o nosso destino é a conseqüência direta de nossas próprias decisões ou indecisões. Ainda vejo nos meus sonhos os dois meninos pequenos acenando do portão, enquanto eu seguia pela estrada com a bolsa nas costas á caminho do garimpo, deixando para trás, e para sempre, o maior de todos os tesouros que um homem pode encontrar. 
       - Os “dijamantes” segam a gente! Me disse o Mato grosso naquela noite, antes de chegarmos na corrutela.
                Na corrutela, alguns barracos barulhentos, cobertos por lonas, construídos na beira do rio próximos as máquinas do garimpo, podia-se comprar quase tudo, á peso de ouro e diamantes, onde os garimpeiros costumavam se reunir á noite para comprar suas necessidades. Álcool puro ou com suco de laranjas, era uma das bebidas preferidas pelos mergulhadores das águas frias, por ser mais forte que outras bebidas. Maconha, pasta de cocaína, álcool e mergulho formavam uma combinação letal, que mais cedo ou mais tarde sempre acabava não dando certo.
             Nas balsas pequenas dragando os rios, o ruído constante do motor de três ou quatro cilindros era ensurdecedor, onde geralmente quatro mergulhadores viviam noite e dia falando aos gritos. Nas redes armadas sobre os equipamentos barulhentos, dormiam sacolejando dois homens, enquanto os outros dois, de plantão por quatro horas, trabalhavam. Um deles cuidando dos equipamentos e da mangueira de ar, o outro no fundo de rio, abraçado a ponta do mangote da bomba que sugava o cascalho. Alguns levavam no cinturão um vidro com álcool, que bebiam durante as quatro horas de mergulho espantando o frio. Muitas vezes mal dormidos e drogados, adormeciam abraçados à mangueira da bomba, no fundo do rio, tendo que ser acordado pelo companheiro de plantão, que de cima da balsa puxava a mangueira do ar presa ao cinturão do mergulhador, para que voltasse a escavar o mocororo.  Completado o turno de três ou quatro horas de mergulho, a equipe se revezava, e um dos que dormiam nas redes, recém acordado e ainda com o corpo quente, vestia as mesma roupa de borracha molhada, que fora usada antes pelo outro mergulhador, desejando que ele não tivesse urinado, durante ás quatro horas que passara no fundo gelado do rio, se jogava nas águas, fosse noite ou dia. Enquanto isso a equipe substituída procurava nas bolsas, antes de irem para as redes descansar, as penas de asas de pássaros, que usavam para coçarem os ouvidos inflamados, antes de dormir por quatro horas, isso se não fossem despertados antes,  para auxiliar em alguma emergência.


                                  OURO EM PÓ

               No rio Madeira, na época do ouro fácil, centenas de balsas e dragas se espremiam tentando alcançar o local onde o ouro tinha sido encontrado. Dezenas de mangueiras de ar, magotes de bombas e brocas hidráulicas de dragas escareantes se cruzavam no fundo do rio. Mergulhadores eram esmagados em desbarrancamentos, mangueiras de ar eram cortadas propositadamente ou não, acidentes e assassinatos ocorriam quase todos os dias. Corpos de pessoas desconhecidas desciam o rio boiando, enquanto toneladas de ouro em pó, que saiam do rio fundo do rio, passavam de mão em mão até chegarem aos cofres dos grandes compradores.                 Naquele tempo costumavam-se dizer que tudo que caísse no rio virava ouro, menos os garimpeiros que viravam apenas comida de candiru. O candiru é um peixe carniceiro, com seu corpo mole e esguio penetra nos orifícios do corpo, não apenas nos cadáveres, mas também costuma entrar pelos canais urinários de quem desavisado, urina sem calça, em alguns dos rios amazonenses. Encontrar um cadáver sendo devorado por dentro pelos candirus era uma visão de fazer perder o sono, ainda hoje me pergunto qual o motivo que teria alguém para matar, amarrar com arames e jogar no rio despidos o casal que descendo a correnteza como se estivessem abraçados, passaram ao largo da nossa draga.
              O rio Madeira corre com muita pressa de chegar em Porto velho, quando alguém caia da balsa, de nada adiantava nadar contra a correnteza e se fosse durante a noite, mesmo com ajuda de uma voadeira, o resgate nem sempre tinha um final feliz.
           Eu e mais três garimpeiros trabalhávamos, por percentagem, numa draga escariante, quando o dono da draga voltando da cidade, onde fora fazer compras, esqueceu um abacaxi - como era chamado a broca, que tendo esse formato, era usada para escariar o leito do rio - num porto distante, uns oito quilômetros rio a baixo. Pediu então para mim e o Maranhão buscá-la, se é que ainda estivesse lá. Quando saímos na voadeira, uma lancha de proa chata, reforçada com cantoneiras de ferro, com motor de popa quarenta e cinco, já era quase noite. Dei a lanterna para o Maranhão que pilotava a voadeira, pedindo para que descesse mais pelo meio do rio, lembrando-lhe que as outras voadeiras costumavam subir o rio todas as noites, pela beira, em alta velocidade, quase sempre sem trazer nenhuma luz sinalizante ou lanterna, vindo das cantinas localizadas rio à baixo, trazendo homens e mulheres bêbados e drogados.
           O Maranhão, um dos maiores mentirosos que conheci não me deu ouvidos e falando sem parar, seguiu costeando a margem sem se preocupar em manter a lanterna acesa permanentemente, ligando-a apenas de vez em quando, para ver a que distância estávamos da barranca. Eu como de costume estava sentado na borda da canoa, ao lado do piloto, para poder ir conversando durante a viagem.  Á noite sempre faz um friozinho no rio, eu estava sem camisa e num certo momento fechei os olhos, me encolhendo um pouco e sem prestar atenção no que o Maranhão falava, pensei  nas outras voadeiras, que poderiam por acaso estar vindo em nossa direção, em meio a escuridão.  Então no exato momento em que segurei com forças as bordas de alumínio da voadeira, como se estivesse prevendo o pior, ouvi o ruído do impacto de ferro contra ferro e os gritos dos passageiros da outra voadeira, enquanto eu praticamente voava da popa para a proa da canoa, arrancado do lugar onde estava pela violência do choque.
         Enquanto caia no assoalho da canoa, de relance vi o que me pareceu ser as pernas de uma mulher caindo no rio. Cessaram então os ruídos dos dois motores, e em meio à escuridão total se ouvia apenas gemidos e gritos. O Maranhão, deitado no assoalho da lancha segurando uma das pernas, também gritava de dor. Ainda meio tonto fui até a popa e dei partida no motor, levando a lancha até a barranca, onde havia uma balsa iluminada. Pulei para dentro da balsa levando a corda da voadeira e estava amarrando-a a um caibro quando a outra voadeira acidentada encostou ao lado da nossa. Entre as pessoas feridas gemendo e falando sem parar, homens armados bêbados e descontrolados, perguntavam aos gritos para o Maranhão quem estava pilotando a nossa voadeira. Nesse momento ouvimos pedidos de socorro vindos da escuridão, o piloto acelerou a lancha seguindo ao encontro dos gritos, aproveitando a oportunidade, ligamos a nossa voadeira e fugimos rapidamente do local antes que a outra lancha retornasse, temendo sermos mortos. Na volta o Maranhão mentiroso ainda com medo dos outros acidentados, não pilotou mais a voadeira, fingindo estar muito ferido. 
            Ao chegarmos na nossa draga foi que percebi a gravidade dos meus ferimentos, as palmas de minhas mãos tinham se rasgado nas bordas irregulares da lancha e fiquei cuspindo sangue por alguns dias, com uma ou duas costelas fraturadas no choque contra os bancos de alumínio, o Maranhão sofrera apenas um corte profundo na canela, causado por um martelo de trocar o pino da hélice, que não o impediria de pilotar a voadeira. Só então que percebi que ele, sabendo qual seria a reação dos ocupantes bêbados e drogados da outra lancha acidentada, covardemente tentou jogar a culpa do acidente em mim, se tivéssemos sido alcançados pelos outros. Por alguns dias, antes de ser concertada, a voadeira retorcida, em conseqüência do acidente, ficou escondida em baixo da draga. Passamos alguns dias apreensivos, alguns comentários sobre o acidente ainda se ouvia no rio, mas logo outros novos acidentes aconteceram e o nosso foi esquecido, sem que fôssemos identificados e sem vinganças.
           Era verão, o rio secava rapidamente e quando apoitamos a draga na barranca para soldarmos a lança quebrada, ficamos encalhados. No outro dia, bem cedo, descemos o rio à procura de um rebocador, antes que as águas baixassem mais, nos deixando na praia sem poder trabalhar. Contratamos um rebocador que chegou ao local onde estava a draga encalhada em algumas horas, pilotado por dois jovens cujos olhos brilhosos e vermelhos demostravam que seguramente não dormiam há muitos dias. O piloto do rebocador ficou no canal do rio, acelerando contra a correnteza e esperando, enquanto eu na voadeira, levava o cabo de aço que estava preso à draga, alcançando a ponta do cabo para o homem do convés. Enquanto o homem enrolava o cabo num dos ferros da popa, procurei me afastar o mais depressa possível com a voadeira, ao mesmo tempo em que o piloto do rebocador sem esperar que eu me afastasse, acelerou bruscamente o rebocador, esticando o cabo de aço e prendendo minhas pernas contra a proteção de ferro do motor de popa e sem ouvir os gritos de avisos dos outros garimpeiros da draga, continuou a me arrastar pelas pernas contra a correnteza, quase alagando a voadeira. Por sorte o segundo homem que estava no convés do rebocador,conseguiu soltar o cabo, poucos segundos antes das minhas pernas ou eu mesmo ter virado almoço de candiru. Mais tarde na draga, sem sequelas e eufórico por continuar vivendo, não me incomodava muito os puxões do alicate extraindo os pedaços de pontas de  fios do cabo de aço, que penetraram nas curvas das minhas pernas escoriadas.
               Algumas toneladas de ouro foram garimpadas nas águas turvas do rio Madeira durante aqueles anos. Centenas de máquinas, de diversos tipos e tamanhos, escariavam o leito do rio dia e noite, tornando seus proprietários, vindos de vários estados e até mesmo do exterior, mais ricos ou mais pobres, da noite para o dia. O ouro tinha um preço bom na época e todos os dias chegavam ao rio caminhões carregados de equipamentos para as novas dragas que estavam sendo montadas a cima e á baixo das cachoeiras. Estranhos inexperientes vindos de longe, com febre de ouro, trabalhavam sem parar nas barrancas de sol a sol, desesperados para terminarem a montagem de suas dragas, não se preocupando com as ferradas dos mosquitos transmissores de malária, nem com a qualidade da água que bebiam dos igarapés, completamente cegos pelo brilho do metal, não percebiam que muitas vezes a malária chegava primeiro que o sonho amarelo dourado, se tornando a cada dia mais anêmico esverdeado. Às vezes o ouro era encontrado a cima das cachoeiras e dezenas  dragas, auxiliadas por várias voadeiras subiam. Depois de algum tempo, mais ouro tornava a ser encontrado á baixo das cachoeiras e as dragas tornavam a descer, algumas inteiras outras em pedaços, outras vezes ainda a voadeira que rebocava uma draga do lado de cima da cachoeira quebrava, e voadeira e draga despencavam cachoeira a baixo, desmontando-se em mil pedaços, como aconteceu com a draga do homem cujo corpo nunca foi encontrado. Homem jovem, pai dedicado de um filho pequeno e marido feliz de uma mulher chamada Rosa, mais umas dessas Rosas, que a cachoeira dos tamburetes mudou pra sempre o destino, o mesmo e inexplicável senhor destino, que cruzaria os nossos caminhos alguns anos depois.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

História de Onça - Parte XIV


                                  MAU
                                
              Durante aquela semana, enquanto as águas baixavam, eu caminhava rio abaixo todos os dias procurando pelos destroços da balsa. No início da corredeira de seis quilômetros, quando o rio está baixo, pode-se cruzar a fronteira sem molhar os pés, por cima de uma barreira rochosa que desce da serra, ligando o Brasil com a Guiana. Junto a esse paredão, pedras enormes, trazidas pela correnteza durante milhares de anos e que lá permanecem imóveis durante as estiagens, inacreditavelmente parecem ganhar vida durante as enxurradas, lançando-se desesperadamente contra o paredão rochoso, como se quisessem atravessá-lo para poder seguir seu caminho rio a baixo, e inacreditavelmente muitas atravessaram mesmo, abrindo inúmeros túneis na barreira rochosa. Outras arredondadas e desgastadas, como uma bola de futebol, estão a meio caminho no fim do túnel, onde podem ser encontradas quando as águas estão baixas, imóveis esperando a próxima cheia. Algumas destas pedras se desgastam totalmente, antes de poderem sair do outro lado da barreira, deixando em seus caminhos túneis cônicos, inacabados, por onde passam as águas das cheias espremendo-se nas fendas, que daqui a mil anos talvez, outra pedra rolada de alguma serra distante, trazida pelas águas, atravessará por fim a barreira de pedras. Entrei várias vezes nesses túneis, quando o rio estava baixo, procurando cascalho diamantífero, em alguns deses tuneis pode-se entrar de pé no início e imaginar o tamanho da pedra que rolando nas águas o escavou.
           Havia uma pedra muito grande perto da barranca, onde às vezes eu ficava em cima pescando, essa pedra também era polida, mas eu imaginava que fossem as areias trazidas pelas águas, por milhares de anos que a desgastavam, sem acreditar que o rio tivesse força suficiente para movê-la. Enganei-me, nos dias que procurava pelos destroços da balsa escutei incrédulo o ruído da pedra grande, agora submersa, chocando-se contra o paredão.
               Após alguns dias o rio Mau tornou a baixar e encontramos presos nas pedras da corredeira, o motor e o compressor, a balsa de borracha descera serra abaixo. Com ferramentas emprestadas, abrimos o compressor e o motor, que secamos e lubrificamos. Colocamos o equipamento recuperado na canoa e fomos procurar, no fundo do rio, o local onde tínhamos encontrado as três pedras que formavam a entrada da câmara submersa, mas a forte enxurrada que  tinha nos surpreendido, tinha trazido o arroto, o cascalho removido pelas máquinas que dragavam o leito do rio, nos garimpos localizados a cima da cachoeira. e toneladas de areia e pedras aterraram o estirão do rio, em frente à caverna, soterrando a entrada do nosso garimpo.                 Quando fui embora, nem lembro por quantos quilates de diamantes vendi a espingarda e o resto do equipamento recuperado para o Picuá, antes de deixar o garimpo, mas tenho certeza que até hoje ele ainda não me pagou, pois nunca mais voltei lá para cobrar.