sexta-feira, 27 de abril de 2012

História de Onça - Parte XIII


                                  PONGÓ 


          Numa noite de sábado, deitado na rede, sem sono eu olhava as estrelas passando lentamente na cortina de céu que tapava a entrada da caverna, quando bateu na pedra a lata de conserva, avisando que um peixe mordera o anzol, na outra ponta da linha. Levantei sem pressa, porque não gostava muito de peixes naquela época, ligando a lanterna vi o galho da árvore no qual a linha estava presa muito vergado, indicando o tamanhão do peixão puxava. Era um pongó, um trairão daqueles que o índio põe a mão na altura do peito para mostrar o tamanho.
          O que não faltava no acampamento era lenha seca trazida pelo rio durante as cheias, então depois de tirar o peixe da água, fiz uma fogueira grande e botei para assar de longe, num espeto de madeira fincado na areia, onde o trairão de tão grande, mais parecia uma paca espetada. De madrugada comi umas bocadas do peixe e guardei o restante na caverna, era domingo, os garimpeiros rio acima deveriam estar de folga. Pela manhã, resolvendo dar uma caminhada saí pelo lavrado em direção á uma fazenda de garimpo, aonde dois conterrâneos meus recém chegados do sul eram os novos encarregados. No caminho subi uma montanha, de quatro pés, escorregando nas pedras roladas do cascalho exposto, que chegava ao topo cobrindo toda a serra, que outrora num passado distante, tinha sido talvez o leito de algum rio primitivo, que com os movimentos da crosta, foi parar no cume da serra da Maturuca.  Lá de cima se vê o rio azul, que demarcando a fronteira, vem pulando corredeiras e cachoeiras no seu caminho sinuoso, desgastando e arredondando as pedras que carrega serra á baixo com suas águas ligeiras, pedras essas que um dia estarão quem sabe no topo de outras novas montanhas, que surgirão num futuro distante, cobertas de pedras roladas que ninguém saberá de onde vieram, assim como aquela em que eu estava.
            Chegando ao rio esperei passar uma canoa que me levasse ao outro lado, a primeira que passou me levou até a outra margem e durante a travessia um garimpeiro desconhecido implicou comigo sem motivos, devia estar drogado para fazer inimizade sem necessidade. Descendo da canoa, segui mal humorado em direção ao garimpo, já arrependido de ter saído da minha caverna. Chegando na cede do garimpo, encontrei os garimpeiros de diamantes  reunidos e revoltados. 
           O líder do grupo que me conhecia, ao me ver se desculpou, por estar naquele exato momento generalizando todos os meus conterrâneos gaúchos com uma série de palavrões.  Sem criar problemas, perguntei pelos dois encarregados  novatos. Eles estavam trancados na casa á três dias, com medo de serem mortos pelos garimpeiros que descontentes com a nova gerência do garimpo estavam em pé de guerra. Levei então os dois homens sujos, barbudos e famintos para a minha caverna, onde assim que chegaram, comeram todo o trairão pescado na noite passada e dormiram sossegados, depois de quatro noites de vigília. Um dos homens o mais calado, tinha perdido parte do braço trabalhando numa pedreira no sul, o outro de cabelo e bigode negros, embora fosse muito conversador, era também um homem de paz e gerenciar sem experiência um garimpo de diamantes com dois donos e duas balanças, não é tarefa fácil. No dia seguinte os levei até a estrada, onde pegaram uma carona para acidade e depois voltaram para o sul com o picuá vazio e mais uma história de onça para contar em casa.



                                    PICUÁ

            No último dia em que o índio picuá apareceu para trabalhar, mergulhamos no estirão do rio, bem em frente a caverna, onde ele encontrou uma entrada entre três pedras grandes que levava a uma espécie de câmara, no fundo do rio, onde havia um depósito de cascalho muito antigo. No início da tarde bateamos uma amostra desse cascalho encontrado e ficamos otimistas com o resultado, pois além de conter muitas formas, indicando que naquele cascalho virgem poderia haver diamantes grandes, também enchemos uma tampa de garrafa de cachaça com ouro laminado, que juntamos na bateia depois de surucar o material.
           Felizes com o resultado da descoberta, deixamos a balsa no meio do rio, presa à corda que marcava o local das três pedras, onde era a entrada para o cascalho rico e fomos até a casa do Picuá, passando antes na corrutela para comprar uma garrafa de pinga com o ouro encontrado naquela tarde, para comemorarmos o nosso primeiro dia de sorte. Na casa do índio, enquanto bebíamos a cachaça esperando o peixe cozinhar, o Picuá contou um pouco de sua vida, dizendo que quando menino saiu um dia pelado da aldeia onde nascera e passando numa plantação, colheu um cesto de milho, que pretendia trocar por roupas com os ingleses que garimpavam diamantes no rio Maú.
          Vestindo suas primeiras roupas, o menino índio passou o dia admirado olhando os brancos que passavam horas no fundo do rio, com seus sapatos de ferro, procurando por pedrinhas coloridas. Fascinado, vendo o que nunca tinha visto antes, foi aos poucos abandonando a aldeia e finalmente passou a viver com os ingleses, se tornando garimpeiro ainda criança. Em seu primeiro mergulho, com o pesado escafandro, quebrou a clavícula.  Depois de sarar continuou a mergulhar, retirando nos poços do rio, latas e latas de leite em pó cheias de diamantes, que eram levadas embora para outras terras, pelos estrangeiros donos do garimpo.
          Quando adulto o Picua andou por muitos outros garimpos, na Venezuela e nas Guianas, ganhou e gastou muito dinheiro, viu e garimpou e vendeu muitas pedras boas. Quando conheci o velho índio garimpeiro, que teve a alma aprisionada pelo brilho dos diamantes, ele continuava vivendo separado da aldeia, numa pequena casa, na beira do rio, onde guarda apenas lembranças dos bons tempos, como a história  da índia que conheceu na selva da Venezuela. 
        Disse ele que os índios de lá, vivendo na mata, tem a pele clara, diferentes dos macuxis do lavrado, queimados pelo sol, e a tal indiazinha era assim, tendo a a pele clara como as noites de lua do lavrado  e ele perdidamente apaixonado, não pensou duas vezes antes de pedi-la em casamento ao tuxaua, seguido os costumes daquela aldeia. O tuxaua prometeu que depois de falar com a pretendida daria uma resposta ao Picuá, resposta essa, que ele disse naquela noite, estar esperando até hoje.
               Caía à noite sobre a serra da Maturuca quando eu deixei a casa do Picuá, voltando pra minha caverna. Era difícil a caminhada de mais de dois quilômetros, pelo leito seco e pedregoso do rio. No caminho eu vinha pensando nos relâmpagos distantes que vimos clareando o céu, por cima das serras em direção as cabeceiras do rio, ao entardecer. Tinha passado a temporada das chuvas e era pouco provável que alguma enxurrada nos surpreendesse com a balsa apoitada no meio do rio, o Picuá em certo momento ponderou que talvez devêssemos levar a balsa para a barranca, mas como os relâmpagos cessaram, não falamos mais no assunto, acreditando ser uma chuva passageira lá para o lado das nascentes. 
                 Chegando ascendi a fogueira na beira do rio, e aproveitando a claridade refletida na pequena praia de areias brancas, em frente a caverna, isquei o anzol jogando a linha na água. Esperei um pouco e como não beliscava nada, amarrei a linha no galho da árvore, ao lado da pedra grande, onde eu colocava .a lata que fazia barulho se por acaso pegasse algum peixe. Depois, como era de costume botei mais lenha na fogueira e fui pra rede olhar as estrelas passando no meu pedaço de céu, emoldurado pelo furo na pedra da entrada da caverna, até o sono chegar. E o sono, sentindo o cheiro da cachaça do índio, chegou cedo naquela noite. 
          Só despertei horas depois, quando ouvi surpreso o que parecia ser o ruído forte da correnteza das águas do rio escavando as areias na entrada da caverna. A fogueira apagara há horas e na escuridão, procurei tateando a lanterna na prateleira ao lado da rede. Pra minha surpresa o rio tinha subido as barrancas e continuava subindo, a nossa balsa amarrada , girava sem parar no meio do rio, já quase totalmente submersa e a canoa do Picuá se encontrava amarrada na outra margem, agora distante com a cheia e perigosa para ser alcançada a nado na noite escura e nada mais poderia ser feito, já era tarde de mais e a balsa estava definitivamente perdida. Passei o resto da noite sentado, olhando o rio e falando sozinho. Quando o dia amanheceu, indiferente e ensolarado igual a todos os outros, ouvia-se a cachoeira roncando furiosa, afogada com as águas novas da cheia inesperada, a balsa sumira em meio aos redemoinhos das águas revoltosas que desciam das serras, arrastando tudo que encontrassem pelo caminho, se espremendo furiosamente nas curvas do rio, desgastando as barreiras de pedras das cachoeiras.
         Eu soube, resignado, naquela madrugada, que mais uma história de onça tinha chegado ao seu fim e os diamante que tanto procurávamos, continuariam brilhando onde sempre estiveram, no fundo do rio Maú. O picuá da sorte, feito do osso da canela do passarão, continuaria também como sempre estivera, oco e vazio, e sendo assim eu voltaria pra casa mais uma vez de bolsos e mãos vazias, levando na bagagem apenas mais uma dessas história de onça que não vale nem a pena contar, porque talvez quase ninguém acredite ou esteja interessado nelas, também porque as histórias de diamantes, sem diamantes não valham nada. Mas para quem foi mergulhador nos garimpos, a possibilidade remota de poder voltar pra casa um dia, é sempre o maior de todos os desejos. Então naquela manhã, mesmo sem nenhum diamante, resolvi comemorar o meu regresso pulando, dançando, gritando e atirando para o ar, sem saber que o velho índio Picuá estava me olhando da outra margem do rio, com medo, pensando que eu tivesse enlouquecido, como ele me falou mais tarde.
                 

sábado, 21 de abril de 2012

história de Onça - Parte XII


                                DIAMANTE   


             Mesmo quem nunca tenha visto um diamante bruto, apontará com o dedo um único colocado entre milhares de outras pedrinhas. Assim me falou um velho garimpeiro que estava há três anos sem ver a família quando eu cheguei no garimpo. O diamante é pura fascinação, aprisionando para sempre a alma daqueles cuja imagem seu brilho espelhado refletiu, é o que brilha na escuridão, fragmentos do arco-íris quebrado e a semente de todas as cores.                                                                                                                                                                                                             
       Trabalhando uns tempos juntando pedras num garimpo, recebi em pagamento os meus primeiros diamantes, chibíus, como eram chamados os diamantes pequenos que foram separados á dedos pelo dono do garimpo, não valiam quase nada, mas eram lindos aqueles pequenos pontinhos brilhantes colorindo a palma da minha mão e quando um garimpeiro das proximidades encontrou uma pedra de nove quilates, mergulhando num dos poços do rio Mau, eu achando que já tinha aprendido o suficiente sobre diamantes enquanto carregava pedras, decidi fazer o mesmo.
     Fui até a cidade onde comprei um motor a gasolina, um compressor de ar, equipamento de mergulho, bateia, um jogo de surucas e rancho. Voltando para o garimpo, fui deixado pelo dono de uma velha caminhoneta numa das curvas do rio. Na outra margem em frente ao meu acampamento, morava a alguns quilômetros de sua aldeia, um índio velho macuxi chamado Picuá. Tinha ele sido garimpeiro quase a vida toda, como me contou depois e como éramos bons vizinhos, decidimos garimpar juntos, assim que as águas do Maú baixassem mais um pouco.  
                   Depois de duas semas, a picada de uma aranha em minha perna tinha desinchado e com as águas um pouco mais baixas, construímos uma pequena balsa com câmaras de ar, onde adaptamos o motor e compressor e descemos o rio, levando na canoa o rancho e as ferramentas e rebocando a balsa. O Picuá me levou até uma caverna localizada na barranca, poucos metros a baixo de uma cachoeira, que seria minha morada por algum tempo. Tinha três compartimentos a minha caverna, me instalei no da frente, onde a última cheia tinha depositado um piso de areia fina, por onde á noite vermes pretos do tamanho de um lápis escorregavam deixavam seus rastros. 
       Os outros dois compartimentos dos fundos, ficaram para os morcegos, moradores mais antigos. Construí uma prateleira para colocar os alimentos e finquei dois paus próximos a entrada, para armar minha rede. Uma nuvem constate de piuns me obrigava usar sempre calça, camisa de mangas compridas e um pano amarrado na cabeça que eu procurava manter sempre molhado cobrindo o rosto. Uma pedra quadrada na beira do rio em frente a caverna, servia de mesa, ao lado da qual eu fazia a fogueira onde preparava as refeições.
              Enquanto as águas do Maú baixavam devagar, o Picuá e mais dois índios mergulhavam em locais rasos, se alternado nas tarefas. Um mergulhava enchendo os sacos de cascalhos, os da canoa cuidavam do compressor e puxavam pela corda os sacos de cascalhos, que depois de encher a canoa, eram levados para terra e surucados. A suruca é um conjunto de três peneiras, fina, média e grossa, que são posicionadas sobre a bateia e depois de colocado o cascalho dentro  o garimpeiro gira na água o conjunto de peneiras em movimentos precisos e compassados, resumindo, juntando no centro os minerais mais pesados, ao mesmo tempo em que os classifica por tamanhos nas diferentes peneiras. Os diamantes que chegam a bateia, passando por todas as três  surucas, são pequenos demais, e os que ficarem na peneira grossa e média, infelizmente são raros demais e por fim na peneira fina, os que por acaso se encontrem, são sempre poucos de mais.
           Assim, conforme as águas correntes do Maú baixavam, acontecia o mesmo com o nosso estoque de alimentos, sem que encontrássemos nenhum diamante de valor, além de alguns pequenos que mal pagavam a cachaça comprada na cantina do garimpo, onde tudo era vendido a peso de diamantes. 
         Após o primeiro dia que ficamos sem cachaça no trabalho, um dos índios não apareceu mais, o rio estava mais baixo e o Picuá resolveu descer a balsa para um estirão em frente à caverna, localizado entre a cachoeira e o início de uma corredeira, que fazendo uma grande curva se estendia por seis quilômetros rio a baixo. Desmontamos a balsa para descer a cachoeira e aproveitamos o compressor fora da base para mergulhar nas cavernas, que se formavam entre as pedras ao longo do leito do rio no período da seca. O índio Picuá experiente mergulhador desde a época do escafandro, tinha um fôlego invejável e apesar da idade avançada, passava vários minutos submerso sem equipamento, enchendo os bolsos das calças de cascalhos que depois eram examinados em busca das formas, ou seja, dos minerais específicos que indicam a possibilidade de haver ou não diamantes no cascalho examinado.
         Carregando nas costas o motor e o compressor nós andávamos sobre as pedras irregulares e pontiagudas, procurando nos poços e cavernas pelo cascalho diamantífero. Numa das cavernas alagadas em que o Picuá entrou  usando o compressor de ar, esqueceu ao sair a cuia que levara para juntar o cascalho lá dentro, então enquanto eles examinavam o cascalho eu resolvi buscá-la. Por uma ou duas vezes eu tinha experimentado respirar num equipamento de mergulho que ajudei a montar no rio Urariquera  há alguns anos, e pensando estar apto para a tarefa, inconsequentemente mergulhei na caverna respirando pela mangueira de ar. A estreita caverna se estendia horizontalmente por uns trinta metros, onde eu tateando no escuro encontrei a cuia esquecida no mesmo trágico instante em que faltou o ar. Apavorado não pensei duas vezes, soltei o equipamento e nadando desesperadamente voltei já quase sem forças, até a entrada da gruta. Não havia trancado a válvula do respirador como imaginei a princípio, um dos índios tinha desligado o motor e fechado a torneira do compressor, onde estava conectada a mangueira do ar, dizendo que esquecera que eu estava dentro da caverna. Fingindo acreditar na história de onça e sem termos encontrado nenhum cascalho bom, voltamos a montar nossa balsa no rio.
              O índio que esquecera de mim na caverna, também não voltou no dia seguinte, com o Picuá veio apenas um de seus filhos e como passar horas submerso nas águas frias do Mau não é tarefa fácil, o velho índio perguntou-me se eu sabia mergulhar para ajudá-los. Fui obrigado a mentir que sim, pois do contrário teríamos que parar de garimpar por falta de mergulhadores.                 Chegado a hora do meu primeiro mergulho, dissimulando o nervosismo que acelerava o meu coração, tentava agir normalmente enquanto me preparava. Não tínhamos roupas apropriadas, mergulhávamos de calça e camisa, usando apenas o cinturão de chumbo onde a mangueira de ar era presa com um nó, máscara e chupeta. 
           Sem saber a profundidade do local, mergulhei de pé na água gelada, seguindo a corda que estava presa a uma pedra no fundo do rio, junto as ferramentas e o cascalho que estávamos retirando. Foi uma eternidade até que meus pés tocassem o leito do rio, meus ouvidos estavam para estourarem, um pouco dágua dentro da máscara insistia em entrar no meu nariz, enquanto eu apertava tanto a chupeta com os dentes que sentia gosto de sangue na boca. No desespero que tomou conta de mim, perdi a corda que me guiava, enquanto a forte correnteza tentava arrancar a máscara do meu rosto, completamente em pânico e desorientado na escuridão pensei seriamente em desistir.  Agarrando-me então a coragem, que eu não tinha, e pensando na vergonha que passaria desmentindo a minha mentira para o velho Picuá, me deitei de barriga sobre as pedras do fundo, mantendo a cabeça de frente pra correnteza fui aos poucos me acalmando, e em seguida encontrei a corda e fui me arrastando até a boca do serviço onde estavam as ferramentas, uma alavanca para quebrar o cascalho e a cuia para encher os sacos amarrados á corda dupla, que levando um saco cheio até a canoa, trazia ao mesmo tempo outro vazio.
          Depois de uma hora e meia ou duas, que talvez tenhas sido as longas de minha vida, tremendo de frio, fiz sinal na mangueira de ar para que me puxassem de volta a canoa. Fomos então até a margem surucar o cascalho e enquanto os dois índios descarregavam a canoa, eu saindo de fininho, fui para de trás de uma pedra, porque uma diarreia nervosa e emergencial me chamava urgentemente. Com o tempo fui acostumando com os mergulhos nas águas geladas do Maú, onde passava molhado a maior parte do dia, fugindo dos piuns, ao contrário o Picuá e seu filho já não vinham mais todos os dias na minha caverna.
           Assim como as águas do rio Maú, que diminuíam mais a cada novo dia, nossas chances de encontrar algum diamante pareciam também cada vez menores e os meus sócios índios pouco a pouco voltavam para suas atividades rotineiras, passando os dias surucando o arroto das máquinas grandes do garimpo acima das cachoeiras, onde sempre sobravam alguns diamantinhos que escapavam pelas máquinas resumidoras e que um surucador com bons olhos e com muita muita paciência, de uma em uma, botava no picuá feito do osso da coxa do passarão, as pedrinhas coloridas. 
        Em pouco tempo de treinamento eu aprendi a surucar mais ou menos, e nos dias em que o índio Picuá não vinha, eu mergulhava só, o que não é aconselhável, levando alguns sacos de cascalhos para terra e surucando atentamente, na esperança de encontrar por acaso uma daquelas pedras magicas, que aprisionam a alma de quem as possua.
        Eu não escutava mais nada morando na caverna,  onde o sol nascia e se punha entre as duas barrancas de pedra do leito do rio, perturbado com o barulho constante das águas da  cachoeira caindo dia e noite próximo a caverna. Minha barba rala que pouco protegia das ferradas dos piuns cresceu, minhas roupas encardidas, a calça e a única camisa de mangas compridas eram ao mesmo tempo roupa de mergulho, roupas de banho, de passar o dia e pijama a noite. Com o tempo fui acostumando a falar sozinho enquanto pescava, depois passei a conversar com os morcegos que passavam pela minha rede, quando saíam ou entravam para os seus aposentos dos fundos á noite, e por fim passei a conversar comigo mesmo a qualquer hora do dia ou da noite.   

À vezes falo sozinho, algumas vezes me calo,
Eu nem escuto o que digo, e se escuto, nem ligo,
Repondo mal as perguntas, que nem me lembro ter feito,
Se eu pra mim mesmo pergunto, porque responder direito...



sábado, 14 de abril de 2012

História de Onça - Parte XI



                               PASSARÃO

           Ao anoitecer, passamos por uma aldeia e o homem negro mandou-me seguir a cavalo na frente, em direção a uma casa isolada, construída ao lado de um buritizal, onde provavelmente haveria uma cacimba de água e algumas árvores maiores que serviriam de abrigo e onde poderíamos armar nossas redes. Sem descer do cavalo chamei várias vezes sem obter resposta, a porta da casa estava aberta mas ninguém apareceu. Esperei os outros chegarem e fomos então até a casa, para verificar se era habitada, quando passamos pela porta da casa de um só cômodo, surpresos vimos uma mulher índia que chorava acocorada num canto e que se pôs a gritar desesperadamente, como se estivesse vendo o próprio demônio.
            Estava tão aterrorizada que seus olhos arregalados em nossa direção não nos viam e nem tão pouco ouvia o que o homem negro falava em seu idioma, tentando acalmá-la . Sem alternativa nos afastamos rápido, deixando em paz a pobre mulher amedrontada e quando finalmente acampamos em outro local distante daquela casa, já era noite. Depois de cavarmos às pressas uma pequena cacimba em meio ao buritizal, que logo se encheu de água. Armamos todas as nossas redes unindo as únicas três ou quatro árvores maiores que haviam perto do local ande ficara o carro e os bois.
         Cansados da viagem e com pressa para escapar das mordidas das formigas de fogo que agitadas atacavam impiedosamente os pés dos intrusos, nos deitamos, enquanto o dono da carreta que também tinha armado a sua rede nas mesmas árvores, dava água e acomodava seus dos bois. Quando tudo parecia estar resolvido, faltando apenas o sono chegar, o dono dos bois voltou deitando seu corpo grande e pesado na rede, vergando as árvores que não suportaram o nosso peso, encostando nossas redes no chão, cheio de formigas, obrigando-nos a sair no escuro em busca de outras árvores. Quando o dia amanheceu nossa aparência, não muito agradável, que apavorara a pobre índia no dia anterior, tinha piorado bastante com o desconforto da noite mal dormida. 
                  Como as folhas arrancadas de um velho livro, não lembro quando chegamos na boca da mata, nem onde fomos deixados pelo dono do carro de bois, antes de entramos na selva. Recordo de ter dormido uma noite na beira do rio Tacu tu com os meus dois companheiros, cujo leito rochoso formava um grande poço numa de suas curvas onde acampamos. Durante toda a noite os peixes se debatendo nos acordaram várias vezes, como se fossem enormes, talvez quem sabe fosse algum jacaré-açu, uma sucuriju, ou até mesmo o bicho desconhecido que saiu do lago seco. 
       Lembro também que por algum motivo discordei dos meus dois companheiros e voltei só pela selva, saindo outra vez no lavrado perto de uma aldeia Wapixana onde passei uma noite, antes de seguir a pé em direção a cidade, distante uns trezentos ou quatrocentos quilômetros talvez.
            Nesta aldeia os índios teciam algodão, confeccionando suas roupas e redes, cuja perfeição impressionava. Até mesmos os cães tinham suas próprias redes, pássaros selvagens domesticados voavam por entre as casas com suas penas coloridas, crianças alegres brincavam nos caminhos entre uma casa e outra, por onde passavam as mulheres usando seus vestidos de algodão, muito brancos, contrastando com seus cabelos negros. 
       Naquela tarde enquanto eu falava com o tuxaua perguntando qual o caminho que deveria seguir, de uma das casas localizada numa elevação, desceu correndo em nossa direção uma jovem índia, passando por nós e dirigindo-se á uma das casa próxima a do tuxaua. Talvez tenha sido essa a mais bela imagem de mulher que alguém pudesse ter visto. Os logos cabelos negros esvoaçando ao vento, seu corpo alto e esguio delineando os contornos do seu vestido branco, realçando seu rosto moreno e delicado, iluminado por seu alvo sorriso infantil.
                  Deixando pra trás a aldeia, segui pela trilha indicada pelos índios no início da manhã e logo nas primeiras horas, o sol forte do lavrado erguendo-se no céu, sem nuvens, prenunciava o calor das próximas horas. A passos largos pela trilha principal eu deixava para trás a mata e as montanhas que ficavam diminutas. Outras a minha frente cresciam enquanto eu me aproximava, para depois sumirem também no horizonte a minhas costas. A terra, a areia e as pedras em fogo aqueciam o solado de minha sandálias e em alguns momentos o sol forte, o calor insuportável e a sede me desorientavam fazendo-me errar a trilha por centenas de metros.
             Na tarde do segundo dia de caminhada, encontrei o local de uma antiga morada abandonada, com enormes pés de mangas, fazendo sombra na mata rasteira da beira de um igarapé. Eu trazia comigo arroz, farinha e anzol, fiz então algumas iscas com a farinha de mandioca e enquanto o arroz secava nas brasas da fogueira fui até o igarapé tentar pescar alguma piaba, refrescando o corpo deitado sobre a laje de pedra por onde a água fresca corria formando um poço mais abaixo, onde joguei o anzol várias vezes sem sucesso. Foi então que lembrando talvez da indiazinha, que vi na aldeia da boca da mata, me distraí comigo mesmo por algum tempo e quando percebi o barulho vindo do outro lado do poço já era tarde, uma índia velha e um menino que andavam pelo lavrado, me olhavam pasmos de espanto, seguindo depois apressados pelo caminho sem sequer olhar para trás.
                A trilha indicada pelo tuxaua na aldeia da boca da mata, levou-me até outra aldeia, onde havia uma escola. Dois homens e uma mulher branca vindos da cidade numa caminhoneta trocavam mercadorias por porcos, galinhas e outros animais com os índios e caboclos da região e com eles voltamos de carona para a cidade, eu e o professo da aldeia, um jovem caboclo que me presenteou durante a viagem com a cabeça de um cervo que os índios tinham caçado nos buritizais do lavrado. .
               Chegando na cidade encontrei o Bernardo preparando-se para voltar ao Pará. Ele tinha pedido emprestado um revólver que nunca devolveria ao dono, mostrando-o me convidou para ir com ele, dizendo que o seu velho garimpo não produzia muito ouro, mas que dava bem para se manter e que assaríamos primeiro na cidade onde estavam sua mulher e seu filho e que em pouca semanas estaríamos novamente na mata.
              Resolvi não ir com ele e viajei para o sul primeiro que o Bernardo para o Pará. Fazia muito tempo que eu não via meus filhos e me sentia cansado de andar pelas matas sem obter nenhum resultado. No sul, depois de algum tempo telefonei para um hotelzinho em Boa Vista, onde se hospedavam a maioria dos garimpeiros rodados naquele tempo, um deles chamado Silvestre que perdera uma das pernas numa queda de barreira no garimpo da serra pelada e que era nosso conhecido atendeu ao meu telefonema, quando perguntei se ele tinha alguma notícia do Bernardo, ele respondeu que tinham matado por aqueles dias o mateiro Bernardo, num garimpo do Pará. 
                 Eram tempos cruéis aqueles em que homens  rudes e mulheres desiludidas vindos de toda parte, se embrenhavam pela selva em busca de riqueza fácil, ou nem tanto.  Se embrutecendo ainda mais na convivência constante com outros gananciosos desajustados, onde a morte, o isolamento  e as adversidades de um mundo hostil,  rondavam constantemente os aventureiros sem leis e sem escrúpulos, estes que infelizmente fizeram os primeiros contatos com algumas aldeias indígenas outrora isoladas, levando até eles os reflexos negativos da nossa civilização, no comportamento dos homens incultos e selvagens que se matavam nos garimpos, em busca de ouro e diamantes,  enquanto isso nas grandes cidades, pacíficos cidadãos cultos e civilizados compram esses mesmos diamantes, trancando-os em seus cofres, ou ornamentando suas mulheres educadas e elegantes com jóias de ouro e brilhantes, alheios as milhares de bocas famintas das crianças das periferias. - Será que tem pão no céu? Perguntou para mãe a criança, antes de morrer de inanição