sábado, 23 de junho de 2012

História de Onça - Parte XXI


       
    TERRITÓRIO IANOMAMI

             Acreditando que ninguém possa partir e nem regressar sem levar ou trazer penas nas asas da siricora, respondi a muitos anos, quando um amigo, no leito de morte, me perguntou olhando nos olhos se eu acreditava na existência Deus, que sim. Achei melhor dizer que sim, porque se eu dissesse que tanto faz, não iria ajudar em nada, naquela hora, em que ele teria que enfrentar a onça inevitavelmente, com ou sem Deus, levando junto as penas da siricora, que nunca seriam esquecidas na beira do caminho que por acaso houvesse e não faria diferença então existir, ou não, recompensa alguma para quem deixasse o coração para trás ao partir, assim como ele teria  infelizmente que fazer logo.      
            Assim, como o vento breve desliza nas asas ligeiras da siricora, se faz quando urgem às horas, quando os sonhos e as esperanças já não dispunham de tempo, é que se vê com clareza explícita a plenitude, na magnífica simplicidade do lago, e de olhos arregalados ficamos saltando dentro da água, como fez o sapo que a bruxa falou outro dia, querendo ver também onde estava o tal lago, cuja beleza incomparável ouviu dois pescadores comentando, inconscientemente convictos de que não há nada do lado de fora de nossas próprias recordações, de nosso próprio, único e finito lago.
          Na cantina, pedi papel e lápis para escrever os confusos números dos telefones de conhecidos da cidade, que naquelas condições mal recordava e me deitei novamente na rede, preocupado com a demora do Chaguinha, o piloto da voadeira que ainda não voltara dos garimpos da mata, onde fora fazer algumas cobranças, antes de voltar para a cidade.
        Quando escureceu e começaram a chegar os primeiros fregueses, o cantineiro ligou o rádio á todo volume. Logo a cantina estava novamente lotada e alguns garimpeiros jogavam baralho, á peso de ouro, em meio a gritaria de homens e mulheres que tentavam se fazer ouvir, enquanto bebiam escutando a música num volume exagerado. Mantendo os olhos fechados, fingia não escutar os comentários que fazia cada garimpeiro que entrava, vindo diretamente me olhar na rede antes de começar a beber.
         Era terrivelmente angustiante aquela espera, em meio ao barulho ensurdecedor da cantina, a falta de ar, a insônia e as dores insuportáveis, mantendo incontroláveis meus pensamentos desordenados que não me davam trégua, não me permitindo adormecer e nem tão pouco acordar em meio aquele horrível pesadelo. Por fim, o dia amanheceu sem que eu percebesse e quando à noite chegou novamente, alguém sacudindo a minha rede falou que o Chaguinha acabara de voltar da mata e que partiríamos ao amanhecer. Foi essa a última lembrança lúcida da corrutela do garimpo Santa Rosa.
         Na madrugada seguinte antes de partirmos, quando fui carregado pelos passageiros até a voadeira e deitado no assoalho sobre um pedaço de lona, eu já estava quase em coma, despertando apenas quando sentia dores insuportáveis nas costas, causadas por algum movimento brusco da canoa descendo as correntezas, ou quando a água do rio, em alguma corredeira, respingava sobre o meu corpo febril. Às vezes fazia silêncio e eu abrindo os olhos me via só na canoa, pois o Chaguinha parava em alguns pontos do rio e entrava na mata, seguindo pelas trilhas que levavam até aos garimpos, onde buscava outros passageiros que iriam com ele para a cidade ou para fazer a cobrança de algum ouro devido. Enquanto isso os outros passageiros esperavam pelo Chaguinha na sombra da mata da beira do rio, enquanto eu deitado no fundo da canoa sem poder levantar, já não podia suportar a dor e a terrível falta de ar causada pela anemia profunda, que não oxigenava suficientemente o meu sangue..
            É difícil aceitar o que não se pode mudar, demorei muito para acreditar que aquela malária tinha vindo mesmo para ficar e quando contrariado, tive que aceitar a cruel realidade, primeiro senti raiva, por ter que desistir radicalmente de todos os meus planos, depois piorando mais e mais a cada dia, tive que começar a pensar na morte, como uma possibilidade imediata. Então a raiva foi aos poucos cedendo lugar a uma tristeza melancólica, cuja saudade dos amigos e familiares doía no início, muito mais que a própria dor. Por fim quando a dor se tornou insuportável a ponto de sufocar os últimos vestigios de esperanças, a desconhecida e sinistra morte, passou a ser a última e única alternativa possível contra aquele insuportável sofrimento, o último refúgio.
            Na última vez em que abri os olhos durante aquela viagem, a voadeira estava parada num remanso do rio. Eu estava só, pois os passageiros tinham descido para esticarem as pernas, caminhando pela mata. Tinham deixado uma espingarda encostada no banco da voadeira, quase ao alcance da minha mão. Então de repente pensei em terminar ali aquele sofrimento e até hoje ainda não sei se o teria feito, pois naquele momento uma mulher desconhecida, da qual nunca vi o rosto, subiu na canoa, sentou ao meu lado colocando minha cabeça no seu colo e me serviu delicadamente algumas colheradas de mingau de farinha de trigo. Ainda lembro de sua voz dizendo carinhosamente, que já estávamos quase chegando na boca da mata.
            Na hora certa, até mesmo a morte se faz necessária, como nessa historinha de onça que o sulista conversador me contou, naquela noite em que passou com seu companheiro, na minha caverna na barranca do rio Maú. Depois de comerem todo o trairão que fora assado por mim, na noite anterior, nos sentamos na areia, ao lado da fogueira de frente para o rio, vendo as águas recém caídas da cachoeira, passando com pressa pelo clarão do fogo refletido no rio. Os dois de barrigas cheias, depois de dias de fome, estavam eufóricos por terem saído são e salvos de um problemático garimpo de diamante, em que estavam trabalhando. O homem moreno de bigode negro era um bom contador de historias e uma das muitas que ele contou naquela noite, me fez rir muito também. Iniciava com um fazendeiro com um revolver na cintura, sentado na varanda de sua casa grande, de frente para a estrada, por onde passava naquele momento um andante desconhecido e o fazendeiro sem ter com quem conversar, resolveu chamar o homem, oferecendo-lhe sombra e água fresca. O desconhecido que aceitou prontamente o convite, olhou para dentro da casa antes de sentar-se, e vendo pendurados nas paredes vários couros de animais caçados pelo fazendeiro, imediatamente se pós a contar, sem parar, histórias de caçadas impossíveis, fazendo com que o fazendeiro se arrependesse mil vezes de ter convidado o mentiroso a entrar.
            Quando o feijão com jabá começou a cheirar na cozinha, o dono da casa que escutava calado as mentiras do desconhecido, imaginava como faria para se livrar do intruso mentiroso antes do almoço ser servido, sem ter que ser muito descortês.  Quando falhou a espingarda do andante, que se deparara na encosta de uma montanha, com uma onça pintada enorme, tendo que fugir correndo para dentro de uma caverna, sendo perseguido de perto pela onça e encontrando ao chegar no fundo da caverna escura, mais meia dúzia de olhos vermelhos de outras onças que lá se encontravam, o fazendeiro perdendo a paciência aproveitou a oportunidade, sacando então seu revolver e encostando o cano na cabeça do caçador de onças, perguntou enraivecido. - Não vai me dizer que tu escapou dessa, seu filho da puta? O mentiroso pego de surpresa pela reação inesperada do fazendeiro e sem encontrar nenhuma outra alternativa melhor no momento, respondeu. - Não seu, eu não escapei não, naquela vez eu morri e... As onças me comeram !
          
          Todo mateiro amazonense sabe o que é um terreiro de curupira, mesmo que não saiba quem ou o que deixa aquele pedaço de chão em meio à selva, com o diâmetro de dezenas de metros completamente limpo, varrido sem nenhuma folha caída, seca ou verde. Dizem que é o curupira que mantêm o seu terreiro caprichosamente limpo e varrido, e por incrível que pareça a mata parece ser mais sombria nas cercanias destes terreiros, mais silenciosa e misteriosa. Talvez seja apenas superstição, mas quem andando só, no centro da mata, encontra um terreiro destes fica admirado, olhando aquele círculo completamente varrido, e mesmo sem querer redobra os cuidados aguçando os sentidos, escutando atento a mata sombria e silenciosa, esperando instintivamente a qualquer momento o ataque surpresa do curupira dono, do terreiro.
             Naquele dia nublado, quando ouvimos o grito gutural aterrador vindo da picada recém aberta, nos jogamos imediatamente no chão, pensamos que fosse um ataque surpresa de índios hostis, pois o som grotesco que ouvimos parecia ser quase humano, sem ter para onde correr nos preparamos para enfrentar o pior, ali mesmo onde estávamos, com as únicas armas que tínhamos e a quantidade de coragem que dispúnhamos. Havia muitas onças naquela região da floresta, localizada nas encostas de um enorme platô existente na fronteira com a Venezuela, que do avião dava para ver, estendendo-se a perder de vista, como uma enorme mesa verde e plana, sendo aquele imenso platô mais alto que as montanhas localizadas do lado brasileiro.
            Não sabíamos que naquele mês as onças entravam no cio e assim, como todos os gatos, emitem sons grotescos durante o acasalamento, por isso quando tornamos a ouvir novamente o grito desconhecido, já um pouco mais distante de onde estávamos e mais parecido com o esturro de uma onça pintada, o Louro convidou-me para investigarmos e saber se era ou não uma onça. O Louro levava uma espingarda velha, calibre vinte, que quando disparada não sacava o cartucho e eu tinha apenas quatro balas no revólver. Meio à contra gosto com o facão numa das mãos e o revolver na outra, segui o Louro mata à dentro, enquanto o Bernardo e o Goiano que estavam desarmados ficaram nos esperando na picada. Tínhamos andado uns cem metros pela mata, quando nos deparamos com um grande terreiro de curupira, o círculo varrido no meio da mata alta, tinha no centro uma árvore caída que somente a parte mais grossa do tronco ainda não tinha apodrecido. Quando entramos no terreiro, o Louro que seguia na frente esturrou imitando uma onça e imediatamente do outro lado, no início de um declive, descendo em direção á uma grota, uma onça pintada respondeu ao chamado, esturrando também.
            Pronto, não era o mapinguari, nem índios brabos, já sabíamos de quem eram aqueles gritos desconhecidos, mas mesmo assim resolvemos atravessar o terreiro do curupira para tentar ver a onça. O Louro apressou o passo se distanciando uns dez metros de mim e quando comecei a segui-lo tive a leve impressão de que alguma coisa muito rápida tinha se movimentado mais na frente, perto do tronco caído, podia ser uma semente ou galho seco caindo das árvores, um pequeno pássaro em fuga, ou uma alguma brisa batendo na vegetação rasteira.  Não dei importância, me distraindo também, quando o Louro estava quase chegando de fronte ao troco apodrecido, com uma mutuca grande que pousou na minha perna. Parei abaixando a cabeça para tentar matá-la com o facão e foi neste exato momento que ouvi o grito desesperado do Louro e o estampido da espingarda. Instintivamente levei os braços na direção do disparo, apontado o facão e o revólver para a sombra rápida e silenciosa que voava como uma flecha em minha direção disparando ao acaso três tiros simultaneamente, sem ter tido tempo de sair do lugar e nem mesmo ver o que estava nos atacando.
             Ninguém pode prever ao certo, qual será a reação do homem quando é pego de surpresa pelo inesperado. Nestas horas, onde não há espaço, nem tempo para nada, que não seja o que realmente é, pode surpreendentemente sobrar valentia para um covarde e faltar coragem para um valente, que reage, ou não, inconscientemente e independentemente da sua própria vontade.
         O velho Raimundo, o amazonense que teve o pé mastigado pelo jacaré no curral, me contou que quando criança seu pai e seus vizinhos criavam muitos porcos, numa determinada época do ano levavam a porcada de canoa para as ilhas, quando os buritizais estavam com frutas. Lá em meio à fartura de buritis maduros, os porcos engordavam rapidamente, isso se a onça pintada que é exímia nadadora não os comessem antes, por isso, quando começaram a sumir os porcos de uma das ilhas, os vizinhos se reuniram, pegaram as espingardas e foram caçar a onça.
          Na ilha não era muito grande, os homens se espalharam pela mata, para tentar atirar na onça antes que ela atravessasse o rio nadando, fugindo para outra ilha. Um dos beiradeiros,  justamente o que levara junto na caçada o filho ainda menino, foi quem se deparou primeiro com a onça acuada e quando levantou a espingarda para atirar, meteu acidentalmente um dos pés numa toca de paca ou de tatus, caindo de costas indefeso, foi atacado pela onça, enquanto seu filho pequeno, que trazia na mão um facão, tentava defendê-lo golpeando as costas da onça pintada. Quando a onça se voltava contra o menino ele recuava, quando a onça voltava a atacar seu pai, ele voltava para defendê-lo. Os outros caboclos ouvindo o rugido da onça e os gritos do menino  e do pai, correram para ajudar e o primeiro a chegar ao local, foi o irmão do beiradeiro que estava sendo atacado. O mais surpreendente foi, que quando os outros homens também chegaram correndo ao local do ataque, encontraram apenas o menino enfrentando a onça e mesmo gravemente ferido ainda lutava defendendo o pai, enquanto seu tio com a espingarda na mão, perplexo, olhava a cena paralisado, sem ter feito nada para ajudar o irmão e o sobrinho.
            Os beiradeiros depois de matarem a onça, levaram os dois feridos para casa, o menino sobreviveu, seu pai não resistiu aos ferimentos e morreu alguns dias depois, sem nunca entender por que seu irmão não atirou na onça... 

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