sábado, 14 de julho de 2012

História de Onça - Parte XXII


    MATEIROS  Z x B
       
       Quando um mateiro sai das sombras da floresta, pode ser reconhecido de longe quando chega na cidade, calçando sapatos desconfortáveis novos ou emprestados, caminha vacilante pelas ruas, visivelmente admirado com tudo que há muito tempo não via. Acostumado a comprar mantimentos, munição e cachaça a peso de ouro na mata e sem saber o preço real de nada no comércio da cidade, acaba sempre pagando mais caro a conta e o dinheiro apurado com a venda do ouro pouco - que já foi comprado barato pelos atravessadores - é repartido sem miséria entre as mulheres dos bordeis, diárias de hotéis, bares, taxis e restaurantes. Em poucas semanas, se tiver separado e guardado o ouro do avião, o mateiro blefado estará de volta ao garimpo, contando vantagens e novidades dos dias passados na cidade. Repetindo o nome, aparência e gostos das mulheres com quem afirmara ter tranzado nos últimos dias, espalhando boatos de outros garimpos novos recém descobertos em outras regiões da floresta, dizendo quem ficou rico nos últimos tempos, quem tornou a ficar pobre, o nome daqueles conhecidos que morreram recentemente e dos que mataram, resultados da última eleição, o nome da nova novela das oito e as notícias do país e do mundo que assistiu  pela televisão  no saguão do hotel .
       Eu estava há muito tempo sem sair da mata, quando ouvi um garimpeiro recém chegado da cidade  contando, entre outras novidades, que os americanos tinham capturado alguns alienígenas, que caíram com sua nave em algum local no Novo México. Pedi ao homem mais detalhes da notícia e ele disse que passou na televisão, onde viu tudo no jornal e era verdade, pois todos assistiram os médicos abrindo com suas ferramentas o peito dos extraterrestres, que morreram na queda da aeronave. Depois de eu ter comentado eufórico, a novidade da chegada de extraterrestres com uns quatro ou cinco companheiros, que nem ao menos sabiam direito o que era um alienígena, me dei conta de que ali no garimpo, eu era o único que lamentava não estar na cidade, para dar boas vindas aos recém chegados das estrelas.
       Eu ainda era menino quando vi pela televisão os americanos afirmando terem pisado pela primeira vez na lua, enquanto objetos não identificados eram avistados voando pelos céus do mundo todo e, nesta época, até mesmo as minhas tias viram um disco voador passando lá por perto de casa. Novas tecnologias surgiam todos os dias naqueles tempos, sacolas plásticas, energia nuclear, satélites artificiais, raio lazer e computadores. Um piloto comercial aposentado, amigo da família, relatava estranhos avistamentos de óvnis  durante os anos em que voou pelos céus do Brasil e do mundo. Livros sobre discos voadores, aparições misteriosas e deuses astronautas, surgiam todos os dias nas livrarias, enquanto especialistas confirmavam, autoridades negavam as aparições e assim alguns da minha geração cresceram  esperando a qualquer momento um contato imediato.
      Sentado num tronco caído ao lado da pequena e isolada aldeia ianomâmi, sendo observado de longe pelas crianças curiosas, o estranho recém chegado, que era bem mais alto do que os índios da aldeia, tinha a pele branca, o rosto peludo e os olhos não eram castanhos como os de todo mundo, eram azuis e a arma que o estranho possuía, matava de longe, com o estrondo do trovão.  Sentado naquele tronco, eu comia as bananas verdes assadas  oferecidas por uma índia que possivelmente seria viúva, pois as jovens solteiras e as mulheres casadas nunca se aproximavam muito de estranhos. Os meus dois companheiros garimpeiros e os índios de outra aldeia que nos acompanhavam estavam numa das casas falando com o chefe, quando as crianças curiosas que me olhavam de longe se aproximavam, eu fazia um movimento brusco assustando-as, elas corriam então aos gritos para mais longe de mim, para depois voltarem cautelosas, rindo e se empurrando, esperando que eu as assuntasse novamente, já gostando da brincadeira com o recém chegado.
         Mais tarde, quando partimos, atravessamos o igarapé que corria ao lado da aldeia numa canoa emprestada e seguimos viagem entrando mata adentro, eu olhando para as crianças sorridentes, que ficaram na outra margem, falando e apontando em nossa direção, sabia que elas nunca mais nos esqueceriam e provavelmente se tivessem a sorte de continuarem isolados e protegidos pela floresta do contato com os civilizados, um dia no futuro contariam aos seus filhos do encontro que tiveram com estranhos homens de pele branca e olhos azuis, vindos de muito longe, talvez de algum lugar distante onde não existissem florestas, pois os forasteiros andavam pela mata muito desajeitados, escavando o chão da floresta com suas ferramentas estranhas  em busca de um metal amarelo, que aparentemente não tinha utilidade alguma.
       Quando um mateiro volta a olhar uma cidade grande depois de ter vivido por anos e anos na floresta, sem chefes, sem relógios, sem muros, sem prédios, sem portas e sem chaves, pode, talvez, ficar perplexo, como se estivesse voltando ao ponto de partida e vendo-o pela primeira vez. Cercado pelo acúmulo do desnecessário, barulhento, insano e desordenado , perceberia contrariado que as cidades costumam crescer do rabo para trás, caminhando cambaleante  e às cegas, sempre na direção oposta dos olhos e do sustentável, pisoteando a própria cauda, distanciando-se para sempre da pequena vila que fora um dia,  quando teria surgido num passado nem tão distante, pequena e tranquila em torno do porto, à beira de um rio de águas cristalinas, onde suas crianças felizes se banhavam ao entardecer, assim  como fazem até hoje as sorridentes crianças índias nas aldeias da floresta amazônica, as mesmas que ao verem pela primeira vês um civilizado, olham com espanto, como se fossemos recém chegados de um outro mundo.
         Os antigos caminhos da selva, que seguem pelas montanhas em direção ao norte, são ocasionalmente encontrados pelos mateiros que passam abrindo picadas no coração da floresta. Velhas estradas abandonadas há muitos séculos, onde a vegetação exuberante cresceu escondendo dos olhares desapercebidos os últimos vestígios do poderoso império Inca, que estendia seus tentáculos também em direção ao sul, até muito além de seus domínios.
        Das grandes cidades de pedra do norte, vinham os soldados dos imperadores buscarem  nas terras distantes, tudo aquilo que já não dispunham mais em abundancia nas cercanias de suas cidades barulhentas e populosas. As pequenas e aparentemente frágeis aldeias do sul - que por certo foram também naqueles tempos massacradas, escravizadas e afugentadas para longe dos caminhos do império - depois de séculos ainda continuam existindo até hoje, como sempre foram, um pequeno agrupamento de pessoas livres, vivendo em perfeita harmonia com a floresta.
        Em contrapartida, do grande e poderoso império Inca, existente num passado nem tão distante, sobraram apenas ruínas de pedras, testemunhas silenciosas de um passado sem glória, onde os pobres e oprimidos construíam palácios e templos desnecessários, escravizados pela elite poderosa e inconseqüente, cuja ganância cega e insaciável fechara os olhos para o futuro insustentável e desastroso, onde o desfecho único e inevitável se repete sempre, resultando na queda iminente de todos os impérios e no seu total esquecimento, cujo exemplo explícito pode se espelhar nas inúteis e silenciosas sombras das ruínas  dos antigos templos e palácios espalhados pelo mundo.
        Quando um homem que viveu na mata por muito tempo retorna e vê a cidade grande de novo, tendo que atravessar as ruas barulhentas e repletas de carros, correndo com seus sapatos desconfortáveis, novos ou emprestados, para não ser atropelado, desviando-se a todo o momento dos pedestres que passam com olhares sem expressão, espremendo-se pelas calçadas sujas, mais parecendo zumbis desprovidos de propósitos, caminhando à esmo. Sente medo, não medo de cobra, de onça ou de índios, mas sim o mesmo medo que as cobras, as onças e os índios sentem dos homens civilizados

sábado, 23 de junho de 2012

História de Onça - Parte XXI


       
    TERRITÓRIO IANOMAMI

             Acreditando que ninguém possa partir e nem regressar sem levar ou trazer penas nas asas da siricora, respondi a muitos anos, quando um amigo, no leito de morte, me perguntou olhando nos olhos se eu acreditava na existência Deus, que sim. Achei melhor dizer que sim, porque se eu dissesse que tanto faz, não iria ajudar em nada, naquela hora, em que ele teria que enfrentar a onça inevitavelmente, com ou sem Deus, levando junto as penas da siricora, que nunca seriam esquecidas na beira do caminho que por acaso houvesse e não faria diferença então existir, ou não, recompensa alguma para quem deixasse o coração para trás ao partir, assim como ele teria  infelizmente que fazer logo.      
            Assim, como o vento breve desliza nas asas ligeiras da siricora, se faz quando urgem às horas, quando os sonhos e as esperanças já não dispunham de tempo, é que se vê com clareza explícita a plenitude, na magnífica simplicidade do lago, e de olhos arregalados ficamos saltando dentro da água, como fez o sapo que a bruxa falou outro dia, querendo ver também onde estava o tal lago, cuja beleza incomparável ouviu dois pescadores comentando, inconscientemente convictos de que não há nada do lado de fora de nossas próprias recordações, de nosso próprio, único e finito lago.
          Na cantina, pedi papel e lápis para escrever os confusos números dos telefones de conhecidos da cidade, que naquelas condições mal recordava e me deitei novamente na rede, preocupado com a demora do Chaguinha, o piloto da voadeira que ainda não voltara dos garimpos da mata, onde fora fazer algumas cobranças, antes de voltar para a cidade.
        Quando escureceu e começaram a chegar os primeiros fregueses, o cantineiro ligou o rádio á todo volume. Logo a cantina estava novamente lotada e alguns garimpeiros jogavam baralho, á peso de ouro, em meio a gritaria de homens e mulheres que tentavam se fazer ouvir, enquanto bebiam escutando a música num volume exagerado. Mantendo os olhos fechados, fingia não escutar os comentários que fazia cada garimpeiro que entrava, vindo diretamente me olhar na rede antes de começar a beber.
         Era terrivelmente angustiante aquela espera, em meio ao barulho ensurdecedor da cantina, a falta de ar, a insônia e as dores insuportáveis, mantendo incontroláveis meus pensamentos desordenados que não me davam trégua, não me permitindo adormecer e nem tão pouco acordar em meio aquele horrível pesadelo. Por fim, o dia amanheceu sem que eu percebesse e quando à noite chegou novamente, alguém sacudindo a minha rede falou que o Chaguinha acabara de voltar da mata e que partiríamos ao amanhecer. Foi essa a última lembrança lúcida da corrutela do garimpo Santa Rosa.
         Na madrugada seguinte antes de partirmos, quando fui carregado pelos passageiros até a voadeira e deitado no assoalho sobre um pedaço de lona, eu já estava quase em coma, despertando apenas quando sentia dores insuportáveis nas costas, causadas por algum movimento brusco da canoa descendo as correntezas, ou quando a água do rio, em alguma corredeira, respingava sobre o meu corpo febril. Às vezes fazia silêncio e eu abrindo os olhos me via só na canoa, pois o Chaguinha parava em alguns pontos do rio e entrava na mata, seguindo pelas trilhas que levavam até aos garimpos, onde buscava outros passageiros que iriam com ele para a cidade ou para fazer a cobrança de algum ouro devido. Enquanto isso os outros passageiros esperavam pelo Chaguinha na sombra da mata da beira do rio, enquanto eu deitado no fundo da canoa sem poder levantar, já não podia suportar a dor e a terrível falta de ar causada pela anemia profunda, que não oxigenava suficientemente o meu sangue..
            É difícil aceitar o que não se pode mudar, demorei muito para acreditar que aquela malária tinha vindo mesmo para ficar e quando contrariado, tive que aceitar a cruel realidade, primeiro senti raiva, por ter que desistir radicalmente de todos os meus planos, depois piorando mais e mais a cada dia, tive que começar a pensar na morte, como uma possibilidade imediata. Então a raiva foi aos poucos cedendo lugar a uma tristeza melancólica, cuja saudade dos amigos e familiares doía no início, muito mais que a própria dor. Por fim quando a dor se tornou insuportável a ponto de sufocar os últimos vestigios de esperanças, a desconhecida e sinistra morte, passou a ser a última e única alternativa possível contra aquele insuportável sofrimento, o último refúgio.
            Na última vez em que abri os olhos durante aquela viagem, a voadeira estava parada num remanso do rio. Eu estava só, pois os passageiros tinham descido para esticarem as pernas, caminhando pela mata. Tinham deixado uma espingarda encostada no banco da voadeira, quase ao alcance da minha mão. Então de repente pensei em terminar ali aquele sofrimento e até hoje ainda não sei se o teria feito, pois naquele momento uma mulher desconhecida, da qual nunca vi o rosto, subiu na canoa, sentou ao meu lado colocando minha cabeça no seu colo e me serviu delicadamente algumas colheradas de mingau de farinha de trigo. Ainda lembro de sua voz dizendo carinhosamente, que já estávamos quase chegando na boca da mata.
            Na hora certa, até mesmo a morte se faz necessária, como nessa historinha de onça que o sulista conversador me contou, naquela noite em que passou com seu companheiro, na minha caverna na barranca do rio Maú. Depois de comerem todo o trairão que fora assado por mim, na noite anterior, nos sentamos na areia, ao lado da fogueira de frente para o rio, vendo as águas recém caídas da cachoeira, passando com pressa pelo clarão do fogo refletido no rio. Os dois de barrigas cheias, depois de dias de fome, estavam eufóricos por terem saído são e salvos de um problemático garimpo de diamante, em que estavam trabalhando. O homem moreno de bigode negro era um bom contador de historias e uma das muitas que ele contou naquela noite, me fez rir muito também. Iniciava com um fazendeiro com um revolver na cintura, sentado na varanda de sua casa grande, de frente para a estrada, por onde passava naquele momento um andante desconhecido e o fazendeiro sem ter com quem conversar, resolveu chamar o homem, oferecendo-lhe sombra e água fresca. O desconhecido que aceitou prontamente o convite, olhou para dentro da casa antes de sentar-se, e vendo pendurados nas paredes vários couros de animais caçados pelo fazendeiro, imediatamente se pós a contar, sem parar, histórias de caçadas impossíveis, fazendo com que o fazendeiro se arrependesse mil vezes de ter convidado o mentiroso a entrar.
            Quando o feijão com jabá começou a cheirar na cozinha, o dono da casa que escutava calado as mentiras do desconhecido, imaginava como faria para se livrar do intruso mentiroso antes do almoço ser servido, sem ter que ser muito descortês.  Quando falhou a espingarda do andante, que se deparara na encosta de uma montanha, com uma onça pintada enorme, tendo que fugir correndo para dentro de uma caverna, sendo perseguido de perto pela onça e encontrando ao chegar no fundo da caverna escura, mais meia dúzia de olhos vermelhos de outras onças que lá se encontravam, o fazendeiro perdendo a paciência aproveitou a oportunidade, sacando então seu revolver e encostando o cano na cabeça do caçador de onças, perguntou enraivecido. - Não vai me dizer que tu escapou dessa, seu filho da puta? O mentiroso pego de surpresa pela reação inesperada do fazendeiro e sem encontrar nenhuma outra alternativa melhor no momento, respondeu. - Não seu, eu não escapei não, naquela vez eu morri e... As onças me comeram !
          
          Todo mateiro amazonense sabe o que é um terreiro de curupira, mesmo que não saiba quem ou o que deixa aquele pedaço de chão em meio à selva, com o diâmetro de dezenas de metros completamente limpo, varrido sem nenhuma folha caída, seca ou verde. Dizem que é o curupira que mantêm o seu terreiro caprichosamente limpo e varrido, e por incrível que pareça a mata parece ser mais sombria nas cercanias destes terreiros, mais silenciosa e misteriosa. Talvez seja apenas superstição, mas quem andando só, no centro da mata, encontra um terreiro destes fica admirado, olhando aquele círculo completamente varrido, e mesmo sem querer redobra os cuidados aguçando os sentidos, escutando atento a mata sombria e silenciosa, esperando instintivamente a qualquer momento o ataque surpresa do curupira dono, do terreiro.
             Naquele dia nublado, quando ouvimos o grito gutural aterrador vindo da picada recém aberta, nos jogamos imediatamente no chão, pensamos que fosse um ataque surpresa de índios hostis, pois o som grotesco que ouvimos parecia ser quase humano, sem ter para onde correr nos preparamos para enfrentar o pior, ali mesmo onde estávamos, com as únicas armas que tínhamos e a quantidade de coragem que dispúnhamos. Havia muitas onças naquela região da floresta, localizada nas encostas de um enorme platô existente na fronteira com a Venezuela, que do avião dava para ver, estendendo-se a perder de vista, como uma enorme mesa verde e plana, sendo aquele imenso platô mais alto que as montanhas localizadas do lado brasileiro.
            Não sabíamos que naquele mês as onças entravam no cio e assim, como todos os gatos, emitem sons grotescos durante o acasalamento, por isso quando tornamos a ouvir novamente o grito desconhecido, já um pouco mais distante de onde estávamos e mais parecido com o esturro de uma onça pintada, o Louro convidou-me para investigarmos e saber se era ou não uma onça. O Louro levava uma espingarda velha, calibre vinte, que quando disparada não sacava o cartucho e eu tinha apenas quatro balas no revólver. Meio à contra gosto com o facão numa das mãos e o revolver na outra, segui o Louro mata à dentro, enquanto o Bernardo e o Goiano que estavam desarmados ficaram nos esperando na picada. Tínhamos andado uns cem metros pela mata, quando nos deparamos com um grande terreiro de curupira, o círculo varrido no meio da mata alta, tinha no centro uma árvore caída que somente a parte mais grossa do tronco ainda não tinha apodrecido. Quando entramos no terreiro, o Louro que seguia na frente esturrou imitando uma onça e imediatamente do outro lado, no início de um declive, descendo em direção á uma grota, uma onça pintada respondeu ao chamado, esturrando também.
            Pronto, não era o mapinguari, nem índios brabos, já sabíamos de quem eram aqueles gritos desconhecidos, mas mesmo assim resolvemos atravessar o terreiro do curupira para tentar ver a onça. O Louro apressou o passo se distanciando uns dez metros de mim e quando comecei a segui-lo tive a leve impressão de que alguma coisa muito rápida tinha se movimentado mais na frente, perto do tronco caído, podia ser uma semente ou galho seco caindo das árvores, um pequeno pássaro em fuga, ou uma alguma brisa batendo na vegetação rasteira.  Não dei importância, me distraindo também, quando o Louro estava quase chegando de fronte ao troco apodrecido, com uma mutuca grande que pousou na minha perna. Parei abaixando a cabeça para tentar matá-la com o facão e foi neste exato momento que ouvi o grito desesperado do Louro e o estampido da espingarda. Instintivamente levei os braços na direção do disparo, apontado o facão e o revólver para a sombra rápida e silenciosa que voava como uma flecha em minha direção disparando ao acaso três tiros simultaneamente, sem ter tido tempo de sair do lugar e nem mesmo ver o que estava nos atacando.
             Ninguém pode prever ao certo, qual será a reação do homem quando é pego de surpresa pelo inesperado. Nestas horas, onde não há espaço, nem tempo para nada, que não seja o que realmente é, pode surpreendentemente sobrar valentia para um covarde e faltar coragem para um valente, que reage, ou não, inconscientemente e independentemente da sua própria vontade.
         O velho Raimundo, o amazonense que teve o pé mastigado pelo jacaré no curral, me contou que quando criança seu pai e seus vizinhos criavam muitos porcos, numa determinada época do ano levavam a porcada de canoa para as ilhas, quando os buritizais estavam com frutas. Lá em meio à fartura de buritis maduros, os porcos engordavam rapidamente, isso se a onça pintada que é exímia nadadora não os comessem antes, por isso, quando começaram a sumir os porcos de uma das ilhas, os vizinhos se reuniram, pegaram as espingardas e foram caçar a onça.
          Na ilha não era muito grande, os homens se espalharam pela mata, para tentar atirar na onça antes que ela atravessasse o rio nadando, fugindo para outra ilha. Um dos beiradeiros,  justamente o que levara junto na caçada o filho ainda menino, foi quem se deparou primeiro com a onça acuada e quando levantou a espingarda para atirar, meteu acidentalmente um dos pés numa toca de paca ou de tatus, caindo de costas indefeso, foi atacado pela onça, enquanto seu filho pequeno, que trazia na mão um facão, tentava defendê-lo golpeando as costas da onça pintada. Quando a onça se voltava contra o menino ele recuava, quando a onça voltava a atacar seu pai, ele voltava para defendê-lo. Os outros caboclos ouvindo o rugido da onça e os gritos do menino  e do pai, correram para ajudar e o primeiro a chegar ao local, foi o irmão do beiradeiro que estava sendo atacado. O mais surpreendente foi, que quando os outros homens também chegaram correndo ao local do ataque, encontraram apenas o menino enfrentando a onça e mesmo gravemente ferido ainda lutava defendendo o pai, enquanto seu tio com a espingarda na mão, perplexo, olhava a cena paralisado, sem ter feito nada para ajudar o irmão e o sobrinho.
            Os beiradeiros depois de matarem a onça, levaram os dois feridos para casa, o menino sobreviveu, seu pai não resistiu aos ferimentos e morreu alguns dias depois, sem nunca entender por que seu irmão não atirou na onça... 

domingo, 17 de junho de 2012

História de Onça - Parte XX


      GARIMPEIROS

         A mais longa das noites se fora, e era ensurdecedor o canto da passarada ao amanhecer  quando o Oliveira foi buscar água na cacimba, para preparar o café. O cheiro forte da fumaça da fogueira recém acesa, da sobra de comida requentada e do café me causava náuseas. Com os olhos fixos na mata, não escutava e nem queria escutar nada, nem mesmo sobre o que os três homens falavam durante o café da manhã e quando o Oliveira se aproximou dizendo que resolveram levar-me até o garimpo Santa Rosa, não respondi, nem discordei, sem me importar com nada mais além da dor que sentia no meu abdômen, cada vez mais inchado, continuei olhando a mata recém a amanhecida, cercando o nosso acampamento, parecendo uma muralha sombria que a noite passada deixara para trás, separando-nos do resto mundo.
            Quando que se chega ao final da picada, sem rancho e sem ouro, quando o jamanchim vazio já não incomoda mais, o fardo mais pesado no caminho de volta, e que nunca se pode deixar para trás é a desilusão. Nestas horas quando os sonhos batem asas como um bando de jacamins em fuga, a desilusão pesando como azougue nas costas do mateiro, estica as alças do jamanxim, o cansaço e a desesperança tornam o caminho de volta mais longo e sem nenhum propósito para quem regressa da mata, de mãos, bolsos e sonhos vazios.
              O Bernardo que gostava de brincar, quando alguém se lamentava de algum infortúnio dizendo, que quando as coisas parecem não estar bem, se deve olhar melhor, para então perceber que na realidade, estão sempre muito pior do que a gente pensa, falou para o goiano que se lamentava da nossa sorte naquele dia, quando retornávamos pela mata sem ouro, que no futuro ainda sentiríamos saudades até dos piores dias em que passamos na selva. Fiquei pensando no que o Bernado falara, enquanto lembrava do que me disse certa vez, um velho chamado Garcia, que o homem sempre vê o passado melhor do que foi, o presente pior do que é, e o futuro melhor do que será. Sim, o Bernardo tinha razão, pois quanto mais nos distanciamos do passado, mais valorizamos o que no futuro jamais teremos novamente. 
           Resignados ou não, no final da trilha, teremos que fazer como fez o caboclo, que na curva do caminho, bem em frente a uma grande pedra retangular, parecendo um altar, se deparou com uma onça pintada. Quando a onça franzindo a testa se preparou para atacar, o caboclo que trazia apenas um pequeno canivete, pronunciou sem querer a palavra virgem, nesse momento a virgem Maria se materializou sobre a pedra retangular. Sem tirar os olhos dos olhos da onça, o caboclo desconfiado aproveitou para fazer três pedidos para a Virgem Aparecida, que se mantinha lá  calada sem se manifestar: - Se você está do meu lado, faça com que eu mate essa onça na primeira canivetada,  se por acaso você está do lado da onça, faça com que ela me mate também na primeira patada para que eu não sofra, mas se você não estiver nem do meu lado e nem do lado da onça, senta aí, pra ver a porrada que vai sair aqui e agora ! 
       Todos os caminhos, se cruzando ou não levam sempre ao mesmo lugar, onde inevitavelmente a realidade da onça, despida de qualquer ilusão terá que ser enfrentada um dia, sem que o caboclo jamais saiba de que lado está, o que nunca pareceu estar, nem do lado da caça e tão pouco do lado do caçador.
           Já era quase meia tarde quando o Oliveira, saindo com os outros dois homens de dentro da escavação no pé da montanha, sacudiu a minha rede, dizendo que me levariam até a beira do rio. Ajudado pelo Oliveira, joguei os pés para fora da rede me levantando vagarosamente e sem olhar para trás segui pela trilha em direção ao rio, sem esperar pelos outros que me chamavam para que os esperassem. Enquanto o Oliveira desarmava as redes e preparava as coisas para a viagem, eu, raivoso e desorientado seguia cambaleante pela mata alta e silenciosa, sem saber e nem me preocupar se chegaria ou não ao rio, pois as dores no meu abdome, a febre, a falta de ar, a diarréia quente e fina escorrendo perna abaixo, me deixava quase inconsciente. O regresso, a distância e o tempo, já não faziam  nenhum sentido no meu estado delirante. Sempre depois de subir alguma elevação pelo caminho, eu me jogava no chão completamente exausto e ficava imóvel, então andava um pouco mais, até cair novamente e ficar olhando para cima vendo as árvores dançando sob o fundo azul do céu silencioso da floresta.
             Na beira do rio, os três homens, forraram o chão com folhas verdes onde me deitaram, enquanto levavam a canoa, o combustível e o motor para a água. Me colocaram depois deitado sobre uma lona plástica no fundo da canoa e o Oliveira seguiu remando rio abaixo em direção ao Santa Rosa, enquanto o Pedro e o velho voltavam para o acampamento no sopé da montanha. 
         O sol forte, que amolecera a lona plástica no assoalho da canoa e queimava a minha pele suada, não me aquecia, tremendo de frio eu quase não entendia o que o Oliveira falava enquanto remava e quando eu tentava responder alguma pergunta sua, minha língua inchada e a boca seca não me deixava falar e tudo se tornava distante de mais, enquanto a conoa descia silenciosa o rio Pacacibi.
        Mais tarde quando sol poente dourou as águas do rio e a noite chegou silenciosa e estrelas enormes surgiram no horizonte distante por cima da mata, no final do estirão, o Oliveira ligou o motor de popa acelerando a voadeira, que com pouco peso ganhou velocidade rio abaixo. A proa da canoa, quebrando o banzeiro, respingava a água quente do rio sobre mim, mais parecendo pedras de granizo derretendo gelo sobre meu corpo febril, então o Oliveira percebendo, me cobriu com a lona plástica que agora era gelada e eu fiquei tremendo em silêncio, olhando para o céu estrelado sem poder dormir e nem acordar, assim como acontecia  há muitas noites, me sentindo nem vivo, nem morto, e sem poder controlar meus pensamentos confusos que viajavam desordenadamente no tempo, trazendo lembranças distantes, como naquela manhã quando me sentei na laje de pedra, ao lado do homem de calção vermelho que não parecia estar morto.
        Ele tinha sido colocado ali, ao nascer do sol sobre a laje, na mesma posição em que fora encontrado no fundo do igarapé, de bruços apoiado no cotovelo direito e no braço esquerdo estendido com a mão aberta, sustentando sua cabeça e parte do tórax que curvado não tocava o chão, numa posição de quem está tentando se levantar, para depois sair andando normalmente.
          De quando em quando, algumas gotas de água com sangue, saindo de suas narinas, pingavam sobre a laje, enquanto eu olhava impotente para o homem morto, vendo a mim mesmo no futuro. Não resisti a tentação de convidá-lo a levantar-se quando me retirei, antes que outros curiosos aparecessem, quase acreditando que ele realmente pudesse, pois para tanto, parecia não faltar-lhe mais nada além de um leve sopro de vida. Palavra que até hoje eu não sei definir e da qual nos recusamos definitivamente a aceitar que seja finita, fechando nossos olhos para tudo que não seja aquilo que desejaríamos ver, acreditando sem contestação em todas as histórias de onça que prometam ultrapassar a barreira do inevitável. Como acreditava aquele garimpeiro que viajava ao meu lado no banco da voadeira, quando voltávamos da mata para a cidade, dizendo que ainda devia um ouro a outro garimpeiro que tinha sido morto por aqueles dias no garimpo e como acreditava que dá azar ficar devendo ouro para as almas, o homem com medo da morte, pretendia pagar sua dívida comprando velas com as gramas de ouro do falecido, que acenderia durante a noite para iluminar o caminho ao paraíso. 
          Durante a viagem, me esforcei ao máximo na tentativa de conseguir transformar em doces para as crianças, aquelas velas desnecessárias que o garimpeiro pretendia comprar quando chegássemos na cidadezinha. Outro dia andando pela cidade, eu que até já tinha me esquecido das velas do falecido, encontrei pelas ruas dezenas de crianças pobres sorridentes, que saiam de uma escola, com as mãos cheias de guloseimas, o garimpeiro supersticioso tinha pagado sua dívida e aquele tinha sido um dia de sorte para as crianças, porque é tarefa difícil abrir os olhos da alma para a realidade.
          O Oliveira me sacudindo com a ponta do pé, enquanto dirigia a voadeira, gritou que estávamos chegando ao garimpo Santa Rosa e já podia ver ao longe as luzes da corrutela. Custei a entender oque ele dizia, meus lábios estavam secos e rachados da febre e o atrito do assoalho da canoa com o banzeiro do rio, me causava horríveis dores nos rins. Sentindo-me muito fraco percebi que estava quase entrando em coma e lembrando que não trazia documentos, me preocupei com a possibilidade de chegar na cidade inconsciente e sem identidade ou números de telefones. Chamei o Oliveira, que parecia não ouvir a minha voz soando fraca e sendo abafada pelo ruído do motor da voadeira deslizando sobre as águas do Pacacibi, cujo meus olhos confusos viam correr desniveladas, como se uma das margens do rio fosse bem mais alta e a canoa pudesse virar a qualquer momento.
         No porto da corrutela, os curiosos me levaram até a cantina onde armaram minha rede nos caibros do telhado de ubim, enquanto perguntavam para o Oliveira quem eu era, davam seus diagnósticos e opiniões, dizendo entre outras coisas que ovelha não é pra mato e que pelo meu estado a Rosinha irmã do Oliveira provavelmente ficaria viúva pela segunda vez.
              Mais tarde, o Oliveira, conseguiu com algum garimpeiro, dois comprimidos de prima quina e dentro de algumas horas a febre diminuiu consideravelmente, sentido melhora me sentei na rede olhando ao meu redor. A cantina estava vazia, os garimpeiros estavam espalhados procurando sombras pelos outros barracos localizados na beira da mata, de onde eu podia escutar suas vozes. Percebendo o meu estado desagradável e a sujeira de minha roupa, resolvi ir até o rio banhar-me. Desci devagar a barranca e entrei na água quente que para mim parecia gelo, estava me lavando quando o Oliveira chegou no porto perguntando se eu tinha melhorado.
       O Oliveira era um caboclo alto e forte, sempre sorridente e simpático, bebia durante o dia todo, quase todos os dias, mas não demonstrava nenhum sinal de embriaguez, sendo traído apenas por seus cabelos lisos, que depois de muitas doses costumavam cair, com mais freqüência, sobre seus olhos amendoados e travessos. Enquanto eu mentia que estava me sentindo bem melhor, ele que já estava com os cabelos nos olhos, disse não ter conseguido mais nenhum remédio contra falcíparum, mas falara com o Chaguinha, um piloto de voadeira conhecido, que voltaria na manhã seguinte para a cidade e prometera me levar junto.
            Já estava quase anoitecendo quando o Oliveira, depois de beber quase todas, voltou para a montanha do Pedro Maranhão. Fiquei sentado no porto, olhando a voadeira sumindo na curva do rio, deixando para trás, soando por cima do tapete verde da floresta o ronco do motor de popa, que em pouco tempo também não se ouviria mais.
          Quando não ouvi mais o som distante do motor da voadeira, ainda fiquei sentado um tempo, olhando o rio correndo sem parar, silencioso em meio à floresta. Depois voltei devagar para a minha rede na corrutela, pensando na música que o Oliveira costumava cantar para a Corina sua avó sempre que se despedia. “Adeus Corina que eu já vou embora, levo pena e trago pena, nas asas da siricora...” 
           A Corina, a bisavó do Oliveira, era uma índia peruana, como ela mesmo me contou no dia em que a conheci, morando numa casa da periferia da capital. Seus cabelos lisos e brancos caíam escorridos, sobre o bronze envelhecido de sua pele centenária e em suas orelhas brilhavam dois brincos de ouro peruano, onde duas pedras de esmeraldas jogavam lampejos esverdeados, nos fios de cabelos brancos mais próximos.
         Naquele dia enquanto conversávamos, chegou um ancião vindo da rua, que sem dar muita atenção para as visitas se deitou rapidamente na rede, que estava armada na varanda. Percebi que o velho de cabelos brancos, curtos e espetados, tinha o braço esquerdo defeituoso, sendo pequeno como o braço de uma criança. Pensei que fosse o marido da Corina e estranhei quando ele pediu café para ela chamando-a de mamãezinha. Depois que a velha peruana serviu o café com biscoito como quem cuida de uma criança, voltou a sentar-se ao meu lado e então me contou como foi o nascimento dele, seu filho, que já estava dormindo na rede depois de ter tomado o café e devolvido a xícara para a mãe guardar. Foi um parto difícil me disse ela, era ainda muito jovem quando engravidou e durante o parto tiveram que puxar a criança pelos braços O recém nascido chorava muito e logo a mãe percebeu que ele não movimentava um dos bracinhos. O pai da Corina então mandou que ela fosse procurar ajuda de um curandeiro que vivia a alguns dias de viagem, rio a cima. Se não me engano, foi no rio Javari que a Corina remou sem parar, até encontrar o tal curandeiro, mas quando ele fez a criança gritar desesperadamente de dor, a Corina sem pensar duas vezes, tomou seu filho dos braços do curandeiro e voltou pra casa chorando também. 
        O tempo passou e o menino cresceu normal como todos os outros meninos da aldeia, com exceção do seu braço esquerdo que ainda continuava assim pequenino, quando eu o conheci, com oitenta e seis anos.   A última vez que vi os brincos de esmeralda da Corina foi num hospital onde ambos estávamos internados, ela saindo com dificuldade de seu leito foi até o quarto onde eu estava, se aproximou da minha cama e colocou sua mão magra sobre a minha perguntado se eu estava melhor. A luz amarelada do sol da manhã, entrando pela janela envidraçada, iluminava as costas magras da Corina, cujos cabelos brancos e sua pele de bronze brilhavam mais que seus brincos de esmeraldas.  “Adeus Corina que eu já vou embora, levo pena e trago pena, nas asas da siricora...”

sábado, 9 de junho de 2012

História de onça - Parte XIX


           
    BALÇAS DE GARIMPO

       
          Quando amanheceu o dia, o Oliveira me ofereceu café, chá de açaí e alguma coisa para comer que eu recusei mal humorado. Falou entre outras coisas que eu não iria me recuperar, minha malaria era falcíparum e o quinino não combatia, teria que voltar para a cidade, falaria com os outros para combinar o que deveriam fazer. Eu sabia que exceto o Oliveira, os outros dois garimpeiros não estavam nem preocupados com a minha sorte, pois o pior do trabalho já estava feito e quanto menos sócios para repartir o ouro no final , melhor seria.
               O combustível do motor de popa que nos restara  era pouco, colocar a canoa no rio e ligar o motor de para seguir em direção a cidade, poderia denunciar a nossa presença e se fossem descobertos, os garimpeiros que ficassem trabalhando, talvez tivessem que fugir, deixando para traz o ouro da montanha. Então quase sem poder falar, com minha língua cada vês mais inchada, pedi para o Oliveira esperar mais uns dias, para ver se talvez por sorte eu melhorasse um pouco.                Depois do café, os três foram trabalhar e eu fiquei na rede tremendo de frio, já sem forças para me debater e espantar as abelhas e os outros insetos vindos da mata, pousando no meu corpo suado e mal cheiroso. Minha respiração se tornara ofegante, minha língua seca parecia não caber dentro da boca amarga, enquanto meu fígado aumentava de tamanho, me sufocando. Ouvindo os homens que trabalhavam, conversando e rindo, eu sentia raiva, como se alguém tivesse culpa do meu estado, enquanto maldizia minha sorte, vendo todos os meus planos queimando de febre.
             A malária é uma enfermidade cruel que pega o caboclo de surpresa. Outro dia, eu estava esperando carona, para ir em direção a um garimpo no Pico da Neblina na serra do Imeri, quando um garimpeiro rodado, que estava também esperando carona no mesmo posto de gasolina, depois de me olhar  por algum tempo, perguntou se eu estava com malária, me achando esverdeado. Sem sentir nada anormal eu não acreditei no desconhecido, seguindo viagem. Desmaiei alguns dias depois no caminho, tendo que voltar para um hospital em Manaus.
          Alguns tipos de malárias são lentos e vão aos poucos enfraquecendo as vítimas, que vão esverdeando, enquanto a febre pontual chega sempre na hora certa, debilitando cada dia mais o malariento, que vai acostumando com a fraqueza constante e com a febre que vem e vai, deixando o “bucho do caboclo cada dia mais quebrado”, as pernas mais finas e os olhos mais amarelados. Nas famílias de beiradeiros malarientos do interior, às vezes a febre chega ao mesmo tempo em todos, sem que ninguém fique de pé, que possa buscar ao menos água para os outros. Outras malarias são mais rápidas, pegando as vitimas de surpresa, como aconteceu com aquele garimpeiro que na mesma semana que contraiu, malaria voltou de avião para a cidade. Chegando numa sexta-feira e ainda se sentido bem, resolveu primeiro beber umas durante o fim de semana, planejando começar o tratamento na segunda feira e vindo a morrer de malária domingo de manhã.
          Num outro garimpo do norte do Pará, um garimpeiro voltava só pela mata, em direção  a pista de pouso, onde pegaria um avião para ir  tratar-se da malaria na cidade. Sofrendo um desmaio e perdendo os sentidos caiu na picada, onde passou a noite desacordado, quando despertou no outro dia pela manhã, soube que nunca mais poderia fechar a boca , as formigas tracuás que gostam de sal, tinham comido seus lábios e desfigurado seu rosto.
            Nas margens do rio Urariquera, na década de oitenta, muitas pistas de pouso clandestinas foram construídas pelos garimpeiros, que riscavam a floresta abrindo inúmeras picadas que se cruzavam em meio à mata, atravessando os grotões que eram esburacados pelas picaretas dos pesquisadores de ouro. Uma árvore enorme foi derrubada durante a construção de uma dessas pistas, ficando caída ao lado da clareira, sem que pudesse ter sido removida e seu diâmetro chamava a atenção dos recém chegados, que nunca puderam passar por cima dela, cujo tamanho descomunal acabou dando o nome para a pista, que se chamava pista do Pau grosso. 
          Na cabeceira da pista, dentro de uma clareira arredondada, um helicóptero barulhento fazia todos os dias muita poeira, pairando baixo sobre motores, bombas e outros equipamentos, que eram colocados dentro de uma rede e levados pendurados no helicóptero para diversos garimpos espalhados pela floresta. Enquanto durante todo o dia, o helicóptero ia e voltava, fazendo as chamadas pernas, dezenas de aviões pousavam e decolavam na pista poeirenta, levando e trazendo da cidade garimpeiros, mulheres, alimentos, ferramentas e motores desmontados, que eram descarregados na beira da pista e de onde eram retirados e transportados pelos diaristas recém chegados¨, que trabalhavam por um grama de ouro ao dia, enquanto não encontravam trabalho fixo nos garimpos. 
         Em meio ao tumulto formado por centenas de pessoas chegando e saindo da pista, nos aviões, das lanchas no rio, ou a pé vindos da mata, bebendo nas cantinas, escutando músicas muito bregas a todo volume, disparando as armas irresponsavelmente em qualquer direção, bêbados e drogados, voadeiras aceleravam seus motores no porto, aviões aquecendo os motores aceleravam também forte na cabeceira da pista, antes de decolarem, enquanto outros sobrevoavam a clareira, esperando desocuparem a pista. para poder pousarem também e na confusão ensurdecedora que se formava, não eram incomuns os atropelamentos de pessoas por aviões. Quando eu estava por lá vi, um piloto norte americano, que pousava seu avião, atropelar dois carregadores, que atravessavam a pista levando um compressor nas costas, um deles morreu na hora, tendo o rosto partido em dois na altura da boca, o outro foi levado de avião muito ferido para a cidade. O piloto gringo, chamado Bill, passou uma semana dormindo e comendo no meu barraco, enquanto remendava seu avião com latas velhas de azeite. Um dia acelerou ao máximo seu avião remendado e mesmo sem rádio, decolou quase batendo na copa das árvores no início da pista, enquanto nós observávamos ele partindo, vencendo com dificuldade o penhasco íngreme da primeira montanha, seguindo voando em direção à cidade. Nunca soube se ele chegou lá, talvez tenha conseguido voltar, o que não aconteceu com muitos dos aviões e helicópteros que por lá voavam. Não longe dali entre as ilhas, um mergulhador de uma balsa encontrou uma corda no fundo do rio, seguindo pela corda encontrou um helicóptero que tinha desaparecido há tempos, onde o cinto de segurança  vazio do banco do piloto, continuava fechado.
              Tendo como pagar, chegar ao garimpo sempre era mais fácil do que sair, porque as pistas de pouso são geralmente muito pequenas, sendo sempre mais fácil descer do que subir. A peso de ouro os motores desmontados na cidade, eram trazidos para o garimpo em partes, junto com passageiros fumantes, sentados no assoalho dos pequenos aviões, entre os galões de combustíveis, alimentos e as peças dos equipamentos. Lá em baixo das nuvens , na mata fechada, sumindo de horizonte a horizonte em qualquer direção, cobrindo cadeias de montanhas, rios e alagados, não há espaço para nenhum avião com pane pousar inteiro. Mesmo assim eu sempre olhava para o sol de dentro dos aviões, queria sempre saber para onde voltar varando, se fosse necessário. Nos garimpos do centro da mata, aonde tudo chegava e saía nas asas do avião, nada custava menos que um grama de ouro e as balsas, compressores, motores e todos os tipos de coisas e equipamentos trazidos da cidade, que tornaram mais ricos ou mais pobres seus proprietários, mais cedo ou mais tarde, inevitavelmente seriam abandonados na floresta, era inviável levá-los de volta à cidade.
           O garimpeiro conhecido pelo apelido de Queimado, foi o único sobrevivente daquele vôo trágico, em que o piloto concordou em levar um motor de volta para a cidade. Quando os aviões decolavam nas pistas pequenas em meio as árvores, na decolagem todos os passageiros se agrupavam junto ao banco do piloto, para equilibrar o peso. Mas naquela decolagem fatal, quando o piloto acelerou e o avião ganhou velocidade na pista, o motor que estava solto no assoalho escorregou para a cauda. Sem poder interromper a decolagem, o piloto acelerou ainda mais, na tentativa de ganhar altura suficiente antes da mata no final da pista, sem sucesso. Quando a cauda chocou-se com as primeiras árvores, o avião partiu-se ao meio incendiando-se e jogando um dos passageiros da mata, que sem nenhum fio de cabelo no corpo e todo franzido, como um maracujá de gaveta, foi o Queimado único sobrevivente. 
           Naquele tempo os helicópteros, velhos e com manutenção precária que voavam como besouros sobre selva, eram verdadeiras bombas relógio, que para sofrer uma pane era só uma questão de tempo. Mesmo assim, alguns garimpeiros costumavam pegar carona agarrados a rede que levava motores e bombas de água, pendurados por um cabo ao helicóptero, embora soubessem que em caso de pane, o cabo que prende a rede é o primeiro a ser solto. Outros garimpeiros eram jogados sem pára-quedas dos aviões por vários motivos. Um destes que saltou sem pára-quedas, tinha ficado milionário poucos dias antes da queda fatal, era ele um pesquisador que encontrou, descobriu uma das grotas mais ricas daquela região.
      Quando um garimpeiro tem a sorte de encontrar muito ouro na mata, duas coisas surpreendentes acontecem ao mesmo tempo. O garimpeiro pobre e todos os problemas relativos ao pobre desaparecem num passe de mágica, surgindo então um milionário sem passado e com futuro inserto. O garimpeiro que saltou sem pára-quedas tinha esquecido do passado, quando saindo da mata, após ter descoberto o ouro, não procurou os velhos e sofridos companheiros de garimpo em quem deveria ter confiado, para garimpar em paz e em sigilo o ouro encontrado por ele. Preferindo vender a grota rica, para um dos poderosos que voavam de helicópteros por cima das arvores da floresta, protegidos por guarda costas armados de metralhadoras, buscando no final da semana nos seus garimpos ricos ,o ouro que um só homem não podia carregar para o avião..
         Depois de negociar a venda de seu ouro recém descoberto, o pesquisador foi mostrar o local, onde cavou algumas “pranchetas”, para comprovar que o ouro era mesmo muito. Comprovado o achado beberam alguns litros de uísque na mata, comemorando a descoberta, que tornaria da noite para o dia, um pobre rico e um rico ainda mais rico. No retorno para a cidade, no meio da selva, o pesquisador  que feliz fazia planos milionários para o futuro, saltou do helicóptero sem pára-quedas e o homem rico, sendo agora o único a saber onde estava o ouro descoberto pelo pobre morto, ficou mais rico ainda. 
        Se repetem sempre essas histórias de onça, onde o rico sempre fica mais rico e o pobre mais pobre, até mesmo nos garimpos que deveria ser diferente, a sorte não é como se pensa, o fator principal. Há muitos interesses escusos por trás de tudo que brilha e quase sempre quando corre a notícia de que um garimpo que causava danos ao meio ambiente foi fechado, é porque já não produzia o suficiente para pagar a todos os interessados. Tratando-se de diamantes, sabe-se que quanto menos melhor e nenhum gringo que tenha investido suas economias nas pedrinhas que brilham no escuro, quer ver um caboclo de Rondônia - onde estão mantidos em segredo uns dos mais ricos depósitos diamantíferos do mundo - com os bolsos cheios de diamantes mais baratos que o preço do mercado internacional.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

História de Onça - Parte XVIII


                                                                          AÇAI
                                                
              Naquele anoitecer, depois dos garimpeiros terem ido embora, quem não passou muito bem foi o Oliveira e no outro dia depois do almoço, quando eu o Pedro e o velho voltamos a escavar o barranco, ele ficou lavando as panelas no acampamento, se sentindo meio desanimado e foi quando gritou desesperado pela segunda vez naquela viagem. Desci correndo a encosta da montanha e fui o primeiro a chegar ao barraco, encontrando o Oliveira caído e esverdeado, fazendo vômitos, tinha sofrido um ataque repentino de malária. O velho entrou mata adentro em busca de raízes de açaí para fazer chá, enquanto o Oliveira, tomando um punhado de comprimidos de quinino de uma só vez, foi pra rede, onde passou uns dois dias, comendo pouco e bebendo muito chá de raiz de açaí. Eu, o velho e o Pedro continuamos o trabalho, quase sem dar conta das abelhas do Oliveira que se somaram as nossas, naqueles dois ou três dias em que ele passou na rede se recuperando.  
         Quando o Oliveira voltou ao trabalho recuperado, eu já vinha sentindo-me também cansado de mais, há alguns dias. O trabalho era muito forçado, pois,ou se estava cavando a terra dura com a picareta, ou jogando pazadas de terra para cima, num movimento constante e cansativo. Naquele entardecer, Pedro e eu, por algum motivo, estávamos trabalhando sós, aproveitando ao máximo a luz do dia no final fresco da tarde, e como eu sentia dores fortes entre o tórax e o abdômen, me queixei, dizendo achar que também tinha contraído malaria.
           O Pedro era um homem de uma brutalidade extrema, herdada dos primeiros colonizadores que os portugueses conseguiram se livrar, jogando-os o mais longe possível de Portugal, nos confins dos sertões do novo mundo, e que pode ser confirmada com a seguinte historinha, que me foi cantada certa vez por  um outro maranhense, que ao contrário do Pedro Maranhão, era uma pessoa muito amável. ( O pai maranhense, mandou o filho maranhense, pegar a mula maranhense, para ir buscar dois sacos de farinha de mandioca na casa de um vizinho. Na volta, a mula desembestando, rasgou um dos sacos de farinha no arame enfarpado da cerca. O filho, com raiva, sacando a faca e furou também o outro saco de farinha. Chegando em casa, com os dois sacos de farinha rasgados e vazios, foi indagado pelo pai sobre o motivo. Respondeu que a mula rasgou um e ele com raiva rasgara o outro. Seu pai, depois de ouvir a explicação, balançou a cabeça afirmativamente, dizendo que ele tinha feito muito bem, do contrário, não seria bem homem.)
          Assim era o maranhense Pedro, embrutecido, parecendo mais com uma fera sem raciocínio do que com um homem, daqueles de boa vontade é claro.  - Dor de brabo ! Foi a resposta que ele me deu naquele entardecer, quando me queixei das dores fortes que sentia por dentro do corpo e que estavam quase me impedindo de trabalhar. Dor de brabo, dor que sentem aqueles que não têm costume de trabalhar pesado. Sentindo enjôo do cheiro da comida e da fumaça, não jantei naquela primeira noite de malaria. Sobraram uns comprimidos de quinino que comecei a tomar a contra gosto, porque até a água da cacimba parecia ter gosto amargo. Enquanto os outros dormiam roncando, passei acordado a noite toda, indo da rede para o mato e do mato para a rede incontáveis vezes, com uma diarréia quente, que parecia estar me cozinhando por dentro. Uma febre forte chegou sem aviso, fazendo-me tremer de frio e quando o dia amanheceu meu corpo estava coberto de um suor pegajoso e mal cheiroso, minha boca estava seca, a língua parecia inchada, o desânimo e uma fraqueza repentinos tiravam minhas forças, enquanto a diarréia esverdeada não dava trégua, me fazendo levantar da rede e correr para o mato de dez em dez minutos.
       Depois do café da manhã o Oliveira entrou na mata atrás de mais raízes de açaí. Quando voltou preparou uma panelada de chá forte que eu passei bebendo durante toda a manhã,foi  quando tomei o último comprimido de quinino que sobrara, sem apresentar melhoras. Enquanto os três trabalhavam no barranco, eu sentindo hora frio, hora calor e fortes dores internas, como se meus órgãos estivessem fervendo numa panela de água quente, me debatia na rede espantando os insetos, ou corria baixando as calças em direção a mata, que parecia estar cada vês mais distante.         Ao meio dia o Oliveira insistiu para eu comer um pouco, mas o cheiro da comida me causava vômitos e até mesmo o chá de açaí não descia mais em minha garganta inchada. Quando chegou a noite eu não tinha mais forças para sair da rede e a diarreia contínua, em forma de um líquido verde, já sem aquele cheiro característico de fezes, molhava o fundo de minha rede de tempos em tempos.
        Tudo acontecera tão de repente, que eu me recusava a aceitar a minha cruel realidade. Estávamos na selva depois de tanto trabalho, o ouro da montanha já estava quase no picuá, o Pedro e o Oliveira tinham melhorado da malária com os comprimidos de quinino, o velho nem sentia o menor cansaço e só eu, que em apenas dois dias, já não podia mais levantar-me da rede. Maldizia minha sorte enquanto olhava os outros dormindo em suas redes, recusando-me a acreditar que não estaria melhor na manhã seguinte, mesmo sentindo meu corpo e minha mente se deteriorando, meus olhos ressequidos vendo na mata escuras, coisas que a razão não confirmava , meu cérebro confuso devido a febre alta, criava imagens que os olhos não viam, pensamentos confusos atemporais, lembranças, lugares, imagens e vozes de pessoas distantes se misturavam a realidade, confundido meus pensamentos, aumentando ainda mais a angústia, o desespero, o frio e a dor insuportável, causada por aquilo que estava me corroendo por dentro e consumindo minhas entranhas, meu sangue e minhas forças.
                  O mais longe que se pode ir, é de onde não se pode mais voltar e quem anda pela selva corre sempre o risco de ficar por lá mesmo, para sempre. Basta se perder, ser picado por uma surucucu, pisar num sapo flecha com os pés escoriados, ser abraçado por uma sucuri na beira do lago, contrair um malária maligna ou se acidentar quebrando uma perna, como aconteceu com um garimpeiro que varava pela selva com um companheiro, seguindo em direção a um garimpo recém descoberto, onde tinha sido descoberto  muito ouro. O terreno era montanhoso, onde até a pista de pouso clandestina tinha sido construída na beira de um penhasco. Da pista para o garimpo a varação de muitos dias pelas montanhas era muito perigosa, principalmente para quem varava com o jamanxim carregado com ferramentas e alimentos, como aconteceu com um dos homens, que era gordo e caiu do penhasco quebrando uma perna. Seu companheiro não podia carregá-lo pelas trilhas das montanhas, com fratura exposta, o ferido não podia nem ao menos se mexer. Isolados na mata, sem remédios e sem saber cuidar do ferimento, montaram acampamento no local do acidente, esperando por ajuda, que nunca chegou. Os gritos de dor do garimpeiro, com a perna inchada, apodrecida e sendo devorada por vermes, ecoavam pelas encostas das montanhas, sem que ninguém mais além do seu companheiro ouvisse.
            Na última noite em que o ferido tornou a pedir para que seu companheiro o matasse, ele assim o fez, dando um tiro com a espingarda na cabeça do amigo, que foi enterrado à sombra do grotão, ao lado da picada, onde alguns dos garimpeiros que passavam depois, com os picuás cheios de ouro, voltando para casa, acendiam velas agradecendo em silêncio por não ter tido a mesma sorte do desafortunado dono da cruz.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

História de Onça - Parte XVII


  
     NO CENTRO DA MATA


          Na mesma tarde em que matamos um mutum castanheira. que saiu da mata para beber água no rio Pacacibí, encontramos em meio a uma pequena clareira aberta na beira do rio, alguns pés de macaxeira, que foram plantados pelos antigos donos, garimpeiros que se foram abandonando o velho acampamento. Arrancamos algumas raízes grossas, que mais tarde num outro acampamento rio acima, também abandonado, onde havia até lenha seca rachada e empilhada, debaixo do telhado de ubim que ainda resistia ao tempo, cozinhei primeiro as raízes, antes de colocar o mutum gordo para ferver na panela de ferro.
         Passamos a noite ali e quando seguimos viagem, no outro dia pela manhã, encontrávamos pelo caminho os primeiros sinais da presença de garimpeiros pela mata, estávamos chegando perto da corrutela do garimpo. Naquele dia ao entardecer amarramos nossa voadeira no porto da corrutela do garimpo Santa Rosa, na margem direita do rio, onde estávamos sendo esperados pelos garimpeiros que ouviram o motor se aproximando e pelas mulheres que estavam bebendo na cantina e correram até o porto, querendo saber quem estava chegando ao garimpo.
         A corrutela era formada por uns quatro ou cinco barracos, construídos em meio a clareira, na beira do rio, por onde passava uma antiga picada que levava aos garimpos situados mais para o centro da mata. Da corrutela, saíam uma ou duas vezes por semana as voadeiras levando passageiros, alguns vindos dos garimpos na mata para fazer compras na cantina, outros  voltando para a cidade. Na corrutela os garimpeiros esperavam dias pela chegada do transporte, jogando baralho, bebendo e fumando de tudo, com as mulheres que andavam por lá, e escutando a todo volume no toca-fita  um repertório brega, de enlouquecer qualquer um. O Oliveira e o Pedro maranhão conheciam todos naquele garimpo onde passamos a noite e pela manhã quando seguimos viagem rio acima, entrando sem permissão no território ianomâmi recém demarcado, o Oliveira que passara a noite sem dormir bebendo todas na cantina, estava com cara de quem passou a noite no sol, como costumavam dizerem  os caboclos, de quem estava com cara de ressaca.
      A policia federal tinha retirado há algum tempo os garimpeiros que trabalhavam na região do Pacacibi e rio a cima encontrávamos, de ponto em ponto nas barrancas, o local do início das picadas abertas na mata, que levavam até os antigos acampamentos de garimpeiros, agora abandonados. A mata ianomâmi voltara a ficar silenciosa, sem o ruído dos motores trazidos pelos garimpeiros e aqueles que ainda se aventuravam por lá, em busca de algum ouro deixado para trás, como fazíamos nós quatro, andavam como ratos pela mata, cautelosos e silenciosos, para não serem descobertos pelos índios que viviam em  uma aldeia, além da montanha do Pedro Maranhão.
      O motor da nossa canoa embora fosse pequeno, fazia barulho de mais e viajamos preocupados durante todo o dia, pois não queríamos encontrar índios pelo caminho, temendo que nossa presença no território fosse denunciada. Quando acampamos ao anoitecer um grupo de índios jovens, que desciam o rio em canos a remo acamparam bem na nossa frente, na outra margem do rio. Por sorte um dos jovens índios conhecia o Pedro e assim que anoiteceu ele nos trouxe alguns peixes que tinham flechado durante a viagem. Passei boa parte da noite observando o grupo ianomâmi, eles acenderam fogueiras sobre as pedras da margem do rio onde assavam seus peixes, fincaram entre as pedras alguns paus para armarem suas redes e passaram quase a noite toda, pescando, comendo peixes assados, conversando e sorrindo. Ao contrário de nós os quatro garimpeiros preocupados com o ouro da montanha, eles pareciam não ter nenhuma preocupação e porque deveriam ter? Se no rio que corre sem parar pela floresta sem fim deles, tinha tudo que necessitavam. O ouro da montanha que nós procurávamos, não compra nada no paraíso ianomâmi,  não vale nada  onde não existem cercas nem muros, nem relógios, nem cofres e nem pobres.
       Há muitos anos estava em um ônibus em Rondônia, ao meu lado viajava um religioso que falando com sotaque estrangeiro perguntou sobre meu trabalho. Depois que falei que era garimpeiro o assunto girou em torno de ouro, ele não era a favor dos garimpos na Amazônia, e seguiu falando durante toda a viagem, enquanto eu escutava sem discordar e nem concordar com nada, depois dele ter me respondido por que as igrejas são douradas. - Na casa do senhor, falou ele, tudo deve estar sempre bem arrumadinho, limpo e brilhoso.
          No dia seguinte por volta de meia tarde, chegamos ao destino. Escolhemos um local onde a mata fechada cobria as barrancas do rio, por onde entramos com a canoa por baixo das ingaranas para não deixar vestígio de nossa presença. Arrastamos a canoa para a mata e escondemos num local apropriado cobrindo com folhas e galhos secos, depois de fazer o mesmo com o motor e o combustível restante, seguimos mata a dentro, levando as ferramentas e o rancho para a montanha do Pedro Maranhão. No sopé da montanha, distante mais ou menos umas duas horas de caminhada da beira do rio, tinha um barraco ainda em bom estado, que fora construído tempos atrás pelos garimpeiros do Pedro Maranhão. Do outro lado da grota de águas amareladas que descia da serra, ficava o barranco, um buraco escavado no pé da montanha pelos outros garimpeiros, tendo uns quatro metros de profundidade na parte mais alta e uns oito metros de largura, de onde o Pedro dizia que tiraram mais de quinhentas gramas de ouro.
       Naquele fim de tarde limpamos o velho acampamento e acomodamos os alimentos num jirau. A mata alta da encosta da montanha estava ressequida pelo forte verão e a grota de águas amareladas que descia da serra era a única que tínhamos para beber, cozinhar e banhar. Estávamos com pressa de iniciar o trabalho e sem nos preocuparmos em cavar uma cacimba usamos aquela água imprópria por uns dois ou três dias, que foi mais ou menos o tempo que eu e o Oliveira levamos para terminar de beber as ultimas garrafas de cachaça que sobrara da viagem. Depois quando sóbrios, escavamos então uma cacimba. que cobrimos com folhas verdes para evitar que mosquitos depositassem seus ovos. Na montanha, a nossa escavação, o barranco como chamávamos, já estava com um metro de profundidade. Tínhamos começado a trabalho na primeira manhã, após a nossa chegada, primeiro escolhemos e demarcamos o local, depois cortamos e retiramos as árvores, limpamos as folhas secas e os cipós e começamos a cavar arrancando as raízes e retirando a capa do lacrau, que é primeira camada de terra fofa, formada por folhas e galhos em decomposição, onde vivem os escorpiões, que durante o dia nós esmagávamos as dezenas com os pés, enquanto trabalhávamos. Depois veio a terra vermelha e seca que se tornava mais dura a cada dia e tinha que ser removida a picaretas e jogada para fora do barranco com as pás. Dentro da escavação o calor era quase insuportável e nossos corpos suados atraiam as abelhas que se multiplicavam a cada novo dia. Eram muitas espécies de abelhas que vinham da mata em busca de sal no nosso suor, pois até colocamos pratos com açúcar e sal em volta do acampamento, tentando atraí-las sem sucesso, enquanto elas se multiplicavam a tal ponto que para evitá-las passamos a trabalhar a noite, à luz de velas, o que também não deu certo, pois durante o dia elas pousavam as centenas lambendo nossos corpos na rede e não podíamos descansar.
     Voltamos então a trabalhar de dia, sem usar camisas, procurando suar menos e sempre evitando esmagar as abelhas, que parecendo loucas de fome pousavam freneticamente, sem se incomodarem com os nossos movimentos, enquanto escavávamos o sopé da montanha. Quando um de nós saía de perto do trabalho, por algum motivo, as abelhas do ausente  somavam-se com as dos que tinham ficado trabalhando, e eram tantas, que muitas vezes, quando um de nós saia para preparar as refeições, logo os outros desistiam do trabalho saindo andando pela mata, enquanto os cabos suados das ferramentas ficavam pretos de abelhas, inclusive o local onde urinávamos ou nos sentávamos suados. Quando a noite chegava, depois do banho na grota, contávamos o número de ferradas de abelhas que sofríamos durante o dia, ao esmagá-las contra as costelas com os braços, nos movimentos que fazíamos trabalhando com as ferramentas, cavando ou jogando terra para fora do barranco, por sorte nenhum de nós era alérgico, pois teve dia de alguém contar sessenta ferradas de abelhas.
        O Pedro era perito em fazer armadilhas e desse modo conseguíamos alguma caça em silêncio, sem precisar usar a espingarda, pois possivelmente o estampido seria escutada pelos índios da aldeia, que poderiam estar por perto caçando na mata, ou subindo ou descendo o rio. Decidimos também fazer fogo e cozinhar somente à noite, trabalhando durante o dia em silêncio, cavando a terra vermelha do pé da montanha, deixando o buraco cada dia mais profundo, de onde já   estava se tornando difícil até de jogar a terra para fora com as pás.
        No dia em que o Oliveira resolveu construir um andaime de madeira, onde, para facilitar o trabalho, jogaríamos a terra cavada e depois tornaríamos a jogar de cima do andaime para fora do barranco, o Pedro Maranhão convidou-me para visitarmos uns garimpeiros conhecidos dele, que estavam trabalhando a umas três horas de caminhada rio abaixo, onde iria pedir emprestada uma caixa de lavar cascalho, da qual iríamos necessitar para lavar o nosso cascalho para separar o ouro, no final do trabalho.
            No caminho, andando pela margem do rio Pacacibi, atravessamos um pequeno igarapé de águas límpidas que descia da serra, formando uma cachoeira ao chegar ao rio e nas águas rasas do pé da cachoeira nadava vagarosamente um enorme surubim, sem perceber o Pedro se aproximando cauteloso com a espingarda já engatilhada. Com o facão partimos o surubim abatido em duas bandas, penduramos uma amarrada com cipós numa árvore e levamos a outra metade para os garimpeiros conhecidos do Pedro que fizeram uma festa, pois estavam quase sem alimentos. Depois de mentir um pouco e escutar em troca algumas histórias de onça, pedimos a caixa emprestada e nos despedindo dos garimpeiros, que prometeram irem nos visitar no próximo domingo. No caminho de volta para o nosso acampamento, o Pedro Maranhão que vinha arrastando a outra banda de surubim pela mata, se queixou de dores no corpo e falou que talvez estivesse com malária, então passamos por um açaizal onde cortamos um feixe de raízes. 
       De volta ao nosso acampamento o Pedro tomou uns comprimidos de quinino, que tínhamos trazido da cidade, enquanto esperava ferver numa panela o chá de raiz de açaí. No outro dia ficou até mais tarde na rede, trabalhou algumas horas depois do meio dia, ainda se sentindo desanimado e fraco, mas amanheceu bem no dia seguinte, quando resolvemos não trabalhar esperando pelos garimpeiros que viriam nos visitar naquele dia de domingo e passamos o dia esperando, mas não apareceu ninguém. Na manhã seguinte, quando já estávamos trabalhando a algumas horas no barranco, os garimpeiros chegaram alegres perguntando para o Oliveira pela cachaça. Para nós já era segunda feira, para eles ainda era domingo, daí passamos mais um dia sem trabalhar conversando com os vizinhos de garimpo, sem ninguém saber mais se era sábado, domingo ou segunda-feira, afinal, que diferença faziam os dias da semana naquele fim de mundo.


AÇAI