sábado, 31 de março de 2012

História de Onça - Parte X


                          
          História de onça
                     Num sonolento crepúsculo, adormeceu o tempo, fechando os olhos verdes sobre a vastidão da floresta Amazônica. As horas velhas caídas como folhas mortas, acumularam-se desordenadas sobre a capa do lacrau, por onde rasteja sem pressa a surucucu pico de jaca

         O Lázaro, um leproso que vivia num batelão no rio Juruá, me falou certa vez que nunca se deve confiar num homem de barriga vazia. Naquele tempo eu viajava num barco pesqueiro de lago em lago pescando tambaquis e conheci o Lázaro numa tarde quando ancoramos nosso barco num flutuante na foz do rio Juruá, onde iríamos passar a noite.
           Eu tinha ganhado um sagüi que um carpinteiro do rio Tefé capturou ainda jovem e que depois de adulto ficara bravo e mordia os filhos do carpinteiro e outras crianças da redondeza. A contra gosto aceitei o pequenino animal maltratado que o carpinteiro queria livrar-se, trazendo-o amarrado pela cintura por uma tira de pano. Fui mordido nas mãos várias vezes enquanto cortava com uma faca a tira de pano suja e apertada na barriga vazia do bichinho, soltando-o depois no flutuante onde eu estava morando. Por vários dias ele ficou escondido nos cantos da casa, aparecendo somente quando eu oferecia alimentos, insetos e frutas. Com o tempo passou a comer na minha mão e em poucas semanas nos tornamos amigos e ele passava boa parte do dia dentro do bolso da minha camisa, mas continuava a me morder sempre que discordava de alguma coisa, principalmente quando tinha que tomar banho. Quando começamos a pescar tambaquis no pequeno barco peixeiro, ele fazia parte da tripulação e eu sempre tinha que incluir bananas na lista de compras quando saíamos para pescar no pequeno barco, onde seis ou sete pescadores se apertavam noite e dia. O sagüi Chiquinho era o único que possuía o seu próprio camarote, uma caixa de madeira pintada de marrom, parafusada ao teto, onde ele se escondia quando estava aborrecido, do contrário ficava pulando de um lado para outro tentando capturar borboletas, gafanhotos e outros insetos que entravam no barco durante as viagens.  Algumas vezes chegava a cair dentro do rio saltando atrás de alguma borboleta que passava voando perto do barco e depois de resgatado ele ficava horas trancado em seu camarote, tremendo de medo das piranhas.     Durante as viagens, cada um dos pescadores tinha um determinado tempo da noite ou do dia para pilotar o barco, inclusive o cozinheiro que era eu, auxiliado quase sempre pelo co-piloto Chiquinho que ficava pulando de um lado para outro em cima do leme. 
       Numa tarde quando descíamos o rio Juruá, demos carona a dois pescadores desconhecidos que tinham sido abandonados pelo capitão do barco em que trabalhavam numa das ilhas. Mais tarde  ao cair  da noite chegou a minha vez de pilotar o barco, estávamos perto da foz do Japurá, era verão e muitos paus emergiam no leito do rio, exigindo muita atenção do piloto. A noite chegou enquanto eu ainda estava pilotando e ouvindo os gritos do Chiquinho que estava sendo importunado pelos dois homens estranhos que sopravam fumaça de cigarros em sua direção. Não imaginei que eles pudessem fazer algum mal ao animalzinho indefeso e mantive minha atenção no rio... Mas me enganei. Chegando na foz do rio, aportamos no flutuante ao lado do barco do Lázaro e de outros barcos que ali se encontravam. Imaginando que o Chiquinho estivesse dormindo fui olhar dentro de sua caixa, mas estava vazia, imediatamente procurei por todo o barco chamando seu nome e imaginando que tivesse caído no rio. Convidei então o Jabuti, um menino pescador que viajava conosco e voltamos remando subindo o rio numa canoa, alumiando as árvores da barranca e chamando pelo nome do sagüi que em outras ocasiões respondia aos chamados com silvos agudos e fortes.  Mas desta vez remamos até muito longe, depois voltamos pelo outro lado do rio chamando, mas não o encontramos. Voltando ao nosso barco, percebi que os outros pescadores estavam mais calados que o normal. Os dois pescadores estranhos que trouxemos de carona já tinham partido em outro barco que deixara o flutuante há algumas horas. Como de costume naquela noite preparei o jantar da tripulação e depois subi no toldo do barco, onde me deitei olhando as estrelas enormes do límpido céu amazonense. Mais tarde descendo para banhar-me e me acomodar para dormir, encontrei o meu amigo pequenino morto dentro das dobras do meu cobertor. Num ataque repentino de raiava eu quebrei com as mãos o pequeno camarote marrom do meu amigo Chiquinho e joguei no rio, junto com todas as bananas que tínhamos a bordo e por ultimo joguei seu corpinho magrelo para as piranhas nas águas do rio Juruá. 
                Na manhã seguinte antes de zarparmos fui até o barco do Lázaro comprar cigarros, ele me ofereceu o último que tinha, o qual estava fumando , eu aceitei o cigarro babado para não ofendê-lo, depois contei o que tinha acontecido no nosso barco na noite passada. Foi então que depois de dizer que não se deve confiar em quem já passou fome, ele me contou um pouco de sua vida de vendedor de mercadorias pelos rios da Amazônia. 
      Contava ele que quando procurou ajuda, a hanseníase já estava muito adiantada, o que dificultou o processo de cicatrização causando deformações na face e nas mãos, desde então tinha uma vida solitária viajando pelos afluentes do rio Solimões, vendendo mercadorias para os beiradeiros no seu batelão.
              Ele, de subida fazia as vendas e de descida voltava cobrando as mercadorias vendidas,. quando um beiradeiro escutava ao longe o motor do batelão subindo o rio e trazendo as mercadorias necessitadas, café, açúcar, sal, etc. Gritava contente avisando a família. - Lá vem o Lázaro !  Mas depois de alguns dias quando tornava a escutar o motor do barco que descia o rio cobrando as mercadorias vendidas, Gritava descontente. - Já vem voltando aquele leproso! 
            Quando a hanseníase ainda não tinha cura, havia muitos leprosos naquela região da Amazônia. Era comum encontrar pessoas com mãos e faces deformadas muitos anos depois da descoberta da cura, na época em que lá vivi. Muitas histórias eram contadas sobre os leprosos e seus sofrimentos, como o triste destino de um jovem morador de uma cidade ribeirinha que era noivo de uma linda jovem de cabelos muito longos e negros. Poucas semanas antes do casamento o noivo descobriu que tinha contraído hanseníase, a contagiosa e terrível enfermidade que não deixava alternativa para o seu portador, além do isolamento e da morte lenta e solitária.    
       Uma escadaria com muitos degraus descia da praça até o rio, onde pela manhã as mulheres da cidadezinha lavavam suas roupas, enquanto seus filhos se banhavam nas águas correntes e límpidas. Da praça, nos bancos de pedra, á sombra de árvores centenárias circundadas por pequenos muros caiados de branco, dava para ver toda a grande ilha verde abrindo o rio em dois, bem em frente à cidade, onde todas as tardes o sol depois de dourar as águas do rio, se deitava sobre o macio colchão verde da floresta e os pescadores voltando pra casa, amarravam suas canoas no porto e subiam a escadaria levando numa das mãos o remo e na outra os peixes frescos para o jantar.
              E foi num desses entardeceres dourados pelo sol que uma das canoas não voltou e nunca mais voltaria ao porto da escadaria, onde a jovem de longos cabelos negros sentava todas as noites que se seguiram, esperando o seu noivo. Seu vestido branco, destacando-se na escuridão da noite, podia ser visto de longe por aqueles pescadores que voltavam atrasados para casa.  Passaram-se os anos sem que ninguém soubesse do destino do jovem noivo leproso, então certo dia quando alguns moradores da cidade estavam caçando, encontraram-se  por acaso com um homem deformado pela hanseníase fugindo pela mata. Um dos caçadores que estava atrasado do grupo reconheceu o fugitivo como sendo o jovem noivo da mulher de branco. Voltando a cidade os caçadores reuniram-se com os outros moradores e decidiram construir um abrigo na mata, próximo ao local onde o jovem fora encontrado, e assim fizeram. No abrigo construído depositaram fósforos, roupas e alimentos. Nas semanas seguintes voltaram várias vezes ao local do abrigo, que em alguns anos foi tomado pela mata, sem que ninguém tivesse usado ou consumido nenhum dos alimentos ali deixados.


 

                                  IGARAPÉ
      
               
                 Quase sempre quando o Bernardo estava concentrado em alguma tarefa, fazendo algum cabo de ferramenta ou bateando pacientemente em busca de alguma fagulha dourada, costumava cantarolar baixinho uma musica falando de morte. “- Só tenho raiva da morte, não é amigo ? Matou o pai, do pai, do papai. A gente mata e vai preso, não é amigo? A morte mata e não vai...”
                Cantava ele a mesma morte que o chamou pelo radio, naquela noite quente do verão roraimense, poucos minutos após eu zangado ter trocado de local a minha rede, saindo de perto dele, aborrecido com o alto volume do rádio em que ele escutava um programa muito chato, que transmitia recados dos familiares dos garimpeiros.  O radialista antipático transmitiu o recado que chegara do estado do Pará, onde a mulher do Bernardo pedia para que ele voltasse imediatamente por algum motivo que não lembro bem, talvez seu filho estivesse doente.
              Por vários dias, sob o sol escaldante caminhávamos pelo lavrado, levando no jamanchim mais de quarenta quilos de ferramentas e alimentos, suportando penosamente as picadas dos piuns e das mutucas enquanto seguíamos em direção a mata das cabeceiras do rio Tacu tu, onde iríamos procurar por ouro e diamantes. Nós quatro tínhamos saído a duas semanas da selva, blefados, sem ouro.  Sem alternativa resolvemos seguir em direção a Guiana, onde se pode chegar por terra, destino dos garimpeiros que não podem fretar um avião e entrar para regiões da selva ainda inexploradas.
             Numa das noites que passamos no território ianomâmi, o Bernardo contou o motivo dele ter saído de um velho garimpo que teve no Pará e ido para a selva Roraimense, onde teve boa sorte assim que chegou, encontrando uma grota rica e garimpado alguns quilos de ouro rapidamente. Comprou então um terreno com três  casa na cidade e trouxe sua mulher e seu filho de quatro ou cinco anos para Boa Vista. Quando o ouro da grota que ele encontrara acabou, continuou procurando por outras grotas em várias regiões da selva, sem sucesso e quando eu o conheci, já havia gastado todo o ouro da grota rica em ferramentas, alimentos e aluguéis de aviões, procurando o que não perdera nos grotões das encostas de serras esquecidas, nos confins da floresta. Foi por esta época que sua mulher e filho voltaram para a casa da mãe no Pará, levando metade do dinheiro conseguido com a venda das casas da cidade.
                 O Bernardo não pregou os olhos naquela noite em que recebeu o chamado da mulher pelo rádio e antes do dia amanhecer completamente tinha desatado a rede que colocou dentro de um saco junto com uns punhados de farinha de mandioca, preparando-se para voltar só para a cidade, sem nem mesmo suspeitar que se apressasse em direção à morte inevitável.
              Sempre é bom prestar muita atenção nas histórias contadas pelos companheiros de garimpo, pois às vezes pequenas mentiras escondem algumas grandes verdades, que podem ser muito úteis para se conhecer um pouco da personalidade dos companheiros com passado desconhecido.  Quando o Bernardo contou que depois de ser expulso por pistoleiros do seu antigo garimpo, planejou sua vingança por várias semanas, fiquei pensando se era ou não verdadeiro o seu relato. Ele conhecia bem a selva naquela região que trabalhava há muito tempo,  onde passou escondido alguns dias, observando as atividades dos homens que tomaram seu garimpo. Num final de tarde de domingo quando seus inimigos voltavam de barco da corrutela onde tinham ido para beber e fazer compras, foram pegos de surpresa pelos disparos da espingarda calibre vinte quando desciam do barco. Sem que tivessem tempo de reagir usando suas armas, meia dúzia de homens feridos se debatiam na lama do igarapé, atingidos pelos tiros certeiros, enquanto o Bernardo fugia rápido pela mata.  
               Quando o dia amanhece no lavrado, os famintos piuns chegam junto com o sol abrasador, aos milhares, sugando o sangue e a paciência de qualquer um que se aventure naquela região pedregosa e semidesértica, onde a cascavel busca abrigo nas sombras dos rochedos e o tamanduá bandeira, com seu andar lento e cambaleante, vagueia procurando alimento entre os enormes formigueiros, ressequidos do sol e pelo  calor insuportável do território Uapixana. 
      O Bernardo voltou só para a cidade naquela manhã e agora eram quatro jamanxins para três garimpeiros levarem até a boca da mata, distante três dias do local onde passamos a ultima noite. Sabíamos que existia uma aldeia indígena a um dia de caminhada, próximo a aldeia morava um homem que possuía uma carreta de bois e que talvez, mediante a algum pagamento pudesse buscar o nosso rancho e ferramentas. Caminhei boa parte do dia e quando cheguei na casa do tal homem dos bois, já era mais de meia tarde.
            Ao lado da casa, com varanda na frente, se encontrava a carreta com as rodas muito grandes feita toda de madeira maciça. Na varanda deitados em redes de couro de boi trançado, quatro homens aparentando mais de sessenta anos conversavam. Um deles, o dono da casa, era negro alto e extraordinariamente forte com cabelos totalmente brancos, foi ele que me mandou entrar quando me aproximei pedindo licença, buscou água e um banco de três pés trançados, com assento também de couro.  Enquanto contava minha história, observa os quatro homens velhos me olhando desconfiados e quando no final falei que necessitava fretar a carreta do dono da casa, ele respondeu francamente que não tinha problema, se eu tivesse com o que pagá-lo. Ele aceitou como pagamento o rádio do Bernardo, dizendo que na manhã seguinte voltaria comigo para buscar nossa carga e que a levaria junto com a carga dos três homens que estavam na sua casa, até a boca da mata, do outro lado da aldeia uapixana.
             Os três homens que pareciam ser velhos demais para o que se propunham, iriam entrar para a selva em busca de um ouro que acreditavam saber onde se encontrava, enquanto eu e os outros dois companheiros que estavam esperando pelo carro de boi no caminho, sem saber nem ao menos onde ficava a tal boca da mata, amanhã seguiríamos a esmo na mesma direção. Estava anoitecendo quando o jantar tão esperado por mim, que não tinha comido nada durante todo o dia, foi servido. Uma mesa grande na sala da casa sobre a qual foi colocado dois pratos com carne de sol, alguns limões, uma panela com leite fervido no centro da mesa e uma vasilha de farinha de mandioca, pra quem tinha imaginado que comeria depois de muitos dias arroz, batatas, macarrão e um bife, não foi uma surpresa muito agradável, antes de descobrir, a contra gosto, que leite com carne, farinha, limão e fome, combinam muito bem. Depois do jantar, sentados na varanda da casa, nós quatro escutávamos o anfitrião contando suas histórias de onça, enquanto uma lua cheia gigantesca nascia no horizonte dourando a mata rala e retorcida do cerrado, formando uma paisagem de um colorido quase irreal, de onde eu tirava os olhos apenas quando uma jovem negra de cabelos lisos, que talvez fosse filha do dono da casa, passava em frente à janela enquanto retirava os pratos da mesa.
             O homem grande disse ser filho de um dos soldados do marechal Rondon que casou com uma índia e ficou morando perto da aldeia, onde construiu a casa, iniciando uma criação de gado. Naquele tempo se abateu sobre a região uma grande seca que durou muitos meses, foi quando alguns índios vieram pedir para que seu pai, o único na região que possuía arma de fogo, fosse com eles até um lago existente nas cabeceiras do rio Tacu tu para matar um animal gigantesco, que saíra do lago seco e seguia em direção ao rio. Quando seu pai chegou no local o animal desconhecido já havia sumido no rio, deixando em sua passagem pegadas enormes ao lado de um sulco aberto na terra, tombando inclusive algumas árvores menores durante sua passagem. Não tinha sido essa a primeira história que eu escutara por La, de encontro de caboclos com grandes animais desconhecidos e nem seria ultima, a própria Amazônia é um gigante desconhecido que poucos tiveram a oportunidade de ver bem de perto.
                    Quando amanhecia o novo dia, eu e o homem negro já estávamos cansados de sacolejar pelo caminho pedregoso, dentro do carro de boi. Assim que chegamos carregamos nossas coisas e antes do anoitecer estávamos de volta a casa do homem, trazendo nossos mantimentos, onde passamos a noite, e pela manhã seguimos viagem novamente, em direção a boca da mata.
                  Os três garimpeiros velhos e os meus dois companheiros seguiam a pé ao lado da carreta, que rangendo as rodas de madeira, levava vagarosamente nossas coisas por entre as pedras, cupins e a vegetação escassa do lavrado, dirigida pelo gigante negro sentado no assoalho com as pernas penduradas para fora próximas aos traseiros dos bois. Eu seguia o grupo montado num cavalo, que o dono dos bois resolvera de ultima hora levar junto, e de cima eu podia ver melhor as distantes montanhas rochosas, que enfileiradas formavam um vale, por onde provavelmente algum outro rio, talvez o rio Cachorro, corresse em direção ao sul, levando suas águas para juntar-se as do rio Maú, rio Tacu tu e rio Urariquera, formando muito abaixo, no encontro das águas em meio à floresta, o rio grande Branco. 
         Verdes buritizais, estendendo-se por quilômetros nas baixadas, entre as colinas pedregosas indicavam os locais das nascentes e leitos de igarapés, que na estação das chuvas correm generosos pelo lavrado, levando suas águas límpidas em direção aos rios mais próximos que cortam o território Wapixana. Ao largo dos buritizais, onde uma cacimba rasa garante água límpida com fartura, os índios constroem suas casas, geralmente distantes centenas de metros umas das outras e quem vem andando pelo lavrado, pode ver de muito longe, por trás das colinas, as pipas coloridas empinadas nos dias de vento, pelos curumins das aldeias e encontrar mulheres e crianças queimadas pelo sol, levando nas costas enormes feixes de lenha, trazidos não se sabe de onde, seguindo de vagar em direção às suas moradas, que de tão distante não se pode nem ver onde ficam em meio aquele deserto desabitado, que se estende de horizonte a horizonte.




                                PASSARÃO

sábado, 24 de março de 2012

História de Onça - Parte IX



                                         CUIA
                                                                                                                      

             Depois de horas de exaustiva caminhada bebendo água dos cipós que cresciam na mata seca da encosta da montanha, eu o Bernardo, o velho Branco e os dois indiozinhos chegamos ao topo. Uma grande árvore caída no ultimo vendaval, abrira uma brecha na mata na beira do penhasco por onde se podia ver até onde os olhos alcançassem. Correndo lá em baixo, um rio desconhecido ziguezagueava, perdendo-se na floresta em meio à planície verde, que se estendia até uma cadeia de montanhas que sumiam no horizonte distante, onde nuvens negras de chuvas passageiras espremiam-se entre o verde escuro da floresta e o límpido azul celeste. No silêncio singular daquele mundo esquecido, nós do topo da montanha olhávamos calados o que talvez nenhum outros olhos humanos jamais tenham visto. Talvez existisse alguma aldeia indígena em alguma curva daquele rio esquecido que passava la em baixo, talvez não, quem sabe tenha sido assim desde o início, desde o surgimento das primeiras árvores, onde o silêncio como se estivesse cansado de tanto se fazer calara-se para sempre, por saber que tudo ali está longe de mais, em todas as direções, até muito além de onde se pode ver. E quando até mesmo a maior das montanhas, parece ser apenas um montinho de areia azulado perdido no horizonte distante, é que o homem percebe então o seu real tamanho, perguntando a si mesmo se vale a pena seguir até a próxima serra, atrás de sonhos tão pequeninos. 
         Já era mais de meia tarde quando tornamos a subir a montanha para voltar ao acampamento, uma grande nuvem negra de chuva que se aproximava cobria o céu,  o sol parcialmente encoberto iluminava com seus raios avermelhados apenas as montanhas longínquas no horizonte, muito alem da planície, formando um gigantesco lençol dourado entre o verde da floresta e o azul do céu, mostrando para quem pudesse  ver, onde está o verdadeiro e deslumbrante tesouro verde ianomâmi.
             Ao lado do nosso acampamento uma árvore gigantesca se destacava das demais, parecendo com uma imensa torre circular que aparentemente com a mesma circunferência que saia do solo, sumia entre as ramagens das outras árvores, sem que se pudesse ver seus galhos, onde quase todas as noites um grande pássaro que talvez fosse uma harpia, pousava fazendo muito barulho. Nenhum de nós jamais tinha visto uma árvore daquele tamanho, nem o Bernardo que vivia há décadas percorrendo a Amazônia de norte a sul e tão pouco o velho Branco nascido na beira do rio Amazonas. Algumas árvores na Amazônia impressionam tanto pela aparência como pelas dimensões, algumas são tão frondosas, tão majestosas, que nenhum homem de boa vontade sequer pensaria na possibilidade de cortá-las, derrubá-las, matá-las apenas para obter algum lucro imediato. Embora existam aos milhares, são as árvores talvez a forma de vida mais nobre que se conheça, gigantes silenciosos estendendo generosamente seus galhos ao sol, onde os pássaros constroem em segurança seus ninhos, entre as flores coloridas e frutos adocicados.  
                O grande rio a caminho do mar, vai quebrando as barrancas e mudando de curso em cada nova cheia, serpenteando em meio à floresta, debatendo-se como uma sucuriju ferida tombando as árvores que cruzem seu caminho. Algumas delas, principalmente as palmeiras que crescem mais rápido, se contorcem desesperadamente penduradas na barranca, curvando-se em direção ao sol, num penoso esforço para sobreviver por mais algum tempo, quando talvez na próxima cheia, o rio mudando seu curso repentinamente, aterre novamente suas raízes expostas na barranca, criando alí uma praia de areias brancas, onde o tracajá depositará seus ovos no verão e se nenhum pescador ou predador encontrar antes, descascarão dezenas de filhotes todos iguais, ou aparentemente iguais, porque assim como a grande árvore se diferenciava das demais por seu gigantismo, outras vidas se diferenciam das demais por outros motivos, como aquele pequenino peixe do aquário que se diferenciava dos outros não pela aparência mas por seu comportamento peculiar. 
      Havia quatro ou cinco pequenos peixes coloridos no aquário do dono de uma farmácia, um deles tinha nascido aleijado e se mantinha sempre no fundo, não podendo nadar até a superfície, onde na hora da alimentação, os pequeninos grãos de ração colocados pelo dono do aquário ficavam flutuando. Mas um dos outros peixes, apenas um deles, quando a ração era colocada, descia até o fundo do aquário, se posicionava sob o peixinho aleijado levando-o até a superfície para que ele pudesse comer, repetindo a operação por várias vezes enquanto o peixe estava se alimentando.
             Algumas coisas, que por mais difíceis que sejam de se entender, de acreditar, presenciar, ver e perceber, inesperadamente acontecem, diferenciando um entre um milhão de indivíduos da mesma espécie e ao mesmo tempo criando semelhanças entre indivíduos de espécies diferentes, como aquelas  duas crianças que brincavam de luta num porto do rio Amazonas, onde eu estava de passagem. Desci do barco recém aportado para conhecer a pequena cidadezinha. Caminhando pelas ruelas do porto encontrei  duas crianças brincando , as crianças eram na realidade um menino e um jovem macaco barrigudo, que abraçados lutavam rolando pelo chão mordendo-se mutuamente sem que nenhum dos dois tivesse intenção de ferir, apenas se divertiam brincando.                Não havia quase nenhuma semelhança entre o menino caboclo e menino macaco barrigudo, assim como também não havia quase nenhuma diferença, principalmente no brilho do olhar dos dois meninos, demonstrando alegria, inocência e boa vontade.  Talvez seja a boa vontade o único diferencial que possa explicar o inacreditável comportamento do pequenino peixe do aquário, assim como o hipnotizante encanto cego de uma flor amanhecida, recém desabrochada, a paz silenciosa do bosque nas tardes de inverno, a doce vibração das cordas de um violino ou o canto solitário da mãe da lua nas madrugadas enluaradas, formando um elo quase imperceptível entre as diferentes formas de vida, onde todos os indivíduos de boa vontade vibram com a mesma intensidade, integrando sem distinção um todo maior, muito maior do que se pode perceber, do qual a Priscila, minha amiga pássaro, que na época da postura trazia no bico folhas secas de gramas, depositando aos meus pés para que eu construísse seu ninho, fazia parte.
                Há muito tempo atrás alguém me perguntou em espanhol o que é uma persona de buena voluntad, na época eu acredito que teria acertado a resposta se tivesse respondido que uma pessoa de boa vontade é aquela que não cortaria uma árvore para fazer uma mesa de jantar, sei lá...Às vezes penso que até hoje ainda não sei a resposta certa.
            Num entardecer depois de voltarmos ao acampamento eu saí para caçar. Não tínhamos nada para jantar, os dois índios estavam assando dois filhotes de pássaros que haviam retirado de um ninho que encontraram na mata. Caminhando sem pressa pela beira do rio avistei não muito longe do acampamento, alguns macacos guaribas na copa de uma árvore alta, me aproximei procurando identificar um macho como é costume dos mateiros, são maiores e não tem filhotes. O macaco é uma caça muito apreciada pelos amazonenses, embora eu os tenha comido muitas vezes, nunca gostei muito e menos ainda de caçá-los. Durante todos os anos em que vivi na selva caçando e pescando praticamente todos os dias, matei apenas dois macacos e por extrema necessidade, o último foi esta fêmea que matei por engano pensando ser um macho, ela estava separada dos demais, era muito grande e como já estava quase escurecendo, eu atirei por engano matando-a. No acampamento tiramos o couro da pobre macaca que mais parecia uma mulher magra, que dentro de meia hora estaria  sendo devorada por canibais famintos acocorados em volta do fogo, assando seu coração num espeto de pau.
               Outro dia, ao entardecer os dois índios pediram a espingarda para saírem em busca de alguma caça, eu estava na rede observando eles se afastarem do acampamento em direção ao centro da mata quando a onça pintada esturrou ameaçadoramente próximo ao local onde eles se encontravam, voltando imediatamente ao acampamento os dois indiozinhos sorriam meio sem jeito desistindo imediatamente da caçada, se já não é bom dormir de barriga vazia, pior é ser o jantar da onça de barriga vazia.
            Algumas das noites que passamos naquele acampamento, quando não estávamos muito cansados, os dois ianomâmi sentavam ao lado da minha rede e ficávamos traduzindo palavras, de português para ianomâmi e de ianomâmi para português. As vezes eu cantava algumas músicas de crianças só para os ver os dois cantando, tentando repetir a melodia e as palavras e sempre terminava a brincadeira em muitas gargalhadas que ecoavam pela mata. Por certo, algum civilizado se surpreenderia se ouvisse os devoradores de filhotes de pássaros e comedores de corações de macacos, cantando canções de ninar ao anoitecer em meio á selva, porque geralmente quem costuma cantar canções de ninar não mata uma caça, compra no supermercado tudo que necessita, inclusive corações de animais congelados e plastificados que outros abateram.  Sendo assim se poderia  pensar que apenas as árvores, aquelas que retiram da terra o seu próprio alimento não participam desta realidade cruel da sobrevivência, aonde o homem aparentemente se supera  chegando  ao extremo em todos os sentidos.
             

domingo, 18 de março de 2012

História de Onça - Parte VIII



                   Naqueles tempos quando tudo que tínhamos cabia na boróca, na bolsa, e a rede podia ser armada em qualquer árvore, quem buscava a sorte no ouro seguia mudando de garimpo em garimpo, andando por baixo da palha como ratos, fugindo muitas vezes do passado, do presente, ou do futuro, indo de cidade em cidade, de estado em estado, de rio em rio, muitas vezes acabava sem saber por onde tinha começado. Datas,lugares, acontecimentos e pessoas, se tornavam lembranças muitas vezes desordenadas na memória de quem acostumava amanhecer vendo o lugar onde passou a noite, pela primeira vez. Muitas vezes quando um garimpeiro desconhecido contava alguma mentira, citando algum lugar distante, é que a gente lembrava já ter passado por lá também algum dia. Algumas etapas daquelas andanças ficaram esquecidas para sempre, como algumas folhas arrancadas do meio de um velho livro e que ninguém, nem mesmo quem as escreveu talvez saiba mais o que contavam.
              Esquecidos assim com a Beatriz, a Mineira, o Magnata e sua noiva magricela, que também tiveram suas últimas páginas arrancadas daquele livro, sem que ninguém mais tenha dado notícias deles , enquanto seguiam a caminhada do destino de garimpo em garimpo, de rio em rio. Páginas em branco, como a pele daquele menino albino que se banhava pelado no rio Juruá, junto com outros meninos caboclos morenos, parecendo um macaco branco uacari.
           Um comprador de bananas que viajava pelo rio Juruá, convidou-me para ir junto com ele, numa de suas viagens, a fim de identificar um minério amarelo que os beiradeiros tinham encontrado e que pensavam ser ouro, mas na realidade era pirita, ouro de tolo. 
        Depois de desiludir os beiradeiros retornamos, parando de porto em porto, recolhendo as bananas maças colhidas no dia anterior pelos moradores das comunidades ribeirinhas.  Num destes portos, havia um menino albino, que de longe já se destacava dos demais que nadavam  pelados nas águas rasas do porto, fato  que me recordou a história contada pelo pescador Zeca França, numa noite num flutuante do rio Tefé. 
       Contava o Zeca que quando adolescente, contraiu uma doença de pele que deixou seu corpo todo cheio de feridas, sua família trabalhava plantando juta nas margens do rio Solimões. Trabalho duro, tanto no plantio como na colheita, que era efetuada já na época das cheias, em meio á insetos, lama e água. De tempos em tempos subia o rio Solimões um grande barco á motor, que vinha da capital buscar os produtos produzidos e colhidos pelos beiradeiros. O barco voltava rebocando as canoas dos caboclos  enfileiradas, abarrotadas de castanhas, peixes salgados, carnes de caças salgadas, bananas, madeiras, jutas etc. 
      Numa destas viagens o Zeca França foi com seu pai procurar um médico na capital, que receitou um líquido que deveria ser passado nas feridas com um pincel e que ardia mais que urtiga brava. De volta ao interior, quando a mãe do Zeca perguntou-lhe o que tinha visto na cidade, ele respondeu que o que mais lhe impressionou foi quando viu passar na rua um “rádio” cheio de gente,é que no rio o Zeca apenas tinha ouvido falar de rádios, nunca  de automóveis. Levou muito tempo até que as feridas do corpo do Zeca sarassem e as marcas, cicatrizes espalhadas pelo seu corpo magro, só sumiram depois que alguém lhe ensinou a passar na pele o líquido da casca do jerimum. Neste meio tempo em que não podia trabalhar na colheita de juta, o Zeca foi incumbido por seu pai da tarefa de pescar para alimentar a família. Todos os dias o Zeca remava rio acima passando pela casa do Malaquias que quase sempre o acompanhava em outra canoa, até o lago, onde pescavam tambaquis, pirarucus, tucunarés e outros peixes. Contava o Zeca que sempre que avistava o tapiri do Malaquias no final do estirão, de longe podia ver a cabeça branca do menino albino que não falava e que passava quase o dia todo olhando o rio na janela do tapiri. Era um menino estranho, contava o Zeca, branco como um uacari, não falava com ninguém. Quando pronunciava alguma palavra era no ouvido da mãe, respondia a qualquer que fosse a pergunta apenas com um sorriso. A mãe dele contou que num dia quando o menino queimou as mãos no fogão, ela nervosa bateu nele, gritando para que ele não tornasse a fazer aquilo nunca mais, e quando o menino com as mãos queimadas olhou para ela sorrindo, depois de ter apanhado, ela arrependida jurou que nunca mais se zangaria com ele.        
            Das distantes cordilheiras andinas chegam às águas do rio mar, espalhando-se mata adentro por muitos quilômetros no período das cheias, formando grandes lagos em meio à floresta virgem, inundando as terras baixas, criando centenas de ilhas e lagos enquanto serpenteia por entre a floresta, a caminho do mar, mar esse, que de tão distante a maioria dos caboclos desconhecem a sua existência, talvez porque de tão extenso o rio, pareça para o beiradeiro não ter início nem fim.
         Ao entardecer o sol avermelhado, antes de se deitar sobre o lençol verde da floresta, tinge de dourado as águas crespas do rio, que se espalham á perder de vista entre dezenas de ilhas verdes. Havia muitos peixes naqueles tempos, era fácil flechar os tambaquis nos enormes cardumes que tremiam as águas calmas do lago e arpoar os grandes pirarucus que mal cabiam na canoa, assim todos os dias o Zeca e o Malaquias garantiam a mesa farta da família. Na volta pra casa, remando a favor da corrente, o Malaquias costumava fumar um porronco e contar a mesma história do pescador chamado Nicodemos, que pescando no lago à noite ouviu uma voz no igapozal que perguntava se ele queria enricar. Morrendo de medo o tal Nicodemos remou o mais de pressa que podia voltando para casa, só contando pra sua mulher o que tinha se passado depois de muita insistência. A cabocla gananciosa obrigou o pobre Nicodemos a voltar na outra noite ou mesmo lago e lá  esperar pela voz e responder para a alma que sim, que queria sim enriquecer. Contrariado mas com mais medo da mulher do que da assombração, o caboclo voltou ao lago. Colocou a malhadeira na água e sentado na canoa esperou a noite chegar, desejando que nenhuma voz chamasse seu nome. Mas quando menos esperava ouviu novamente o chamado. - Quer Enricar Nicodemos ? Depois de três ou quatro chamados, resolveu responder com vós tremula de medo, que queria sim. - Quero sim alminha de Jesus! Então a alma disse para ele - Vai trabalhar Nicodemos !!! O Nicodemos raivoso e decepcionado, depois de ter passado tanto medo por nada, gritou para a alma levantando-se dentro da canoa. - Vai tu alminha fresca!
             Numa noite quando o Zeca e o Malaquias voltavam do lago, ouviram ao longe os gritos da mulher do Malaquias, que vinha remando em outra canoa rio acima ao encontro deles, chamando-os desesperada. O Malaquias jogando o cigarro na água remou apressado ao encontro da mulher prevendo o pior. Logo as três canoas remavam apressadas rio a baixo em direção a casa, enquanto a mulher do Malaquias repetia sem parar como o menino albino tinha desaparecido na floresta naquela tarde, contando que ela, as três filhas e o menino foram catar castanhas na mata  quando perceberam que o menino que deveria estar junto delas, tinha desaparecido. Chamaram e procuraram até cansarem e já estava escurecendo quando voltaram para casa correndo para ir avisar o pai. Quando as três canoas chegaram, as irmãs do menino estavam no porto chorando, o Malaquias subiu correndo a barranca do rio, pegou a espingarda na casa e entrou mata adentro acompanhado pelo Zeca. Andaram em círculos, deram vários tiros, chamaram, bateram até cansar na raiz da sapopema sem obter nenhum resultado. Enquanto o Malaquias continuou a busca, o Zeca voltando ao rio pegou a canoa remou apressado para procurar ajuda. Quando o dia amanhecia, várias canoas, trazendo muitos beiradeiros, chegavam ao porto da casa do Malaquias que ainda não voltara da floresta. Os homens recém chegados embrenhando-se pela floresta e logo encontraram o Malaquias que não havia localizado ainda nenhum vestígio do filho desaparecido, sem perda de tempo aproveitando o dia ensolarado, recém amanhecido, os homens espalharam-se mata à dentro, seguindo em todas as direções, gritos, tiros, chamados e até foguetes podiam ser escutados a quilômetros.
          Os olhos dos caboclos que nascem e crescem na floresta, são habituados a perceber pequenos detalhes diferenciando-se do todo, como uma folha caída, que tenha sido virada recentemente no solo da floresta, entre milhares de outras, o galho de algum arbusto que tenha sido dobrado recentemente e que ainda não tenha voltado à posição original e até mesmo a mudança de comportamento da floresta como um todo, dos pássaros, macacos e outros animais que tenham sido recentemente importunados com a presença de estranhos.  Nada escapa dos olhos de um mateiro que pode seguir a trilha invisível deixada na mata por um veado, um porco ou um menino perdido, por quilômetros mata adentro. Mas quando a noite chegou novamente e os homens se reuniram na casa do Malaquias, sem que nenhum deles tivesse encontrado nenhum vestígio do menino desaparecido,a preocupação era geral, nenhuma pegada deixada pelo menino ou por índios foi vista na mata. Nenhum local onde o menino tenha passado a noite foi encontrado, nem marcas de sangue ou sinais de ataque de onça. A criança tinha mesmo sumido sem deixar nenhum vestígio. Curupiras, mapinguaris, caboclos da mata e outras entidades eram acusadas pelos supersticiosos de terem raptado o menino e depois de mais de uma semana de buscas, sem nenhum resultado, os vizinhos do Malaquias voltaram para suas casas e seus afazeres acreditando que algum curupira tinha mesmo levado embora o menino branco.
              Como de costume o Zeca França remava rio acima, em direção ao lago, quase todos os dias, passando na frente do tapiri do Malaquias pendurado lá em cima da barranca, silencioso e triste desde o desaparecimento do menino. O Malaquias às vezes acompanhava o Zeca, até o lago, para trazer algum peixe pra casa, remando em silêncio, sem repetir mais as suas historias de almas. Na volta da pescaria como era seu costume, e no silêncio da noite só se ouvia o som compassado dos remos e da proa das canoas rasgando como um pano as águas negras do grande rio.
            Passaram-se algumas semanas e numa tarde qualquer, quando o Zeca subindo o rio entrou no estirão de onde já podia avistar a casa do Malaquias, se surpreendeu quando viu de longe a cabeça branca do filho desaparecido do Malaquias na janela do tapiri, remando depressa o Zeca não tirava os olhos do menino, para certificar-se se era real o que estava vendo. Quando chegou no porto o menino sorria do mesmo modo que sempre costumava fazer. Contou o Malaquias que o filho tinha voltado no dia anterior, aparecera no terreiro da casa sem que ninguém visse de onde veio, não tinha nenhum arranhão, nem picadas de insetos e parecia até mais gordinho, nunca se soube por onde ele andara durante o tempo em que sumira na mata, seu sorriso como resposta as perguntas feitas não esclarecia nada, sua mãe dizia que depois de muito insistir perguntando onde ele estivera durante todas aquelas semanas, o menino pronunciou em seu ouvido duas palavras. - Com, eles.
            Passado de alguns dias quando tudo parecia ter voltado ao normal na casa do Malaquias, o menino albino tornou a desaparecer na floresta, a busca com a ajuda dos vizinhos durou novamente vários dias, mas o menino nunca mais foi visto e passado mais de quarenta anos aqueles que ainda lembravam do desaparecimento, contam que nunca mais se teve nenhuma notícia do paradeiro do menino uacari.

         UACARI
                


             

quarta-feira, 14 de março de 2012

História de Onça - Parte VII


                

                                                                                                                                                                                              A primeira vez que vi o seu Bill, ela estava trabalhando de cozinheira numa balsa de garimpo no rio Jutaí. Nesta época, sempre que eu chegava da Colômbia andando por muitos dias numa velha trilha indígena,  ficava hospedado na balsa do Magnata, que era mecânico de motor a óleo. Seu flutuante era o local onde a maioria dos garimpeiros rodados, sem trabalho, aguardavam alguma vaga, nas muitas balças que dragavam o leito do rio naquele tempo.
          Naquele dia o Magnata estava só no flutuante. A broca tava pegando, quase não tinha o que comer, então depois de arrumar as minhas coisas, entrei na mata para caçar. Por sorte encontrei numa fruteira, não muito longe do rio um jabuti grande que garantiu um farto e saboroso jantar. Enquanto jantávamos o Magnata falou de sua noiva, que chegaria ao garimpo em alguns dias e de fato, depois de dois ou três dias passou uma voadeira subindo o rio, deixando no flutuante a muito magra noiva do Magnata. Neste mesmo dia outra voadeira que descia o rio, parou para avisar ao Magnata que estavam precisando de mecânico para consertar o motor de uma das balças que estavam garimpando rio acima. A noiva magricela ficou cuidando do flutuante, enquanto eu e o Magnata subimos o rio para consertar o motor. No caminho passando por várias balças encontramos o seu Bill lavando panelas numa delas, o Magnata parou a voadeira para cumprimentá-la e contar que sua noiva, que era amiga da Beatriz, tinha chegado ao garimpo.
            Depois de concertar o motor, quando regressamos no final da tarde, de longe avistamos a noiva do Magnata e o seu Bill deitados na mesma rede no flutuante. O Magnata olhou para mim, balançou a cabeça sorrindo maliciosamente enquanto falava. - Mulher com mulher dá jacaré! 
           No dia seguinte o seu Bill voltou para a balsa na qual trabalhava, e em poucos dias a recém chegada noiva magra do Magnata também se foi, depois de ter percebido que o seu amado noivo estava blefado, sem ouro algum. Na despedida dos noivos, eu estava deitado na rede só observando, enquanto ela abraçando o Magnata tornava a explicava que tinha que procurar algum trabalho no garimpo, mesmo preferindo ficar sem ouro ao lado do noivo. O Magnata,o mais original dos malandros  que eu já conheci, abraçando-a forte falou em seu ouvido, enquanto olhava para mim piscando o olho. - Você é quem sabe querida. Eu só posso te dar amor... o céu, e as estrelas. 
              O seu Bill era uma mulher alta, loira e de peitos grandes, andava sempre de bermudas, camisetas folgadas e chapéu de abas, de longe parecia homem, andava e gesticulava como um homem, mas de perto não podia disfarçar seu rosto feminino, embora usasse os cabelos muito curtos e nem seus peitos avantajados que se alguém tocasse era briga na certa. O seu Bill bebia muito e quase sempre arranjava confusão quando estava na cidade. Algumas vezes saímos juntos pelos bares da cidadezinha, e ela era melhor do que eu para beber, arrumar confusão e namoradas, mas quase sempre voltava tarde para o hotel, muito bêbada e então nessas horas, quando as ruas ficavam desertas, é que dava pra perceber que a solidão era a sua única e inseparável companheira. A última vez que vi o seu Bill, foi quando estava subindo um rio para onde o garimpo havia se mudado há pouco tempo. Ela vinha descendo em um batelão que seguia para uma cidade as margens do rio Solimões, paramos para conversar com os que saiam do garimpo. A Beatriz estava sentada no banco do barco muito calada, não era seu costume, então me aproximando perguntei se ela estava doente. - Estou grávida gaúcho! Respondeu falando baixinho. Enquanto o barco acelerava seguindo viagem rio a baixo, eu perguntei se voltaria ao sul e quem era o pai. Colocando a cabeça para fora do barco, ela sorrindo respondeu. - É um anjo meio veado.
         Passei fora da região do garimpo por alguns meses, quando tornei a me encontrar com garimpeiros conhecidos perguntei pelo seu Bill. Contaram-me que numa noite a Beatriz estava bebendo numa cidade das margens do Solimões, quando foi abordada por policias que procuravam por drogas, por algum motivo a Beatriz socou a boca de um deles quebrando-lhe os dentes, foi então espancada e levada por eles e depois disso nunca mais ninguém tornou a ver o seu Bill naquele garimpo , em nenhuma outra cidade ribeirinha e em nenhum outro lugar.


Beatriz
“De balsa em balsa piranha do rio
novos amigos pode ser sempre um perigo fatal
abocanhando tudo e todas que lhe desse prazer
é sapatão uma palavra de mau gosto total”

O velho Bill que o rio engravidou
Revidou golpe por golpe até o final
Aposto um braço que ela não chorou
Quando espancada brutalmente pela federal

Muito alta,muito louca e ocasionalmente lúcida
Dissimulava na postura os peitos em evidência
Preferia às mulheres, me dizia sempre
Frágeis e opcionais como a própria existência

Sorrio com ironia mostrando seu ventre
Lembro bem do que me disse quando deixou o rio
Estou indo pra cidade, já não sou Bill sou Maria
Um anjo meio gay desceu e me seduziu.
                       
                        

sexta-feira, 9 de março de 2012

História de Onça - Parte VI






           RABUCÁ
         
        Deixamos para traz a aldeia do capelobo e seguimos remando por mais dois dias sem termos encontrado mais nenhuma outra aldeia nas margens do rio, que naquela altura se tornara mais estreito e suas águas geladas corriam apressadas fugindo do frio das montanhas próximas. Montamos um acampamento improvisado na margem dum igarapé, onde nossa canoa poderia ficar protegida da correnteza do Auris e já era mais de meia tarde quando deixamos tudo organizado, inclusive as lenhas da fogueira tinham sido recolhidas em quantidade suficiente para toda a noite, que se aproximava silenciosamente estendendo seu manto gelado sobre a floresta.    Juntando nossas lonas plásticas montamos apenas uma tenda, onde acendíamos no centro a fogueira e as redes eram armadas em volta do fogo, o mais perto possível, e durante toda a noite  revezavamo-nos na tarefa de colocar mais lenha na fogueira, pois de madrugada a umidade e o frio gelava as costas dos mateiros cansados, espantando o sono da caboclada que passava a noite toda “quase sem dormir, com um olho fechado e o outro sem poder abrir”. Pela manhã a água gelada do igarapé despertava os garimpeiros, que ainda sonolentos tinham que molhar os pés entrando na água para poder lavar o rosto barbudo e amassado, resultante do desânimo causado pelo cansaço e as noites mal dormidas, piorando ainda a nossa aparência desagradável, agravada ao longo do tempo passado na umidade da floresta, sendo picado constantemente por insetos, arranhados por espinhos, sujos barbudos e cabeludos, vestindo as mesmas roupas rasgadas úmidas e enfumaçadas pela fogueira feita com lenhas verdes, pegando chuvas e secando a roupa molhada no próprio corpo ou na fumaça da fogueira durante a noite, hora em que o caboclo fica catando os carrapatos, que se não forem encontrados antes de escurecer, provavelmente não deixarão o hospedeiro dormir em paz, picando o corpo fedorento do mateiro até encontrarem o local ideal onde possam passar despercebidos por alguns dias, chupando sangue até quase estourarem, como um que encontrei outro dia no meu sovaco e que parecia uma verruga sendo quase do tamanho de uma uva. Por isso quem se aventura mata adentro deve conhecer muito bem a floresta e os seus moradores, saber por onde andar, qual o arbusto que não deve cortar, ou que não deve tocar. Conhecer os insetos e seus hábitos, como os da jiquitaia, uma formiga diminuta que vive num desses arbustos que devem ser evitados, pois uma chuva miúda de jiquitaia cai sobre quem sacudir os galhos deste arbusto e mesmo depois de tirar toda a roupa para se livrar das formiguinhas, espanar os cabelos e o corpo, o desavisado passará o resto do dia com a pele ardendo e possivelmente terá febre alta á noite. Pior ainda é a picada da terrível e agressiva  tucandeira, esta formiga grande e negra tem a picada mais dolorida que a do escorpião, constrói seus ninhos às vezes nas raízes das árvores e quem por descuido amarrar a corda da rede na árvore delas, seguramente não terá um sono muito tranquilo, pois quando estingadas as tucandeiras saem agressivas da toca, atacando sem piedade o intruso com seus ferrões poderosos, que podem fazer um caboclo forte falar em inglês poucas horas depois de ter sido picado por mais de uma delas, porque entre outros sintomas, o veneno também paralisa a língua, fazendo o caboclo falar enrolado como os gringos , que falam, falam e ninguém entende nada.       
               Não tínhamos mais café para adoçar o bico e comíamos pela manhã o que tinha sobrado do jantar, isso quando sobrava alguma coisa, pois quase não se via caça alguma naquelas montanhas frias, talvez porque naqueles meses do ano quando as águas dos grandes rios estão baixas, os animais procuram alimentos nas terras férteis das vazantes, onde o caititu engorda em meio fartura de frutos dos buritizais.  Enquanto isso cada dia mais magros e seguindo sempre a mesma rotina, nós três acompanhados pelos dois indiozinhos subíamos e descíamos montanhas todos os dias abrindo buracos em todas as direções, bateando pacientemente o cascalho retirado do leito dos córregos que desciam das cordilheiras e concentrando no fundo da bateia meia dúzia de fagulhas de ouro e grandes pedaços de ferros, quartzo, cassiterita, malacacheta e outros minérios que sempre estão presentes nos garimpos onde é encontrado ouro, fazendo-nos acreditar sempre que na manhã seguinte descobriríamos a grota rica, encontrando o ouro ianomâmi que estava nos esperando, e desta esperança desesperada tirávamos forças para subir a próxima montanha ao amanhecer do dia seguinte, mesmo estando nós enfraquecidos pela falta de alimentação adequada, pois não tínhamos mais nenhum alimento trazido da cidade e sobrevivíamos somente com o que encontrávamos durante o dia nas nossas caminhadas pela mata.
       Os dois índios ao contrário de nós não demonstravam nenhum sinal de fraqueza, eles estavam em seu habitat natural, acostumados a alimentar-se com as pequenas porções de alimentos que a floresta oferece oportunamente, aranhas caranguejeiras, marandovás, larvas de insetos e outros alimentos como os caranguejos que encontrávamos removendo as pedras do leito dos igarapés e que eram saborosos mas escassos e como não tínhamos tempo nem disposição para sair pela mata a procura de alguma caça, raramente matávamos algum pássaro, macacos ou outros bichos enquanto subíamos e descíamos as montanhas em busca de ouro, enquanto isso a fome, o desânimo e a fraqueza se faziam cada dia mais presentes.
            Certa vez, um garimpeiro desconhecido aproximando-se da rede onde eu me encontrava, quase morrendo de febre, conseqüente da malária que me pegou de jeito num garimpo do rio Pacacibí, falou depois de olhar-me por algum tempo, em vós alta oque estava pensando, dizendo, sem demonstrar a mínima preocupação com o meu estado, que ovelha não é pra mato. Não gostei nem um pouco da sua franqueza, mesmo sabendo que ele tinha alguma razão em acreditar que a selva é para os caboclos, pois entre os garimpeiros do Bernardo eu fui o mais resistente durante as primeiras semanas na selva, e foi esse um dos motivos que levaram o Bernardo a escolher a mim entre os outros garimpeiros para acompanhá-los nas pesquisas de minérios nas cercanias da aldeia do tuxaua Paulo, mas com o tempo a selva cobrava de mim o que eu não tinha, faltava vitamina d e a cada nova manhã as montanhas me pareciam mais altas, os dias mais longos e a terra mais dura para cavar.
            O Bernardo e o velho branco também se sentiam abatidos, mas era evidente que entre nós três, era eu quem tinha os pés mais longe da aldeia, e a floresta sabia disso. Bebendo água de cipós durante as longas subidas das encostas de serras que consumiam horas de caminhada, já chegávamos cansados na outra face da montanha e depois de algumas horas escavando o leito dos igarapés, tínhamos que voltar apressados para o acampamento, antes da noite nos encontrar no caminho. 
          Mais tarde no relativo aconchego das redes armadas em volta do fogo, depois do banho revigorante nas águas frias do igarapé, nós iniciávamos a noite planejando qual a direção que tomaríamos no dia seguinte, comentávamos sobre o tamanho dos grandes pedaços de ferro que encontrávamos bateando o cascalho daquelas montanhas e que nunca tínhamos visto graúdos assim em nenhum outro garimpo, do grande e límpido cristal de quartzo que o velho Branco encontrou numa das nossas escavações e que abandonamos na mata por ser pesado demais, falávamos também sobre outros minerais que encontramos nas nossas escavações, que são chamados pelos garimpeiros de formas. Estes minerais estão sempre presentes no cascalho dos garimpos de diamantes e dependendo da coloração e do formato recebem o nome de feijão preto, feijão branco, bosta de barata etc. sendo  indicativos de que pode haver diamantes por perto.
         Também escutávamos as histórias do Bernardo, falando sobre as pepitas de ouro que ele encontrou nas fendas das pedras da cachoeira de um igarapé no Pará, depois de ter escutado a cozinheira contando seu sonho pela manhã, dizendo que naquela noite sonhara que tinha subido a cachoeira do igarapé e que estava admirando os peixinhos coloridos que nadavam nas águas cristalinas do riacho em meio às pedras, quando percebeu que o cascalho do leito do igarapé estava amarelo de pepitas de ouro. Contava o Bernardo que mais tarde pensando ainda no sonho da cozinheira, saiu do acampamento sem ser percebido e subindo a cachoeira seguiu caminhando por dentro do igarapé, cuiando, bateando aqui e acolá o cascalho e num determinado local onde havia um paredão de pedras represando o riacho, encontrou as pepitas de ouro, que retirou das fendas da pedra onde se encontravam, com a ponta do facão.
           Falou também do garimpo que não quis comprar por dois quilos de ouro, por não acreditar no homem doente que agradecido pelos remédios, alimentação e estadia pagos pelo Bernardo durante sua convalescença, falou do tal garimpo que pertencia a dois gringos brabos, inexperientes, que tinham garimpado muitos quilos de ouro no local e que estavam vendendo por apenas dois quilos o garimpo rico, sem saber que lá havia muito mais ouro do que aquele que já tinha sido retirado. O Bernardo contou que depois de ouvir a história do enfermo, pagou mais um prato de sopa para o homem doente e voltou para a mata ao garimpo onde trabalhava, depois de algumas semanas retornando á cidade para fazer compras, encontrou-se com um garimpeiro conhecido que tinha enriquecido depois de ter acreditado no tal homem doente e comprado o garimpo dos gringos.
          Contava o Bernardo que a partir daquele dia passou a acreditar em todas as histórias de ouro, até mesmo na do índio solitário que chegando ao acampamento falou que sabia onde havia ouro charami, muito ouro em ianomami. Quando o Bernardo perguntou se haviam pepitas no local, o índio respondeu que sim, então pegando um cavaco de lenha pequeno o Bernardo perguntou se as pepitas eram daquele tamanho, o índio tornou a responder que sim, quando mostrado um cavaco maior, também foi sim a resposta, depois um maior ainda e a resposta do índio continuou sendo afirmativa.  Bastava então, para encontrar estas pepitas gigantes de ouro. apenas seguir o índio mata adentro, que com muito prazer ajudaria a comer o rancho até acabar e depois  desapareceria na floresta, deixando os garimpeiros gananciosos perdidos no meio da mata, sem guia, sem rancho e sem o tal ouro charami.
              Naquelas noites sem lua, no centro da mata a escuridão é de meter o dedo no olho, como costuma falar o caboclo. Fechar ou arregalar os olhos, não faz a menor diferença quando não há nada do lado de fora de nossas próprias lembranças. 
    Os pequenos pontos de fungos luminosos brilhando no chão úmido da floresta, eram como estrelas distantes, espalhadas nas profundezas do céu, sobre o qual armamos nossas redes, e de onde, pra quem olhava de cima, fazia até medo cair. 
     Se engana quem pensa que a mãe da lua não sabe que não há nenhuma picada, nenhuma trilha entre as estrelas da mata e o caminho de casa, não tem volta. O João que foi...e foi... Jamais retornou e nunca retornará, porque todos os sonhos, realizados ou não, são apenas ilusões perdidas para sempre, como aquelas estrelas miúdas espalhadas pelo chão da floresta, lá onde aqueles que foram e viram, não serão nunca mais os mesmos.
                                                                                                                                                                     Total era a escuridão no centro da mata naquelas noites sem lua, nem se podia ver as próprias mãos, mas milhares de pontinhos luminosos brilhavam no chão úmido da floresta como se fossem as estrelas do céu.

                     ESTRELAS DO CHÃO
                                                                                                                                                              Apesar de termos ficado muito íntimos, eu nuca perguntei por que ela matara o marido na rede com uma facada na barriga. Quando ouvi falar dela pela primeira vez, eu estava fora do garimpo pescando tambaquis, tinha alugado um pequeno barco peixeiro numa cidade das margens do rio Solimões. Andando um dia pelo porto, ouvi quando garimpeiros que frequentavam a cidade, falavam da mineira que havia assassinado o marido durante uma viagem no barco que fazia linha entre a cidade de Limoeiro, no rio Japurá, e Tefé. Os garimpeiros comentavam entre si que o falecido fora muito bom para ela, e que antes de morrer sangrando na rede, pediu para que não prendessem a mulher, que acabou passando apenas alguns meses na prisão da cidadezinha, voltando depois para o garimpo. Fiz, enquanto escutava os garimpeiros contando o assassinato, o meu próprio julgamento condenando a mineira, a assassina desconhecida. 
    Passando talvez um ano, o senhor destino me levou a viver por alguns meses num pequeno hotel de madeira numa outra cidade do alto Solimões, aonde os garimpeiros vinham de tempos em tempos gastar o ouro retirado do rio que nascia na fronteira peruana. Meu quarto era o segundo do lado esquerdo do estreito corredor do andar superior, o primeiro quarto, separado por uma parede fina de madeira era o da morena simpática que passava as noites fazendo programas com garimpeiros ou com alguns viajantes que ocasionalmente hospedavam-se no hotelzinho, vindos da Colômbia ou de Manaus, e enquanto ela trabalhava duro, eu do outro lado da fina parede escutando os gemidos, quase sempre não podia dormir. Outras mulheres com a mesma profissão ocupavam outros quartos ao longo do corredor, algumas eram minhas conhecidas do garimpo e com o tempo todos ali se conheciam, hóspedes e frequentadores do hotelzinho. A morena do quarto ao lado que costumava sair à noite com um vestido vermelho e que sempre me cumprimentava sorrindo cordialmente, era a mineira assassina, e foi ela que numa daquelas tardes quentes bateu levemente na porta do meu quarto, vestindo aparentemente apenas uma camiseta de algodão branco e perguntando se eu por acaso não teria creme para pele. Ela entrou e levantando um pouco a camiseta perguntou-me se sua pele estava ressequida. Eu sentado na cama, apenas respondi que não, me fazendo de desentendido. Devido ao meu aparente desinteresse, ela saiu logo do meu quarto meio sem jeito, e como eu estava de pé na porta olhando-a, ela  voltou-se antes de entrar em seu quarto e levantando novamente sua camiseta mostrou seu sexo, perguntando-me o que eu achava. Eu sorrindo ,balancei a mão dizendo. - Mais ou menos! Ela deu uma grande gargalhada e antes de entrar em seu quarto disse apontando para mim. -Tu és um boiolão !  A partir daquele dia a mineira tornou-se talvez a minha melhor amiga daqueles tempos sombrios, e sempre que algum hóspede novo perguntava quem era a morena do vestido vermelho, eu dava todas as informações que ele desejava ouvir e omitia todas que ele não deveria saber. Acredito que ela fazia o mesmo comigo, porque andei até meio popular naquela época. Ela também trabalhava algumas noites da semana no bar que um garimpeiro havia alugado na cidadezinha, o dono do bar, o garimpeiro cujo nome não lembro, foi assassinado por dividas de drogas por outro garimpeiro.  Ele estava sentado no dia de sua morte fazendo anotações, quando o assassino entrou passando entre nós, que estávamos no salão. Naturalmente foi até o som aumentando o volume, depois se aproximou da vítima que acostumado com sua presença diária no bar continuava sentado folheando um bloco de anotações sobre a mesa. Inesperadamente o homem sacou uma faca e num só golpe certeiro enfiou toda a lamina de cima para baixo, entre o pescoço e a clavícula, atravessando o coração do dono do bar.  Aproveitando-se da surpresa o assassino retirou-se rapidamente passando entre nós com a faca ainda em punho, enquanto o dono do bar levantando-se atônito, deu ainda dois ou três passos em nossa direção, antes de cair como uma pedra,  quebrando a cabeça no degrau do piso do salão. Deitamos o morto sobre uma mesa de sinuca e com uma caneta eu introduzi uma toalha no ferimento para estancar o sangue quente que continuava escorrendo sobre o pano verde da mesa. 
     Depois do assassinato, a mineira que já sofria de crises de pânico esporádicas, aumentou o consumo de drogas, e muitas noites quando não havia clientes, ela retirava o colchão de sua cama e arrastava  para o meu quarto e colocava no chão ao lado da minha cama, onde passava horas falando de seu marido falecido, do medo que sentia de uma possível vingança de seus parentes, de seu passado em Minas Gerais, filhos que lá viviam, homens que conhecera, lugares por onde passara, sonhos perdidos, ilusões,desilusões...Numa destas noites abrindo sua bolsa mostrou-me a faca com a qual tinha matado seu marido, me presenteou as sandálias do falecido e chorou muito até adormecer encolhida sobre o colchão velho sem lençóis. Naquela noite, enquanto eu esperava o sono chegar, olhando a mulher adormecida, lembrei da frase que li ou ouvi em algum lugar. Não julgues, há quem julgue melhor que você.              
                A mineira tinha muitas amigas do garimpo, algumas delas muito estranhas, uma delas deixava seu filho, recém nascido, durante horas no meu quarto aos meus cuidados, enquanto fumava pasta de cocaína com as outras mulheres, no quarto ao lado. Entre elas havia uma chamada Beatriz que eu já conhecia e talvez por ser ela também sulista, ou por preferir as mulheres como costumava dizer, com o tempo nos tornamos amigos também.